segunda-feira, 28 de maio de 2018

O modelo de Pickman - H.P. Lovecraft



VOCÊ não precisa achar que sou louco, Eliot — muitas pessoas têm superstições ainda mais estranhas. Por que você não ri do avô de Oliver, que se recusa a andar de carro? Se eu não gosto daquele maldito metrô, o problema é meu; e além disso chegamos mais depressa de táxi. Com o metrô, precisaríamos ter subido o morro desde a Park Street.

Eu sei que estou mais nervoso do que estava quando você me viu ano passado, mas você também não precisa criar caso. Tenho bons motivos, só Deus sabe, e considero-me um homem de sorte por não ter enlouquecido. Mas afinal, por que esse interrogatório? Você não era tão inquisitivo.

Bem, se você quer saber, não vejo por que não contar. Talvez você deva saber mesmo, pois me escreveu como um pai preocupado quando soube que eu havia deixado o Art Club e me afastado de Pickman. Agora que ele sumiu eu apareço no clube de vez em quando, mas os meus nervos já não são mais os mesmos.

Não, não sei que fim levou Pickman, e não gosto sequer de imaginar. Você deve ter concluído que eu tinha alguma informação privilegiada quando o abandonei — e é por isso que eu não quero nem imaginar para onde ele foi. A polícia que trate de descobrir o quanto puder — não vai ser muita coisa, sendo que até agora eles ainda não sabem de nada a respeito do velho estúdio que Pickman alugava em North End sob o nome de Peters.

Nem eu sei se saberia voltar lá — e de qualquer forma não pretendo tentar, nem mesmo à luz do dia!

Sim, eu sei, ou temo saber, por que ele o alugava. Já vou chegar lá. E acho que antes de eu acabar você vai entender por que não comunico a polícia. Eles me pediriam para guiá-los, mas eu não conseguiria voltar lá nem que soubesse o caminho. Havia alguma coisa lá — e agora não consigo mais andar de metrô nem (fique à vontade para rir disto também) descer a porão algum.

Achei que você saberia que eu não me afastei de Pickman pelas mesmas razões estúpidas que levaram velhas caprichosas como o dr. Reid ou Joe Minot ou Rosworth a abandoná-lo. A arte mórbida não me choca, e quando um homem tem o gênio de Pickman eu me sinto honrado ao conhecê-lo, independente do caráter de sua arte. Boston jamais teve um pintor maior do que Richard Upton Pickman. Eu disse e repito, e não mudei em nada a minha opinião quando ele me mostrou aquele Ghoul se alimentando. Você lembra? Foi naquela época que Minot o cortou.

Sabe, é preciso um profundo talento e uma profunda compreensão da Natureza para produzir obras como as de Pickman. Qualquer amador que desenhe capas de revistas pode espalhar a tinta de um jeito qualquer e chamar o resultado de pesadelo ou de sabá das bruxas ou de retrato do demônio, mas só um grande pintor consegue fazer uma coisa dessas parecer realmente assustadora ou convincente. É por isso que só um artista de verdade conhece a fundo a anatomia do terror ou a psicologia do medo — o tipo exato de linhas e proporções que se ligam a instintos latentes ou memórias hereditárias de pavor, e os contrastes e a iluminação que despertam o sentimento de estranheza adormecido. Não preciso dizer a você por que um Fuseli faz nossos ossos literalmente se enregelarem, enquanto um frontispício de história de terror só nos faz rir. Existe alguma coisa que esses sujeitos captam — algo além da vida — que eles conseguem nos fazer captar por um breve instante. Com Doré era assim. Com Sime é assim. Com Angarola, de Chicago, é assim. E quanto a Pickman — nenhum homem jamais foi como ele e, por Deus, espero que jamais seja outra vez.

Não me pergunte o que eles veem. Você sabe, na arte convencional existe uma enorme diferença entre as coisas vivas, de verdade, criadas a partir da natureza ou de modelos, e o lixo artificial que os peixes pequenos em geral produzem num estúdio precário. Bem, devo dizer que um artista realmente excêntrico tem um tipo de visão que cria modelos, ou invoca alguma coisa equivalente a cenas reais do mundo espectral em que vive. Seja como for, Pickman consegue resultados que se distinguem dos sonhos alucinados de um impostor mais ou menos como os resultados obtidos por um pintor da natureza distinguem-se das garatujas de um cartunista formado por correspondência. Se eu alguma vez tivesse visto o que Pickman via — mas não! Escute, vamos beber alguma coisa antes de continuar o assunto. Meu Deus, eu não estaria vivo hoje se tivesse visto o que aquele homem — se é que era um homem — via!

