Análise e Divisão do Texto
O texto, que trata das diferenças entre o filme Troia e a obra original, a Ilíada de Homero, pode ser dividido em parágrafos temáticos para facilitar a leitura e a compreensão partindo do vídeo de mesmo nome do canal Patrick Silva em lógica própria.
Apresentação e Tema Central
Não é de hoje que filmes que retratam algum período histórico ou se inspiram em alguma obra literária mudam algo ou tudo da fonte
inspiradora, deixando às vezes só o nome mesmo. Um grande exemplo disso é o filme Troia.
Não é surpresa para ninguém que o roteiro do filme modificou bastante a história que o inspirou, e estamos falando da Ilíada de Homero. Porém, hoje eu vou mostrar para vocês que essas modificações são muito mais sérias do que vocês podem imaginar. E não apenas isso, essas modificações bebem muito da Revolução Francesa e de movimentos progressistas modernos como o feminismo, por exemplo. Mais do que isso, quero mostrar para vocês, usando o filme Troia como exemplo máximo, como a cultura moderna nos influencia a pensar de determinadas formas, criando consenso por meio de influência no imaginário de todos, ou pelo menos quase todos. E hoje em dia, até o fim do vídeo, você vai entender do que eu estou falando.
A importância de Homero e da Ilíada para o Ocidente
A primeira coisa que temos que entender é o que representava e ainda representa Homero e a obra Ilíada para todo o ocidente. Homero foi um poeta grego que nasceu em aproximadamente 928 a.C., mas de cara eu já tenho que fazer uma ponderação: acho que "poeta" não resume bem o que foi Homero. Podemos considerá-lo meio que um fundador de uma cultura, consequentemente um dos maiores influenciadores da civilização ocidental.
Para vocês terem uma ideia de quem foi Homero, Dante Alighieri, outro poeta (para muitos o maior poeta de todos os tempos), autor da Divina Comédia (que também para muitos é a maior obra de todos os tempos), ao encontrar Homero no Limbo, um dos níveis do inferno, diz o seguinte: “Com a espada na mão, olha o decano, é Homero, o poeta soberano”.
Otto Maria Carpeaux, um crítico literário, em sua obra majestosa A História da Literatura Ocidental (CARPEAUX, Otto Maria. 3. ed. -- Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. 4 v. [Edições do Senado Federal; v. 107-A], p. 46), diz o seguinte: “Nenhum autor clássico alcançou jamais fama tão indiscutida. Tornou-se um sinônimo de poeta. Essa glória é em grande parte o resultado de inúmeros esforços malogrados de imitá-lo. Será difícil enumerar as epopeias modernas que se escreveram para rivalizar com Homero, e o fracasso manifesto de todos os imitadores fortaleceu unanimemente a opinião: Homero é o maior dos poetas”.
Os gregos antigos consentiram, mas por outros motivos, porque nunca, senão nas últimas fases da decadência literária, um poeta grego pensou em imitar Homero. As epopeias homéricas eram consideradas como cânone fixo, ao qual não era lícito acrescentar outras epopeias de origem mais moderna. A Ilíada e a Odisseia eram usadas nas escolas gregas como livros didáticos, não da maneira como nós outros fazemos, ler aos meninos algumas grandes obras de poesia para educar o gosto literário, mas sim da maneira como se aprende de cor um catecismo.
Para os antigos, Homero não era uma obra literária, leitura obrigatória dos estudantes e objeto de discussão crítica entre os homens de letras na antiguidade. Também, assim como nos tempos modernos, Homero era indiscutido. Não mais como uma epopeia, e sim como a Bíblia. Era um código. Versos de Homero serviam para apoiar opiniões literárias, teses filosóficas, sentimentos religiosos, sentenças de tribunais, moções políticas. Versos de Homero citaram-se nos discursos dos advogados e estadistas como argumentos irrefutáveis. Homero, isso significava tradição no sentido em que a igreja romana emprega a palavra como norma de interpretação da doutrina e da vida.
A importância de Homero para toda a cultura grega não pode ser descrita. É como se tentássemos descrever a importância do sol para o pôr do sol. Não é que ele é importante, ele é a base de tudo o que vemos ali naquele cenário.
