quinta-feira, 23 de maio de 2019

Folclore brasileiro renasce na literatura nacional - Sérgio Magalhães

*via Baião de Letras

Quando observamos a relação entre nosso folclore e a literatura, é possível constatar algumas coisas bastante claras: o trato com a mitologia brasileira – representada por um sincretismo entre lendas nativas, africanas e europeias -, esteve bem mais forte e presente no passado de nossa produção literária, como ressaltei no artigo Existe uma Literatura Dedicada ao Sobrenatural Brasileiro? em contrapartida, durante muitas décadas, ela foi abandonada por determinados gêneros, sobrevivendo com maior representatividade apenas na literatura infantil. E digo mais, associado o tema a fantasia e produção dedicada ao público juvenil, muitas vezes essa esfera lendária chegou a ser ridicularizada em detrimento de mitologias estrangeiras, como a europeia (sobretudo nórdica), por exemplo. Assim, falar de criaturas como o Saci, Caipora ou o Boitatá, era certeza de chacota, ou, no mínimo, desinteresse, adotando a típica “síndrome de vira-lata” tão comum ao povo brasileiro.

Todavia, contrariando esse panorama tão desanimador, o folclore nacional vem conquistando um merecido destaque, finalmente, graças a publicação de uma série de obras, que não apenas valorizam essa nuance de nossa cultura, mas demonstram o qual interessante e poderosa pode ser essa esfera de influência, capaz de proporcionar narrativas bem mais interessantes e inovadoras do que réplicas requentadas de mitos e costumes europeus, tão alheios à nossa sociedade e costumes. Para evidenciar esse resgate literário, fiz questão de indicar alguns desses títulos e aspectos dessa produção, logo abaixo.


A fantasia relacionada a mitologia indígena sempre esteve presente em nossa literatura

Um exemplo claro acerca dessa relevância, que vem obtendo obras dedicadas ao folclore brasileiro, é a saga Araruama, do autor Ian Fraser. Publicada por meio de financiamento coletivo a série, que já tem uma obra (O Livro das Sementes, 2017), e com outra prestes a ser lançada (O Livro das Raízes, 2018) demarcou o maior sucesso da plataforma Catarse no Brasil, relacionada a literatura de cunho fantástico; ultrapassando e muito as metas estipuladas inicialmente. Além do sucesso de público (embasado nos apoios conseguidos em seu financiamento) e de crítica, dadas as resenhas pra lá de positivas recebidas na blogosfera nacional, Araruama (Editora Moinhos) apresenta com grande qualidade uma relação intrínseca à esse tipo de produção no país, ou seja, a ligação essencial entre a fantasia e o indígena. Isto pois, ainda hoje os mitos e cultura desses povos, são alheios à quem consome (ou não) esse gênero em literatura, e são capazes de ampliar o estranhamento e mistério que cerca esse imaginário tão relacionado ao fantástico.

Outra obra que simboliza bem não apenas essa relação, mas o enorme apelo contemporâneo desse tipo de tema, é o livro A Bandeira do Elefante e da Arara (Devir, 2016). De autoria do americano (radicado no Brasil) Christopher Kastensmidt, a obra utiliza do subgênero “Espada e Feitiçaria” para promover um sincretismo fantástico entre as culturas que formaram a sociedade brasileira (nativos, europeus e africanos), embora a mitologia indígena ganhe natural destaque, dado o ambiente onde se passa o enredo, num Brasil colônia que mescla traços históricos e geográficos com fortes traços sobrenaturais. A qualidade da narrativa, aliada ao exótico de como é tratada a fantasia no enredo, não apenas premiou o livro, mas permitiu que ele fosse lançado com sucesso em outros países, como China e Estados Unidos. Desta forma, ao decorrer dos capítulos, vemos os protagonistas desvendando diversas criaturas e costumes das mitologias que formariam a brasileira, em décadas posteriores.


Arte do livro Araruama (por Paulo Torinno)

Também é importante salientar, que essa representação de nosso folclore em literatura tem ganhado novos tons e propósitos, algo que amplia não apenas a forma de expressão, mas a precisa renovação dessa mitologia e linguagem utilizada. Nesse aspecto, podemos citar o ótimo Sete Monstros Brasileiros (Fantasy – Casa da Palavra, 2014) do talentoso Bráulio Taváres. Em seus contos, o escritor aborda criaturas de nosso imaginário dentro de uma esfera mais contemporânea, trazendo lendas antigas para uma ótica mais atual e aterrorizante. Assim, tipos como o Bradador, Papa-Figo, Corpo-Seco e o Carbúnculo, saem das matas e ganham as ruas das grandes cidades, a proximidade da sociedade e o pesadelo daqueles que nem imaginam a existência deles.

Quanto a linguagem, ganha destaque a série “Legado Folclórico”, do reconhecido Felipe Castilho, que também assina o marcante A Ordem Vermelha: Filhos da Degradação (Intrínseca, 2017). Formado pelos títulos: “Ouro, Fogo & Megabytes”; “Ferro, Água & Escuridão” e “Prata, Terra & Lua Cheia” (Gutenberg), os livros buscam uma série de influências não apenas folclóricas, mas culturais e históricas brasileiras, para formar uma aventura juvenil recheada de aventura, mistério e ação. Nesse sentido, espere vislumbrar em uma escrita leve e instigante, o desafio a bruxas do sertão e batalhas as margens do Rio São Francisco. Assim, Castilho usa com maestria o sumo de nossa terra, para formar um cenário novo, ao mesmo tempo que é reconhecível por nossa vivência em espaços semelhantes, e verossímeis ao ambiente nacional.


Em A Bandeira do Elefante e da Arara o autor cria um sincretismo bem vindo

Esse resgate do folclore nacional em literatura também invadiu os livros eletrônicos (e-books), ampliando o seu alcance e facilitando a publicação de novos autores, tais como Lauro Kociuba e Junior Salvador. A respeito do primeiro, autor da obra “Raízes de Vento e Sangue: 7 Visitas aos Mitos Brasileiros” (Amazon), importante citar que ele promove uma ligação intrínseca entre os elementos de nosso folclore com sua fundamental relação com a cultura da sociedade nacional. Assim, enquanto criaturas como o Boto, Saci e a Mula Sem Cabeça, surgem nos contos, os significado de sua presença são associados a ações típicas de nosso fazer tipicamente brasileiro; um tipo de produção literária que amplia essa forma de expressão e valorização. Acerca do segundo, autor de “Contos Fantásticos do Folclore Brasileiro” (Amazon), ele representa o escritor iniciante que carece de melhoria em sua produção, mas que revela uma renovação do interesse pelo tema, proporcionando o aumento do cânone e facilitação do acesso e valorização dessa produção.

Embora existem inúmeras outras obras dedicadas ao tema do folclore nacional, quis evidenciar os livros acima, de maneira pontual, para exemplificar os aspectos diferenciados que vem sendo adotados por esses autores, buscando não apenas o trato dessa mitologia, mas uma diversidade de formas de desenvolvimento dessa temática. Portanto, essa valorização contemporânea não passa apenas pela adoção do folclore, mas por uma necessária busca por qualidade no conteúdo e na forma de diálogo com o público leitor. Assim, vê-se que hoje essa desvalorização de nossa cultura mitológica vem sendo desconstruída, e não somente isso, ampliada em seu fundo e forma. Algo louvável, e necessário para a formação de uma identidade nacional, não por obrigação, mas por potencial a ser explorado dentro dessa temática.