Você lembra que o forte de Pickman eram os rostos. Acho que ninguém, desde Goya, foi capaz de representar o inferno em estado bruto nos traços de um rosto ou em uma expressão contorcida. E antes de Goya você precisa voltar até os sujeitos medievais que fizeram os gárgulas e as quimeras em Notre-Dame e em Mont Saint-Michel. Eles acreditavam em todo tipo de coisa — e talvez também vissem todo tipo de coisa, afinal a Idade Média teve umas fases bem curiosas. Eu lembro que uma vez, um ano antes da sua partida, você perguntou a Pickman de onde raios ele tirava aquelas ideias e visões. Foi bem macabra a risada que ele deu, não? Em parte foi por causa daquela risada que Reid se afastou dele. Reid, você sabe, mal havia começado a estudar patologia comparada e já estava cheio de “conhecimentos especializados” pomposos sobre a importância biológica ou evolutiva deste ou daquele sintoma mental ou físico. Ele disse que Pickman o repelia mais a cada dia, e que nos últimos tempos quase o assustava — que os traços e a expressão no rosto dele aos poucos se desenvolviam de um modo que não o agradava; de um modo que não era humano. Reid veio cheio de conversas sobre alimentação e disse que Pickman deveria ser anormal e excêntrico ao extremo. Imagino que você tenha dito a Reid, se vocês trocaram alguma correspondência a respeito, que os nervos ou a imaginação dele ficavam muito abalados com as pinturas de Pickman. Eu ao menos disse — na época.

Mas lembre que eu não me afastei de Pickman por nada disso. Pelo contrário, minha admiração por ele só aumentava; aquele Ghoul se alimentando era uma obra magnífica. Como você sabe, o clube se recusou a exibi-lo, e o Museu de Belas Artes não o aceitou nem de presente; além do mais, ninguém queria comprá-lo, então o quadro ficou pendurado na casa de Pickman até o dia em que ele sumiu. Agora está com o pai dele em Salem — você sabe que Pickman vem de uma antiga família de Salem, e que algum antepassado dele foi enforcado por bruxaria em 1692.

Habituei-me visitar Pickman com certa frequência, em especial depois que comecei a tomar notas para escrever uma monografia sobre arte fantástica. Foi provavelmente o trabalho dele que enfiou essa ideia na minha cabeça e, de qualquer modo, ele se revelou uma verdadeira mina de informações e sugestões quando resolvi levar o projeto adiante. Pickman me mostrou todas as pinturas e desenhos que tinha; inclusive alguns rascunhos em bico-de-pena que, acredito, teriam rendido uma expulsão do clube se os outros membros tivessem-nos visto. Logo eu tinha virado quase um seguidor, e ficava como um colegial, escutando, por horas a fio, teorias estéticas e especulações filosóficas loucas o bastante para que o internassem no hospício de Danvers. Essa devoção ao meu herói, somada ao fato de que em geral as pessoas tinham cada vez menos contato com ele, levaram-no a depositar muita confiança em mim; e em uma certa noite ele insinuou que se eu ficasse de bico fechado e não fizesse alarde, ele me mostraria algo um tanto incomum — algo um pouco mais forte do que qualquer outra coisa na casa.

“Você sabe”, disse ele, “certas coisas não foram feitas para a Newbury Street — coisas que ficam deslocadas e que de qualquer modo são impensáveis aqui. O meu interesse é captar as sutilezas da alma, e você não vai achar nada parecido com isso em um conjunto de ruas cheias de novos-ricos em um aterro. A Back Bay não é Boston — ainda não é nada, porque não teve tempo de guardar memórias e atrair espíritos locais. Se existem fantasmas aqui, são os fantasmas mansos de um pântano salgado e de uma pequena gruta; mas eu quero fantasmas humanos — fantasmas de seres inteligentes o bastante para terem visto o inferno e compreendido o que viram.