Os poemas de Homero são tão bem elaborados, com tamanha complexidade, seja por causa do tamanho somado à harmonia, seja por causa das personalidades complexas (pelo menos para a época) e opostas de seus personagens, que não são poucos em nenhum dos poemas, que durante muito tempo houve um questionamento enorme se aqueles poemas formam mesmo uma só obra e se tinham sido escritos pela mesma pessoa. O maior contestador de todos foi Friedrich August Wolf. Ele apontou determinadas contradições entre Ilíada e Odisseia, principalmente por causa do estilo. Alguns concordam com ele, outros apoiam a unidade da obra de Homero. Esse problema não está completamente resolvido até hoje.
Mas quando foram encontradas as ruínas da cidade de Troia na Ásia menor, e quando indícios de uma civilização pré-helênica surgiram em Micenas e Creta, a ideia de uma unidade da obra de Homero ganhou muita força, e para a maioria dos estudiosos, essa é a versão que prevalece.
Werner Jaeger, um historiador que possui várias obras sobre a cultura grega antiga, ressalta em seu livro Paidéia como as obras de Homero foram importantes exemplos pedagógicos de virtude, heroísmo e sabedoria para todos os gregos. Ele fez uma análise de Homero como educador. E para isso ele invoca Platão.
Conta Platão que era opinião geral no seu tempo ter sido Homero o educador de toda a Grécia. Desde então, a sua influência estendeu-se muito além das fronteiras da Hélade. Nem a apaixonada crítica filosófica de Platão conseguiu abalar o seu domínio quando buscou limitar o influxo e o valor pedagógico de toda a poesia. Verner nos mostra como Platão, mesmo com críticas enormes à poesia de Homero e suas consequências para a formação dos gregos, reconheceu que o "poeta soberano" foi educador de todo um povo, sendo sua influência até difícil de mensurar. Influência essa que para Platão ora era boa, mas em maior parte era ruim.
E uma curiosidade: Homero escreveu essas obras de tanta relevância e, pelo que se sabe, morreu aos 30 anos de idade.
Por essa pequena amostra, já deu para entender e perceber o peso que Homero teve e como uma simples modificação em sua obra faria uma enorme diferença no significado dela, na mensagem a ser transmitida. E aqui entramos no filme Troia.
O Filme: Troia
O filme foi dirigido por Wolfgang Petersen, roteirizado por David Benioff, com um elenco estrelado contando com Brad Pitt, Eric Bana, Orlando Bloom, Diane Kruger, Brian Cox, Sean Bean, entre outros. Contou com um orçamento exorbitante para a época, que teve uma bilheteria razoável, pagando os custos do filme, mas sem grandes lucros. No IMDb, a nota dele é 7,3 e no Rotten Tomatoes, a crítica foi bem dividida.
Muitos críticos reclamaram das adaptações feitas na história original, afirmando em muitos casos que as motivações dos personagens e o desenrolar da história não foram convincentes. E nesse ponto, temos a primeira grande diferença da obra de Homero para o filme: no poema, o papel dos deuses gregos não é somente importante, ele é providencial. Em vários momentos, a trama anda por causa das ações diretas dos deuses gregos. E quando isso foi transposto para o roteiro do filme, essas ações não eram compatíveis com as motivações dos personagens.
Para exemplificar, vamos por partes. O filme começa com uma cena de batalha. Basicamente, existe ali uma trama para nos mostrar a personalidade e as habilidades de Aquiles, e já para trabalhar a desavença que existe entre ele e Agamenon. Só que essa cena não existe no livro. O livro, na verdade, começa muito mais para a frente, no cerco que os gregos fizeram em Troia, que a essa altura já durava mais de nove anos.
No filme, após esta batalha que apresenta Aquiles e sua habilidade de luta, já corta para uma comemoração de acordo de paz entre Troia e Esparta, onde Páris acaba se envolvendo com Helena. Helena abandona Troia e Menelau, seu marido, para fugir com Páris. Isto, no filme. No livro, Helena não abandona apenas o seu marido, ela também tem uma filha. Ela abandona sua família para fugir com Páris.
