terça-feira, 24 de outubro de 2017

100 anos depois...

Pôster soviético exata a classe trabalhadora
Quem não sente saudade da União Soviética não tem coração; quem a quer de volta não tem cérebro - Vladimir Putin.

Satirizado por Orwell em seu livro A Revolução dos Bichos, a Revolução Russa completa 100 anos essa quarta-feira. Em 1917, o mundo ainda mergulhado na Primeira Guerra foi surpreendido pela rápida derrocada de um dos impérios mais antigos e longevos da Europa - os Romanov governavam havia mais de três séculos.

O texto não é focado na tomada do poder em si, mas seus desdobramentos culturais. Vamos a eles.

O termo revolução é usado para indicar uma grande transformação: uma série de fenômenos que processam uma mudança sensível de qualquer natureza, seja de modo progressivo, contínuo, seja de maneira repentina. Um sinal da mais óbvio da autenticidade de um movimento político é a capacidade de inspirar grandes obras de literatura. Um exemplo de revolução foi o Círculo Petrashevski, um grupo intelectual progressista que discutia o que se tornaria a alta literatura russa - sua época de ouro.

Como já foi dito mais detalhadamente em outro artigoa relação entre política e literatura é bem interessante por ambas fazerem paralelos: primeiro cria-se a cultura imaginativa para criar-se depois a cultura política. Foi no maior período criativo da literatura russa com Dostoiévski, Tolstói e Gorki onde se começou a criticar o governo czarista e de seus respectivos funcionários - além de explanar a confiança de um misticismo presente da nação que a protegia de uma espécie de materialismo Ocidental. Essas críticas pavimentaram as manifestações e a chegada de Lênin ao poder, se tornando primeiro líder da URSS.

Por meio de seus livros, esses temas entravam na cultura superior da sua época e nas conversações pessoais de milhões de leitores. A maioria deles - o governo, os funcionários, a classe dominante - sempre foram retratados de forma caricata e desumana, sempre alheio aos fatos do cotidiano da população. Essa espécime narratológica ia acompanhar todos os socialistas em seus processos criativos: Jorge Amado, Patrícia Galvão (Pagu), Antônio Callado - todos grandes nomes nacionais.

Com o começo da repressão e do controle da União Soviética, a literatura que era engajada se tornou uma literatura de resistência. Livros como Nós de Zamiatin e o próprio Dostoiévski com Os Demônios começam a ser censurados, por mostrarem mesmo que indiferente, que o regime nega a liberdade e que abre a reforma do homem pelo sistema político que o integra - o partido se torna maior que o indivíduo. A cultura sobrevive no subterrâneo com Zamiatin, Bukovski, Ivan Búnin, Varlam Chalámov e os irmãos Arkádi e Boris Strugátski.

A representação literária ganhou espaço na economia. O que sucedeu na cultura literária e filosófica se reproduziu economicamente. Os críticos dos czares fecharam os olhos para as atrocidades burocráticas e autoritárias vindo das classes mais altas - o oprimido se tornava opressor. A sociedade soviética se torna similar a de Oceania em 1984: massacrada pelo governo. Corta-se o senso histórico, o senso da linguagem, o senso da cultura: desarmando intelectualmente a população. Desarmando intelectualmente, o caminho do Grande Irmão (vulgo Partido Comunista) foi aberto para outras medidas sem nenhuma resistência, como medidas econômicas e físicas - vide a fome na Ucrânia e as invasões a Polônia.

De lá para cá a alma russa foi dividida em duas: uma que quer, após a Guerra Fria, se tornar européia, seguindo os passos de Tolkien ou se virando ao misticismo da época de ouro da cultura russa. E nessa divisão quem mais perde é o país, que entra em decadência, não tendo mais nenhum grande símbolo literário contemporâneo. Um estado triste para uma das culturas mais ricas da humanidade.