“O lugar ideal para um artista morar é o North End. Se os estetas fossem sinceros, aguentariam os bairros pobres em nome das tradições acumuladas. Por Deus! Você não vê que lugares como aquele não foram simplesmente construídos, mas cresceram de verdade? Gerações e mais gerações viveram e sofreram e morreram por lá, e numa época em que as pessoas não tinham medo de viver e sofrer e morrer. Você não sabe que havia um moinho em Copp’s Hill em 1632, e que metade das ruas atuais já existiam em 1650? Posso mostrar para você casas que estão de pé há mais de dois séculos e meio; casas que presenciaram coisas que fariam uma casa moderna desabar em ruínas. O que os modernos entendem sobre a vida e as forças que se escondem por trás dela? Você diz que a bruxaria de Salem é uma mera superstição, mas eu aposto que a vó da minha bisavó teria histórias para contar. Ela morreu enforcada em Gallows Hill, sob o olhar farisaico de Cotton Mather. Mather, que o diabo o carregue, temia que alguém conseguisse escapar dessa maldita prisão de monotonia — como eu queria que alguém o tivesse enfeitiçado ou chupado seu sangue à noite!

“Posso mostrar a você a casa onde ele morava e também uma outra onde tinha medo de entrar, apesar de todo aquele falatório destemido. Ele sabia de coisas que não ousou escrever naquela estupidez de Magnalia ou nos deslumbres pueris de Wonders of the Invisible World. Escute, você sabia que por todo o North End havia um conjunto de túneis que ligavam as casas umas às outras, e também ao cemitério e ao mar? Os caçadores de bruxas podiam procurar à vontade na superfície — dia após dia aconteciam coisas fora do alcance deles, e vozes indefiníveis riam à noite!

“Ah, pegue dez casas construídas antes de 1700 ainda no terreno original e aposto que em oito delas eu descubro alguma coisa estranha no porão. É raro passar um mês sem que você leia uma notícia sobre trabalhadores que, ao demolir construções antigas, descobrem arcadas fechadas com tijolos e poços que não levam a lugar nenhum — no ano passado dava para ver uma casa assim quando o trem elevado passava pela Henchman Street. Havia bruxas e o que os feitiços delas invocavam; piratas e o que traziam do mar; corsários — é o que eu digo, antigamente as pessoas sabiam viver e ampliar os horizontes da vida! Esse não era o único mundo que um homem sábio e destemido podia conhecer — pfui! E pensar nos dias de hoje, com intelectos tão apagados que até mesmo um clube de supostos artistas sente calafrios e convulsões se uma pintura ofende a sensibilidade de uma mesa de chá na Beacon Street!

“O único aspecto positivo do presente é que ele é estúpido demais para fazer perguntas detalhadas acerca do passado. O que os mapas e registros e guias de viagem nos informam a respeito do North End? Ha! Eu garanto que vou levá-lo a trinta ou quarenta vielas e emaranhados de vielas ao norte da Prince Street que não são conhecidos por mais de dez pessoas além dos estrangeiros que se amontoam por lá. E o que aqueles carcamanos entendem disso? Não, Thurber, esses lugares antigos têm sonhos maravilhosos e transbordam enlevo e horror e fugas dos lugares-comuns, mas nem assim aparece uma vivalma que os compreenda ou se beneficie deles. Ou melhor, existe uma alma — afinal, não estive revirando o passado a troco de nada!

“Quem diria, você se interessa por essas coisas. E se eu dissesse que tenho um outro estúdio por lá, onde posso captar o espírito noturno de horrores ancestrais e pintar coisas que eu não conseguiria sequer imaginar na Newbury Street? Claro que as titias velhas do clube não sabem disso — com Reid, maldito seja, espalhando boatos de que sou algum tipo de monstro descendo o tobogã da evolução reversa. É, Thurber, há muito tempo eu decidi que, assim como a beleza, também se deve pintar o terror a partir da observação, então explorei alguns lugares onde eu tinha motivos para acreditar que o terror habitava.