E aqui começamos a perceber um posicionamento nítido que o roteirista e diretor têm com relação à antiguidade: eles amenizam o erro de Helena, não só removendo a filha da história, mas colocando Menelau como um homem muito mais velho e com, digamos, um capital estético nada atrativo. O que é completamente contraditório à história do poema. No início do poema, naquela cena da batalha à frente das muralhas, que no filme está mais para frente, na frente de Troia, Príamo olha para o exército grego e descreve vários guerreiros que chamam sua atenção. Ao descrever Ulisses ou Odisseu, ressaltando suas qualidades físicas, eles o comparam a Menelau, considerando-os muito parecidos, sendo um de pé mais imponente e o outro quando sentado o superando.
Agora vejam a descrição que Príamo faz de Agamenon, o rei da Grécia e irmão de Menelau:
Vem revelar-me quem seja aquele homem de aspecto imponente;
como se chama esse Acaio tão belo e de tal corpulência?
Outros heróis é evidente mais altos do que ele percebo;
mas os meus olhos jamais admiraram tão belo conspecto
nem majestade tão grande; assemelha-se é facto a um monarca.
E Helena responde:
Sinto por ti caro sogro respeito e vergonha a um só tempo.
Bem melhor fora se a Morte terrível me houvesse levado
antes de haver consentido em seguir o teu filho deixando
o lar e o esposo minha única filha e as gentis companheiras.
Mas não devia assim ser; essa a causa de todo o meu choro.
Ora te vou responder a respeito do que perguntaste.
Esse é Agamémnon rei poderoso de Atreu descendente
tão grande rei chefe de homens quão forte e notável guerreiro.
Foi meu cunhado se o foi algum dia com minha cegueira!
Agora fica a dúvida: por que modificaram tanto a aparência dos reis e amenizaram tanto os erros de Helena?
A Influência de Ideologias Modernas na Representação dos Personagens
Bom, é aqui que entrelaçamos nessa conversa o feminismo e a Revolução Francesa. Para não estender demais, porque só esse tema com certeza dá uma série de vídeos, a Revolução Francesa, em resumo, concentrou quase todo o seu esforço em destruir a imagem de um bom monarca. A ideia antiga de um monarca virtuoso que todos consideram digno do trono e por isso mesmo ele governa de forma única, foi bombardeada nessa época. Vários reis foram condenados à morte, e desde então, um grande espectro da nossa sociedade considera a Revolução Francesa uma das melhores coisas que já aconteceram na história da humanidade.
Trabalhar culturalmente um rei sendo uma figura preguiçosa, exploradora, tirana, desumana, se tornou praticamente normal. Pensa comigo: com qual frequência você vê filmes que representam reis como uma figura positiva? Qual foi a última vez que você viu um Aragorn na tela? Isso é muito raro. O que mais nós vemos são reis sempre sendo tratados com características extremamente negativas. Não estou dizendo que eles não existiram. Tivemos sim muitos reis péssimos, verdadeiros tiranos ao longo da história, mas a verdade é que o reinado dos tiranos normalmente era muito curto.
Pensa comigo novamente: se a maioria da população odiasse um rei, o que acontece com os tiranos? Havia muita dificuldade para chegar até ele? Claro que não. O poder bélico de um rei, principalmente na antiguidade, era de espadas e escudos, uma guarda real de algumas dezenas de homens, no máximo centenas. Isso não chega nem perto da diferença de armamento que um cidadão comum tem acesso e um governante tem acesso nos dias de hoje. Mesmo em países que as armas são vendidas com muita facilidade, o governo possui armas nucleares, possui tanques, mísseis, todo o aparato militar pronto para obedecer e conter qualquer revolta popular mais rápido do que ela poderia crescer. E eu nem vou falar do caso do Brasil, onde ter uma arma é uma jornada quase que impossível ou inviável financeiramente. O poder do estado de repressão hoje é infinitamente maior do que esses reis tinham na antiguidade. E sem contar o poder de fiscalizar e punir alguém por meio de tecnologia, meios repressivos que nem os maiores tiranos da história sonhariam em ter.
