domingo, 19 de janeiro de 2020

AS GÊMEAS - Nelson Rodrigues


Estava tomando café em pé quando viu passando, na calçada, a pequena que começara a namorar na véspera. Largou a xícara, largou tudo e atirou-se no seu encalço, quase como um maluco. Tropeça num cavalheiro, esbarra numa senhora, e vai alcançar a menina pouco adiante. Caminha lado a lado e faz a alegre pergunta:

— Como vai essa figurinha?

A garota, que era realmente linda, estaca por um segundo. Olha-o, de alto a baixo, com surpresa e susto. Em seguida, vira o rosto e continua andando. Osmar, desconcertado, apressa o passo e a interroga: “Mas que é isso? Não me reconheces mais?”. Nenhuma resposta. E ele, num espanto misturado de irritação: “Que máscara é essa?”. Silêncio, ainda. Nessa altura dos acontecimentos, a menina só falta correr. Então, Osmar perde a paciência; segura o braço da fulana: “Olha aqui, Marilena...”. Ao ouvir o nome, ela pára: vira-se para ele, mais cordial, quase alegre; encara-o confiante:

— Já vi tudo!

— Tudo como?

Ela parece aliviada:

— Eu não sou Marilena, Marilena é minha irmã.

Pasmo, exclama: “Meu Deus do céu! Que coisa!”. A garota sorri, divertida com a confusão:

— Eu sou Iara.

Osmar faz a pergunta desnecessária:

— E são gêmeas?

Na véspera, conhecera Marilena. Fora um desses flertes deliciosíssimos de ônibus. Viajaram em pé, lado a lado, cada qual pendurado na sua argola. Quando saltaram, no mesmo poste, era evidente que a simpatia era recíproca e irresistível. Marilena deu-lhe telefone, endereço, tudo. Só não lhe dissera por falta de oportunidade que tinha uma irmã gêmea, Iara. Quando se encontraram mais tarde, Osmar contou o episódio e dramatizou:

— Sabe que eu estou com a minha cara no chão? Besta! Semelhança espantosa! Assim nunca vi, puxa! Como é que pode, hein?

Sentaram-se num banco de jardim. E, então, Marilena contou que o equívoco de Osmar não seria o primeiro, nem o último. Mesmo amigos e até parentes incidiam por vezes na mesma confusão. A única coisa que diferia entre as duas era um bracelete que Iara usava e a outra não. Ainda na sua impressão profunda, ele observa:

— Irmãs assim, gêmeas, são muito amigas, não são?

Marilena parece vacilar:

— Depende.

Ele insiste: “E vocês?”. Marilena resiste:

— Você está querendo saber muito. Vamos mudar de assunto que é melhor.

O DRAMA

Desde o primeiro momento, Osmar julgou descobrir em Marilena a índole, a vocação, o destino da esposa. Uma semana depois, avisava em casa e no emprego, em toda parte: “Vou ficar noivo! Vou me casar!”. No fim de quinze dias começa a freqüentar a casa de Marilena. Mais tarde, ou seja, dois meses, e fica noivo. Os amigos batiam-lhe nas costas:

— Que rapidez, que pressa! Bateste todos os recordes mundiais de velocidade!

Pilheriava:

— O negócio, aqui, é a jato!

Passava todos os seus momentos de folga na casa da noiva. E, apesar de ver as duas irmãs diariamente, continuava fazendo o mesmo espanto: “Como é possível, meu Deus, duas criaturas tão parecidas!”. E quando saía com Marilena e Iara, fazia ele próprio o comentário jocoso: “Eu me sinto uma espécie de noivo de duas!”. Um dia, porém, Marilena pôs-lhe a mão no braço:

— Vou te pedir um favor. Não brinca mais assim. É um favor. Não brinca mais assim. É um favor que te peço.

— Por quê?

E ela:

— Se tu soubesses como me irrita essa semelhança! Estou cansada, farta, de ser tão parecida com Iara! — Pausa e acrescenta, com surdo sofrimento: — Eu não queria me parecer com ninguém! Com mulher nenhuma!

NOVO PEDIDO

Daí a dias, Marilena faz novo pedido: “Não quero que você tenha muita intimidade com Iara, sim?”. Osmar, que achava abominável qualquer briga entre parentes, sobretudo entre irmãos, tomou um choque. Pigarreia e indaga: “Mas vocês não são tão amigas?”. Marilena crispa-se diante dele: “Amigas, nós? Nunca!”. Pela primeira vez, admite:

— Nunca brigamos, nunca discutimos e ela me trata até muito bem. Mas me odeia, ouviu? Eu sei que ela me odeia!

Agarrada ao noivo, Marilena fala do sentimento turvo e constante que não se traduz em atos, em palavras. Explica: “Iara nunca me disse nada, nada, mas...”. Osmar pigarreia, assombrado: “Acho que você está exagerando!”. Fosse como fosse, ele procurou, com o máximo de tato, discrição, afastar-se da cunhada. Mas não conseguia acreditar que Iara, tão cordial com todos e amorosíssima com Marilena, pudesse odiar alguém e muito menos a irmã. Por essa época, Iara apanhou uma gripe muito forte, quase uma pneumonia. Venceu a crise, é certo; mas sua convalescença constituiu um novo problema. Depauperada, numa tristeza contínua que a calava, só falava em morrer. O médico da família coça a cabeça: “Esgotamento. O golpe é ir para fora”. O casamento de Marilena estava marcado para próximo. A mãe pergunta: “Não assiste ao casamento?”. Iara responde:

— Não se incomode, mamãe, que eu não vou fazer falta. E se eu ficar aqui não sei, não; acho que vou acabar fazendo uma bobagem!

A família não teve outro remédio senão mandá-la para a fazenda de um tio em Mato Grosso. Muito enfraquecida, Iara suspirou:

— Ótimo que seja em Mato Grosso. Quanto mais longe melhor.

BODAS

Quando o avião que a levava partiu, Marilena vira-se para o noivo: “Graças, meu Deus, graças!”. Essa alegria pareceu a Osmar cruel, quase cínica. Era, porém, evidente  que a ausência da outra a fazia felicíssima: “Agora, sim”, dizia, “agora eu sei que não me acontecerá nada!”. E, de fato, um mês depois casavam-se no civil e no religioso. Como presente de casamento, haviam ganho uma pequena casa, lírica e nupcial, em Lins de Vasconcelos. Às dez horas da noite, deixam a casa dos pais da noiva e vão para a nova residência. Estão solitários como Adão e Eva. Ela, transfigurada, avisa: “Depois te chamo!”. Entra no quarto e, ainda de noiva, fecha a porta atrás de si. Do lado de fora, ele espera, fumando, impaciente. Quinze minutos depois, bate. De dentro, vem a resposta: “Já vai”. Mais quinze minutos e Marilena entreabre: “Pode vir, meu bem”. Horas depois, quando já amanhecia, ele, no seu deslumbramento, passa a mão no braço da pequena. Súbito, senta-se na cama. Balbucia, apavorado: “O bracelete!”. Ela responde, muito doce:

— Eu não sou Marilena, eu sou Iara.

Fora de si, ele se levanta, procura debaixo da cama, dos móveis; derruba uma cadeira; e, no meio do quarto, olha em torno, sem compreender. Então, Iara aponta: “Ali!”. Como um louco, ele corre ao guarda-vestidos; num uivo abre as duas portas. Mas recua, numa histeria pavorosa. Lá de dentro, vem sobre ele o cadáver de Marilena, vestido de noiva. Na cama, Iara está acendendo um cigarro americano.