“Além de mim, não mais do que três homens nórdicos devem ter visto o lugar. Não fica muito longe do trem elevado, mas em relação à alma são séculos de distância. Escolhi ficar lá por causa do velho poço de tijolos no porão — um dos que mencionei há pouco. A construção está prestes a cair, então ninguém quer morar por lá, e eu detestaria contar a você a bagatela que estou pagando. As janelas estão fechadas com tábuas, mas isso é ainda melhor para mim, já que não preciso de luz solar para o meu trabalho. Eu pinto no porão, onde a inspiração atinge o grau máximo, mas também tenho outras salas no térreo. O proprietário é siciliano, e aluguei o estúdio sob o nome Peters.

“Se você estiver a fim, posso levá-lo hoje à noite até lá. Acho que você iria gostar dos quadros, pois, como eu disse, deixei a imaginação correr solta. Não é longe — às vezes faço o trajeto a pé, porque não quero chamar atenção aparecendo de táxi num lugar daqueles. Podemos pegar o trem na South Station em direção à Battery Street, e de lá é só uma caminhada curta.”

Bem, Eliot, não me restou muita coisa a fazer depois de todo esse falatório senão conter a vontade de sair correndo e pegar o primeiro táxi livre que aparecesse na nossa frente. Trocamos para o trem elevado na South Station e, por volta do meio-dia, já tínhamos descido a escadaria da Battery Street e chegado ao antigo porto depois de Constitution Wharf. Eu não prestei atenção nas ruas transversais e não saberia dizer em qual delas entramos, mas sei que não foi em Greenough Lane.

Quando dobramos, foi para subir pela desolação da viela mais antiga e mais imunda que eu já vi em toda a minha vida, cheia de empenas que pareciam prestes a desmoronar, janelinhas quebradas e chaminés arcaicas que se erguiam meio decrépitas contra o céu enluarado. Acho que eu não vi nem três casas construídas depois da época de Cotton Mather — tenho certeza de que vi pelo menos duas com beirais, e lá pelas tantas tive a impressão de ver um telhado de duas águas anterior às mansardas, embora os antiquários digam que não restou nenhuma casa assim em Boston.

Ao sair dessa viela, que tinha iluminação tênue, dobramos à esquerda em direção a uma outra viela tão silenciosa quanto e ainda mais estreita, sem iluminação alguma: em seguida, no escuro, fizemos o que eu acredito ter sido uma curva em ângulo obtuso à direita. Logo Pickman sacou uma lanterna e revelou uma porta antediluviana de dez painéis que parecia devastada pelos cupins. Depois de abrila, ele me levou por um corredor vazio guarnecido com o que em outras épocas tinham sido lambris de carvalho escuro — um mero detalhe, mas que fazia pensar em Andros e em Phipps e na bruxaria. Então passamos por uma porta à esquerda, ele acendeu uma lamparina a óleo e disse que eu podia ficar à vontade.

Eliot, você sabe que eu sou o tipo de sujeito que costumam chamar de “durão”, mas confesso que fiquei perturbado com o que vi nas paredes daquele cômodo. Eram as pinturas — as pinturas que Pickman não podia pintar nem exibir na Newbury Street — e ele tinha toda a razão quando disse que havia deixado a imaginação “correr solta”. Vamos — peça outra bebida — eu, ao menos, preciso de mais uma!

Nem adianta eu tentar descrever os quadros para você, porque o horror blasfemo e a inacreditável repulsa e decadência moral vinham de toques discretos, muito além do poder descritivo das palavras. Não havia nenhum elemento da técnica exótica que se vê nas obras de Sidney Sime, nada parecido com os cenários trans-saturnianos e fungos lunares que Clark Ashton Smith usa para nos gelar o sangue. Os cenários eram em grande parte igrejas antigas, bosques densos, escarpas à beira-mar, túneis de cimento, antigos corredores com lambril ou simples arcadas em cantaria. O cemitério de Copp’s Hill, que não podia ficar muito longe daquela casa, era um dos cenários mais frequentes.