Então, como foi possível na nossa história ter a monarquia como a forma de governo mais comum durante mais tempo? Como o monarca fazia para que as pessoas obedecessem? O que fazia com que um rei pudesse governar? É que a maioria da população o considerava o mais apto para o cargo. Monarcas na maioria das vezes eram elevados a esse cargo pela própria população ou mesmo treinados em suas famílias para desenvolver as virtudes necessárias para tamanha responsabilidade na sociedade. E quando dava errado, já sabemos o fim. Nero, por exemplo, teve um reinado de 12 anos, morreu aos 30 anos de idade. Júlio César tinha discordância dos seus adversários políticos e foi assassinado com pouco mais de cinco anos de governo. Calígula, outro imperador romano considerado mais cruel de todos, não passou dos 30 anos.
E veja bem, não estou dizendo que não houve tiranos que conseguiram ficar por mais tempo no comando, mas percebam que nos últimos séculos, justamente por causa do avanço bélico e tecnológico, os tiranos conseguiram passar muito mais tempo em seus postos, se protegendo de forma muito mais eficiente e atingindo uma quantidade muito maior de pessoas com a sua crueldade. E também não estou aqui fazendo nenhum tipo de apologia à monarquia. Eu não faço apologia de sistema de governo nenhum. Todos têm lados bons e lados ruins.
Para vocês terem uma ideia de como era ter um trono nessa época da Grécia antiga, em seu outro livro, Odisseia, Homero descreve a jornada heróica que Odisseu, ou Ulisses, rei de Ítaca, fez para voltar para casa. Mas ao chegar em Ítaca, como já havia 20 anos de sua partida, já haviam vários pretendentes a marido de sua esposa, Penélope. E não bastou somente chegar e dar uma ordem para todo mundo ir embora. Se fizesse isso, eles o matariam. Odisseu teve que planejar cuidadosamente escondido e ainda exterminar todos. As coisas não funcionavam como o filme tenta mostrar. Reis não são obedecidos automaticamente e servilmente no cenário da Hélade. Ou o rei conquista o trono sendo merecedor dele, ou o tiram de lá. Agora, para Menelau e Agamenon do filme, quantos homens precisam para tirar os dois de seus tronos? Chega a ser uma piada. Isso é só olhar.
E temos um segundo ponto de análise: por que amenizar tanto o erro de Helena? Por que criar esse cenário em que nós quase concordamos com ela ao trair, enganar o marido e fugir com um amante? Aí entra um problema da nossa cultura moderna. Da mesma forma como temos dificuldade em ver homens sendo representados com virtudes, líderes e solucionadores de problemas, é muito difícil ver uma mulher como vilã.
O filme trabalha uma ideia que hoje ela é quase unânime: que as mulheres de algum tempo atrás quase sempre se casavam obrigadas, com homens repulsivos, muito mais velhos que elas, e viviam infelizes por incapacidade de escolher. Claro, isso existia. Agora, observa o que temos hoje: mulheres possuem tanta liberdade de poder trabalhar e conquistar sua liberdade financeira quanto a liberdade para escolher seus cônjuges. No entanto, a cada ano que passa, batemos recorde de divórcio, quase sempre iniciado por mulheres. "Mas, Patrick, elas estão fazendo isso justamente para não precisarem mais ficar em um casamento forçado, dependendo do marido para buscarem a felicidade". Então, nós temos que concordar que não está dando certo. Na mesma proporção em que cresce o número de divórcio, cresce o número de mulheres com ansiedade e depressão.
E aqui mais uma adendo: eu não estou dizendo que o divórcio é a causa da ansiedade e da depressão, estou apenas constatando um fato: nunca houve tanto divórcio e as mulheres nunca tiveram tanta liberdade de escolha, e nós nunca tivemos tanto caso de depressão e ansiedade entre mulheres.
O que mais temos na história do cinema são filmes famosíssimos que abordam esse tema do casamento forçado. E eu acho que o assunto é muito mais complexo do que isso.
Voltando ao filme, há trechos e diálogos explícitos de como ela era infeliz em Esparta, de como ela passou a ter vida somente com Páris: “Antes de você vir a Esparta, eu era um fantasma. Eu andava, comia e nadava no mar, mas era só um fantasma. Esparta nunca foi a minha casa. Meus pais me mandaram para lá quando eu tinha 16 anos para me casar com Menelau, mas nunca foi minha casa”. E o livro trata de forma bem diferente. Veja esse trecho do canto três:
Na alma as palavras da deusa infundiram-lhe doce saudade
do seu primeiro marido dos pais e da pátria grandiosa.
Ei-la que o rosto recobre com o nítido véu apressada
e a derramar ternas lágrimas sai do aposento luxuoso
Helena no poema sente saudade do marido, reconhecendo isso várias vezes. A questão é que no livro a ida dela pra Troia é tratada como uma mescla entre sequestro e sedução de Páris, mas auxiliado por Afrodite, deusa do amor, da beleza e do desejo.
A Ausência dos Deuses e a Deturpação da Visão Antiga
E aqui nós entramos num dos maiores motivos da dificuldade de adaptação da obra: tanto o roteirista como o diretor queriam remover todo esse peso que a religiosidade grega tinha no poema. Várias vezes os deuses interferem diretamente nos acontecimentos, e eles tiveram que fazer adaptações nas motivações, tentando fazer com que as coisas fizessem sentido, mas nem sempre eles conseguiram. Páris, por exemplo, na luta contra Menelau, ele não foge, ele é resgatado por Afrodite, que o leva direto pro seu quarto em segurança. Outro exemplo é na luta entre Heitor e Aquiles. Heitor estava fugindo de Aquiles no livro, correndo ao redor da cidade. A deusa Atena disfarçada engana Heitor e diz que vai ajudá-lo a enfrentar Aquiles. Só assim ele aceita o desafio, tendo o mesmo desfecho do filme. Essa luta, aliás, é bem mais épica e marcante no filme do que no livro. Nós temos aqui que concordar, né?
A verdade é que eles não só removeram a parte religiosa da Ilíada, eles a ridicularizaram. Sempre que os troianos precisavam tomar decisões, quando as decisões não eram pautadas por sinais recebidos dos deuses, eles tomavam as decisões erradas. Outra coisa bem marcante é que eles ridicularizavam a velhice, tratando os sacerdotes como antiquados e supersticiosos. É claro que essa não é a visão de Homero. Na verdade, essa não é a visão de nenhum dos grandes nomes da Grécia. Tanto Platão como Aristóteles tratavam a juventude normalmente ligada com imprudência e impulsividade, e ligavam sempre a maturidade e idade avançada como sabedoria e prudência, salvas exceções, e eu sei que elas existem, é bem difícil discordar de Platão e Aristóteles para quase tudo.
Outra mudança brusca de perspectiva do livro e filme foi a motivação de Agamenon para a guerra. O filme ressalta todo o tempo que Páris ter levado Helena com ele foi apenas um pretexto. É colocada com muita frequência a visão de que o que provocou a guerra foi a ambição de Agamenon. Para vocês terem uma ideia de como isso difere do filme, o acordo feito entre Menelau e Páris para o duelo (a disputa de Helena) encerraria de fato a guerra. E isso não é inexplicável. No livro, o cerco de Troia já durava mais de nove anos. Já haviam tido reuniões entre os gregos e o próprio Agamenon já tinha proposto voltar para casa e desistir de dominar Troia. Ao se propor o duelo, os dois concordaram com isso e afirmaram que isso encerraria de fato a contenda ali mesmo. Mas a interferência de Afrodite, salvando Páris, desemboca numa batalha que dura dias e resulta na morte de vários personagens importantes como Pátroclo, Heitor e Aquiles.
Outras Mudanças de Personagens e Enredo
E por falar em Pátroclo, está aí um personagem completamente diferente entre as duas obras. Ele, que era amigo de Aquiles e não primo como diz o filme, no filme é quase um adolescente iniciante ainda nas batalhas. No livro, ele é um exímio guerreiro, faz um estrago no exército troiano e só é vencido por Heitor porque Apolo intervém e ajuda a superar Pátroclo.
Heitor foi outro personagem bastante modificado no filme. Se tornou praticamente perfeito moralmente e intelectualmente. No livro, Ele é bem mais sanguinário, impiedoso e muito menos honrado. Além disso, ele é muito mais revoltado com o irmão por tudo o que ele causou ali naquela guerra. E por falar nele, esse é o personagem que praticamente não mudou tanto no livro quanto no filme: que foi o Páris. Ele é igualmente inconsequente e frouxo no filme e no livro.