A loucura e a monstruosidade ficavam por conta das figuras em primeiro plano — pois a arte mórbida de Pickman consistia acima de tudo em retratos demoníacos. As figuras raramente eram humanas, mas muitas vezes apresentavam vários traços humanoides. Os corpos, apesar de bípedes, em sua maioria eram curvados para a frente e tinham traços vagamente caninos. A textura parecia algo borrachuda e era um tanto desagradável. Ugh! É como se eu os estivesse vendo nesse instante! As ocupações deles — bem, não me peça para entrar em detalhes. Em geral estavam se alimentando — não direi do quê. De vez em quando apareciam aos bandos em cemitérios ou passagens subterrâneas, e muitas vezes pareciam disputar uma presa — ou, melhor dizendo, um tesouro. E que expressividade incrível Pickman dava aos rostos inertes daqueles espólios macabros! Às vezes as criaturas apareciam saltando por janelas abertas à noite, ou agachadas sobre o peito de pessoas adormecidas, observando suas gargantas. Uma tela mostrava as criaturas latindo em volta de uma bruxa enforcada em Gallows Hill, cuja expressão cadavérica guardava uma estreita semelhança com a expressão delas.

Mas não ache que foi a escolha dos temas e cenários tétricos o que me levou a fraquejar. Não sou nenhuma criança, e já vi muita coisa assim antes. Eram os rostos, Eliot, aqueles malditos rostos com sorrisos de escárnio e fios de baba pendente que pareciam sair da tela com o sopro da vida! Por Deus, eu pensei que estivessem vivos! Aquele mago repulsivo tinha despertado os fogos do inferno em pigmento, e o pincel dele conjurou terríveis pesadelos. Passe-me a garrafa, Eliot!

Havia um quadro chamado A lição — Deus me perdoe por ter visto aquilo! Escute — você consegue imaginar um grupo de seres caninos inomináveis, agachados em círculo num cemitério, ensinando uma criança a se alimentar como eles? O preço de uma criança trocada, imagino — você conhece a velha lenda sobre pessoas estranhas que deixavam suas crias nos berços em troca dos bebês humanos que raptavam. Pickman estava mostrando o que acontece às crianças raptadas — como é a vida delas — e então eu comecei a ver uma semelhança pavorosa entre os rostos humanos e os inumanos. Pickman, com todas as gradações de morbidez entre o manifestamente inumano e a humanidade degradada, estabelecia uma linhagem e uma evolução sardônica. As criaturas caninas descendiam de humanos!

Eu mal havia me perguntado o que aconteceria às crias daqueles seres deixadas ao cuidado de humanos quando avistei uma pintura que materializava esse mesmo pensamento. Era o interior de uma antiga casa puritana — um cômodo com inúmeras vigas e gelosias, um arquibanco e outros móveis desengonçados do século XVII, com toda a família sentada enquanto o pai lia uma passagem da Bíblia. Todos os rostos, com a exceção de um, tinham uma expressão nobre e reverente, mas aquele um refletia o escárnio das profundezas. Era o rosto de um garoto, sem dúvida tido por filho daquele pai tão devoto, mas que na verdade tinha parentesco com os seres impuros. Era a outra criança trocada — e, num espírito de suprema ironia, Pickman havia pintado o rosto do garoto com notável semelhança ao seu próprio.

Nesse ponto Pickman já havia acendido uma lamparina no cômodo ao lado e, com excelentes modos, segurou a porta aberta para que eu passasse; perguntou se eu gostaria de ver seus “estudos modernos”. Eu não tinha conseguido comunicar a ele as minhas impressões — o pavor e a repulsa me emudeciam — mas acho que ele entendeu o que se passava e considerou tudo aquilo um grande elogio. E mais uma vez, Eliot, faço questão de repetir que não sou nenhum maricas que sai gritando ao ver qualquer coisa que se afaste um pouco do trivial. Sou um homem de meia-idade, sofisticado, e você me viu na França e sabe que não me deixo afetar por qualquer coisa. Também não esqueça que eu mal havia recuperado o fôlego e me acostumado àquelas figuras pavorosas que transformavam a Nova Inglaterra colonial em um anexo do inferno. Mas, bem, apesar de tudo isso, o cômodo seguinte me fez soltar um grito, e precisei me agarrar ao vão da porta para não cair. O primeiro aposento mostrava grupos de ghouls e de bruxas à solta no mundo de nossos antepassados, mas esse outro trazia o horror para a nossa vida cotidiana!

Meu Deus, como aquele homem pintava! Ele tinha um estudo chamado Acidente no metrô em que um bando das criaturas vis saía de alguma catacumba desconhecida por uma rachadura no piso da estação na Boston Street e atacava a multidão de pessoas que aguardava na plataforma. Um outro mostrava um baile entre os túmulos de Copp’s Hill, com uma paisagem contemporânea ao fundo. Além disso, havia inúmeras cenas em porões com monstros passando através de buracos e frestas na cantaria e rindo agachados atrás de barris ou fornalhas enquanto esperavam a primeira vítima descer as escadas.

Uma tela repugnante parecia mostrar uma parte de Beacon Hill tomada por exércitos dos monstros mefíticos enfiados em inúmeras tocas que conferiam ao chão o aspecto de um favo de mel. Bailes nos cemitérios de hoje eram temas recorrentes, e uma outra composição me chocou mais do que todas as outras — uma cena no interior de uma arcada desconhecida, onde inúmeras criaturas amontoavam-se em torno de uma outra, que tinha nas mãos um famoso guia de Boston e estava sem dúvida lendo em voz alta. Todos apontavam para uma certa passagem, e cada um daqueles rostos parecia tão desfigurado pelas risadas epilépticas e reverberantes que eu quase pude ouvir os ecos demoníacos. O título da obra era Holmes, Lowell e Longfellow enterrados em Mount Auburn.

Enquanto aos poucos eu me recompunha e habituava-me ao segundo aposento de crueldade e morbidez, comecei a analisar algumas características da minha repulsa. Em primeiro lugar, disse eu para mim mesmo, aquelas coisas me repeliam devido ao caráter absolutamente inumano e à crueza impiedosa que revelavam em Pickman. O sujeito deveria ser um inimigo ferrenho de toda a humanidade para sentir tamanho júbilo com a tortura de carnes e miolos e a degradação do invólucro mortal. Em segundo lugar, me aterrorizavam justamente por causa de sua grandeza. Aquele era o tipo de arte que convence — ao ver as pinturas, víamos os próprios demônios e sentíamos medo. E o mais estranho era que Pickman não obtinha esse efeito com requintes fantásticos ou bizarrias. Não havia elementos borrados, distorcidos ou estilizados; os contornos eram nítidos e realistas, e os detalhes, executados à perfeição. E os rostos!

Não era a simples interpretação de um artista o que víamos; era o pandemônio encarnado, claro e objetivo como um cristal. Céus! Aquele homem não era um romântico ou um fantasista, não! Ele sequer tentava representar o caráter inquieto, prismático e efêmero dos sonhos; em vez disso, com frieza e sarcasmo, refletia um mundo de horror perene, mecanístico e bem-estabelecido, que ele enxergava com abrangência, brilhantismo, objetividade e decisão. Só Deus sabe onde aquele mundo poderia estar, ou onde Pickman teria vislumbrado as formas blasfemas que andavam, corriam e arrastavam-se por lá; mas qualquer que fosse a assombrosa origem das imagens, uma coisa estava clara. Pickman era, em todos os sentidos — na composição e na execução — um realista talentoso, esmerado e quase científico.

Meu anfitrião conduziu-me pelas escadas até o porão onde ficava o estúdio propriamente dito, e eu me preparei para mais cenas demoníacas em meio às telas inacabadas. Quando chegamos ao fim da úmida escadaria ele virou a lanterna para um canto do amplo espaço à nossa frente, revelando um contorno circular de tijolos que sem dúvida era um grande poço no chão de terra batida. Chegamos mais perto e eu vi que o poço deveria ter um metro e meio de diâmetro, com paredes de uns trinta centímetros de espessura a cerca de quinze centímetros do chão — uma sólida construção do século XVII, a não ser que eu estivesse muito enganado. Aquilo, disse Pickman, era o tipo de coisa sobre as quais vinha falando — um acesso ao sistema de túneis que existia sob o morro. Percebi quase sem querer que a abertura do poço não estava cimentada, e que um disco de madeira fazia as vezes de tampa. Ao pensar nas coisas que aquele poço evocava se os comentários de Pickman não fossem pura retórica, estremeci de leve; então me virei para subir mais um degrau e atravessar uma porta estreita que conduzia a um aposento bastante amplo, com piso de madeira e equipado como estúdio. Uma lamparina a acetileno providenciava a iluminação necessária para o trabalho.