A Ilíada se encerra com os funerais de Heitor e Pátroclo. O que acontece a partir daí não está no livro. Todo o desfecho da história são relatos diretos ou deduções presentes na Odisseia e não na Ilíada. E muitas coisas no desfecho são diferentes também: Menelau não morre, ele deseja tanto a sua esposa e a amava tanto que eles voltam para casa e vivem juntos quando Odisseu e seu filho passam lá durante a Odisseia, mais um indício da diferença de personalidade de Menelau do livro e do filme. Agamenon morre sim, mas não por Briseida como é no filme, e sim por uma conspiração entre sua esposa e seu amante. Isso acontece quando ele está voltando pra casa.
A queda de Troia realmente acontece, mas não é narrada em nenhum livro. Outro fato que não é narrado em nenhum livro é como Aquiles morreu. Ele apenas aparece no Hades, o mundo dos mortos, quando Odisseu desce lá buscando o caminho de casa.
Outra coisa que eu queria ressaltar é a diferença que existe entre a versão que foi para o cinema e a versão do diretor. Nitidamente, a versão do diretor é bem mais sanguinária, vários cortes das batalhas foram tirados, mas na versão do diretor eles estão explícitos. É com certeza muito mais sangue, muito mais matança. Esta questão que eu disse também sobre eles ridicularizarem a fé dos gregos e também tratar a maturidade como uma superstição e uma coisa meio de idiotas, praticamente, é bem mais saltada na versão do diretor do que a versão que foi para o cinema.
No geral, alguns detalhes foram modificados da versão do cinema para a versão do diretor e vice-versa, mas eu acho que ambas são interessantes. Eu particularmente gosto desse filme. Parece estranho falar isso aqui agora, mas eu gosto. Eu acho que tem muito a ver com o carisma do Brad Pitt, porque é um ator que eu gosto muito. Eu gosto de quase todos os filmes que ele fez, e quase todos os personagens ele combinou muito. Com o personagem do Aquiles, que é um semideus nos livros, apesar de ele já ter dito que não gostou muito de ter feito o filme, mas eu gostei. Sei que o filme tem problemas, mas até que me agrada.
Outra coisa que fica muito clara é que o Aquiles ali é tratado como um protagonista. Isso é muito comum em filmes, porque é mais fácil conduzir um filme tendo um personagem principal e desenvolvendo suas características, seus dilemas e sua transformação. No livro, não existe basicamente um personagem principal como é o caso da Odisseia. A Ilíada tem vários personagens, e praticamente nenhum é aprofundado mais do que o outro. Cada um tem o seu momento ali de aparecer. E para falar a verdade, Aquiles aparece muito pouco. Por ele ser um filho de uma deusa, ele tem habilidades muito diferentes dos outros, então eu creio que se colocasse Aquiles nas batalhas desde o início do livro, a coisa meio que perderia a graça, porque quando ele entra é um negócio meio absurdo mesmo. Então tratar o filme com uma ênfase nele é totalmente compreensível, ainda mais quando você tem um ator do calibre do Brad Pitt, do carisma que ele tem, né? Isso com toda a certeza arrasta o filme e arrasta o público também para assistir. Vocês veem que o próprio banner do filme tem sim uma ênfase muito grande no elenco, mas ainda mais em Aquiles, que é o Brad Pitt, na verdade.
Conclusão: A Formação do Imaginário e a Importância da Cultura
Bom, fica bem claro que mudanças foram feitas na obra original e é totalmente normal que isso aconteça. O que eu questiono aqui é por que as mudanças levam à representação dos tempos antigos sempre com a recorrência de um padrão? Algumas visões são tão comuns nos filmes de hoje, principalmente com relação a reis, deuses, feminilidade, masculinidade, que já são quase um consenso. E aí fica a pergunta: por que achamos que esse tipo de visão, como os reis serem todos tiranos, deuses ou deuses serem sempre superstições, mulheres nunca terem tido direito de escolha alguma, são tão comuns que já falamos como se isso fosse fato inquestionável?