As telas inacabadas sobre os cavaletes ou apoiadas de encontro à parede eram tão macabras quanto as do andar superior, e demonstravam a apurada técnica do artista. As cenas pareciam esboçadas com extremo cuidado, e os contornos a lápis denunciavam a técnica minuciosa que Pickman usava para obter a perspectiva e as proporções corretas. O homem era genial — e digo isso agora, mesmo sabendo de tudo o que eu sei. Uma enorme câmera fotográfica em cima de uma mesa chamou a minha atenção, e Pickman me disse que a usava para fotografar os cenários e pintá-los a partir das fotografias, no estúdio, em vez de sair carregando toda a sua parafernália pela cidade. Ele achava que uma fotografia servia tão bem quanto um cenário ou um modelo real, e declarou que as usava com bastante frequência.

Havia algo de muito perturbador naqueles esboços nauseantes e monstruosidades inacabadas que escarneciam ao nosso redor, e quando Pickman de repente levantou o pano que cobria uma enorme tela no lado mais afastado da luz eu não consegui evitar um grito — o segundo que soltei naquela noite. O grito ecoou e ecoou pelas arcadas tenebrosas do antigo e nitroso porão, e precisei sufocar uma reação impetuosa que ameaçava irromper como um surto de gargalhadas histéricas. Misericórdia! Eliot, eu não sei o quanto era real e o quanto era delírio. Não me parece possível que a Terra abrigue um sonho como aquele!

Era uma blasfêmia colossal, inominável, com olhos em brasa, e trazia nas garras ossudas algo que podia ser um homem ao mesmo tempo em que lhe roía a cabeça como uma criança mordisca um doce. A criatura estava meio agachada, e dava a impressão de que a qualquer momento poderia largar a presa em busca de uma refeição mais suculenta. Mas para o inferno com tudo, não era o tema demoníaco o que fazia daquela pintura uma fonte imortal de pavor — nem sequer o rosto canino com orelhas pontudas, olhos injetados, nariz achatado e lábios salivantes. Não eram as garras escamadas nem o corpo recoberto de mofo nem os cascos — não, mesmo que alguns desses elementos pudessem ter levado um homem impressionável à loucura.

Era a técnica, Eliot — aquela técnica ímpia, maldita, sobrenatural! Assim como eu estou vivo, em nenhuma outra ocasião vi o sopro da vida tão presente em uma tela. O monstro estava lá — roendo com raiva e com raiva roendo — e eu sabia que só uma suspensão das leis da Natureza poderia facultar a um homem pintar uma coisa daquelas sem ter um modelo — sem vislumbrar o mundo das profundezas jamais vislumbrado pelos mortais que não venderam a alma ao Diabo.

Preso com um percevejo a um canto vazio da tela havia um papel enrolado — provavelmente, imaginei, uma fotografia que Pickman estava usando a fim de pintar um cenário tão hediondo quanto o pesadelo que deveria incrementar. Estendi a mão para desenrolá-lo e ver do que se tratava quando, de repente, vi Pickman dar um sobressalto tão grande como se houvesse levado um tiro. Ele vinha prestando muita atenção aos sons ambientes desde que o meu grito de horror despertou ecos estranhos no porão escuro, e naquele instante pareceu levar um susto que, embora pequeno em relação ao meu, era de natureza muito mais física do que espiritual. Pickman sacou um revólver e fez um gesto pedindo silêncio, então deixou o aposento rumo ao porão principal e fechou a porta atrás de si.

Acho que fiquei paralisado por um instante. Atentando aos sons como Pickman, julguei ter ouvido um leve rumor em algum lugar, e uma série de grunhidos ou batidas em uma direção que eu não conseguia determinar. Pensei em ratos gigantes e estremeci. Então sobreveio um ruído que me deu calafrios pelo corpo inteiro — um ruído furtivo, incerto, embora nem eu saiba ao certo como pôr isso em palavras. Era como o som de madeira caindo na pedra ou em tijolos — madeira em tijolos — no que isso me fez pensar?

O ruído voltou, mais alto. Na segunda vez tive a impressão de que a madeira havia caído um pouco mais longe do que na primeira. Logo depois ouvi um rangido estridente, uma frase incompreensível de Pickman e a descarga ensurdecedora dos seis cartuchos do revólver, deflagrados de modo espetacular, como um domador de leões atira para o alto a fim de impressionar a plateia. Um grunhido ou um chiado e a seguir uma batida. Então mais uma vez o atrito de madeira contra tijolos, uma pausa, e porta se abriu — e nesse ponto eu confesso que dei um sobressalto violento. Pickman reapareceu com o revólver fumegante, amaldiçoando os ratos inchados que infestavam o antigo poço.

“Nem o diabo sabe o que eles comem, Thurber”, disse ele, sorrindo, “afinal esses túneis arcaicos se ligavam a cemitérios e covis de bruxas e orlas marítimas. Mas, seja o que for, deve ter acabado, porque eles estavam loucos para sair. Acho que o seu grito os deixou agitados. É melhor tomar cuidado nesses lugares antigos — nossos amigos roedores são a única desvantagem, mesmo que às vezes eu os considere úteis para criar a atmosfera ideal.”

Bem, Eliot, esse foi o fim da minha aventura noturna. Pickman tinha prometido me mostrar o estúdio, e Deus sabe que ele cumpriu a promessa. Tenho a impressão de que depois ele me conduziu para longe daquele emaranhado de vielas por um outro caminho, pois quando avistamos um poste de iluminação estávamos numa rua meio familiar com fileiras monótonas de condomínios e casas antigas. Era a Charter Street, mas eu ainda estava muito impressionado para notar a altura exata. Já era tarde demais para pegar o trem elevado, e assim caminhamos até o centro pela Hanover Street. Lembro bem daquele muro. Da Tremont pegamos a Beacon, e Pickman me deixou na esquina com a Joy, de onde parti. Nunca mais falei com ele.

Por que eu me afastei? Não seja tão impaciente. Espere até eu pedir um café. Já bebemos um bocado, mas eu ainda preciso tomar alguma coisa. Não — não foi por causa das pinturas que vi naquele lugar; mas eu juro que elas seriam o suficiente para causar o ostracismo de Pickman em nove de cada dez lares e clubes de Boston, e acho que agora você deve entender por que não entro mais em metrôs nem em porões. Foi — foi por causa de uma coisa que eu achei no bolso do meu casaco na manhã seguinte. Era o papel enrolado que estava preso àquela horrível tela no porão, sabe; a coisa que eu imaginei ser uma fotografia de alguma cena que ele pretendesse usar como cenário para o monstro. O último susto veio quando eu estava estendendo a mão para desenrolá-lo, e acho que inadvertidamente o pus no bolso. Ah, aqui está o café — tome-o puro, Eliot, se você for capaz.

Sim, foi por causa daquele papel que eu me afastei de Pickman; Richard Upton Pickman, o maior artista que eu conheci — e o ser mais asqueroso a ultrapassar os limites da vida rumo às profundezas do mito e da loucura. Eliot — o velho Reid tinha razão. Pickman não era humano. Ou ele nasceu em uma estranha região sombria, ou então descobriu um jeito de abrir os portais secretos. Mas agora não vem ao caso; Pickman desapareceu — em meio às trevas fabulosas que tanto gostava de visitar. Escute, vamos acender o lustre.

Não me pergunte ou sequer faça conjecturas a respeito do que eu queimei. Também não me pergunte o que havia por trás daqueles ruídos parecidos com os de toupeiras que Pickman fez questão de atribuir aos ratos. Você sabe, existem segredos que podem ter sobrevivido desde os antigos tempos de Salem, e Cotton Mather fala sobre coisas ainda mais estranhas. E você lembra de como as pinturas de Pickman eram realistas — de como todos nós nos perguntávamos de onde ele tirava aqueles rostos.

Bem — aquele papel não era a fotografia de um cenário. Mostrava simplesmente o ser monstruoso que ele estava pintando naquela tela horrenda. Era o modelo de Pickman — e o cenário ao fundo era apenas a parede do estúdio no porão. Mas por Deus, Eliot, era uma fotografia!