E é aí que voltamos à importância da formação do imaginário e ainda mais à importância de ver os vários lados da história para buscar a verdade. Quando buscamos o conhecimento, mesmo se virmos uma sentença que faça sentido, nós não vamos julgar aquilo verdadeiro se não estiver no nosso campo de possibilidades que já imaginamos ser possíveis. Em outras palavras, a verdade pode estar diante de nossos olhos, se nós não acharmos aquilo crível, palpável, vamos ignorar, porque a nossa imaginação não consegue abarcar esse pensamento como viável, como palpável.
A imaginação nos é importante para absolutamente tudo. Em cada decisão, nós usamos o que já vimos, ouvimos e sentimos como base para o que pode ou não ser real, o que pode ou não ser uma possibilidade. São Tomás de Aquino já dizia que todas as regras morais, como por exemplo os 10 mandamentos, são universais, mas as situações humanas são individuais e particulares. Isso quer dizer que várias das situações que nós vivemos em nossas vidas não têm uma regra moral específica, nem mesmo para aquelas que tenham nos 10 mandamentos ou qualquer outra regra moral.
"Tirar a vida de alguém é errado em quase todas as culturas." Mas e quando esse alguém entra na sua casa, não escuta seus alertas, prosseguindo na invasão e ameaçando a sua vida e de sua família? Tirar uma vida continua sendo errado? "Mentira é uma coisa desprezível." Mas e quando alguém se esconde na sua casa morrendo de medo, implorando para que você o ajude a fugir, e na sequência aparece alguém armado perguntando onde aquela pessoa está? Mentir continua sendo uma coisa desprezível?
Nesses dilemas morais, como podemos fazer para converter as regras ou leis morais gerais em decisões tomadas nas nossas situações do dia a dia? São Tomás de Aquino também nos deu a resposta: imaginação. É usando a imaginação que conseguimos pensar em soluções possíveis, convertendo o que é geral ao aplicável na nossa circunstância do momento. Mas isso não é tão simples como parece. É preciso enriquecer a imaginação com o máximo de situações possíveis para que, quando algum dilema moral se apresentar a você, a sua gama de possibilidades seja tão vasta que alguma opção já vista por você se encaixe, ou pelo menos se aproxime, e você consiga resolver.
E como podemos fazer para ampliar nosso imaginário? “Nada está na nossa imaginação que não tenha passado antes pelos sentidos.” Essa frase foi dita por Aristóteles. Ele acreditava que todos os conhecimentos que temos começam pelos sentidos e depois são formulados como pensamentos para serem utilizados quando julgarmos necessário. Ou seja, tudo que você assiste, ouve, presencia, lê, vê, começa a fazer parte do seu repertório de situações possíveis. Dessa forma, quanto mais acesso à cultura você tem, maior será seu imaginário.
Mas então, qualquer cultura vale para aumentar o imaginário? Sim. "Qualquer cultura tem o mesmo valor?" Não. Qualquer pessoa é capaz de perceber que uma tribo que realiza sacrifícios humanos tem valor moral mais baixo do que a nossa sociedade de hoje. Qualquer pessoa consegue perceber que existe uma diferença de qualidade entre uma escultura de Michelangelo e uma obra de arte moderna. Qualquer pessoa percebe que há uma diferença sim entre a Quinta Sinfonia de Beethoven e o hit "Caneta Azul".
O que eu quero dizer com isso: não tem problema ver filmes ruins ou medíocres, mas veja os clássicos renomados do cinema. Não tem problema ouvir as músicas de hoje, mas pelo menos para conhecer, ouça música clássica. Não tem problema ler os livros mais vendidos do último ano, mas não deixe de ler clássicos como Ilíada, Odisseia, Divina Comédia, Crime e Castigo, Rei Lear, Guerra e Paz, A República, As Confissões, e por aí vai.
Se você não fizer isto, filmes como Troia, historicamente e sociologicamente tendenciosos, serão a única base de fonte histórica que você terá. Existe um lado, mas por que não ver o outro lado? Leiam Ilíada e Odisseia. Vale muito a pena. Até hoje.
Para ver mais: TROIA X ILÍADA: Hollywood - Patrick Silva