Não é a primeira vez que surge na história a tendência a colocar o homem numa situação secundária, a hipovalorizá-lo, a virtualizar a sua significação, ao mesmo tempo que se valorizam as coisas. O que assistimos hoje não é algo sem paralelo na história. Assim aconteceu muitas vezes, e provocou as mesmas ênfases opositivas e as mesmas reviravoltas na maneira de o homem apreciar a si mesmo.
Desde o Renascimento nota-se que, ao lado de uma humanização pretendida na cultura, deu-se uma constante desumanização do homem, à proporção que a economia feudal passava a ser superada pela economia mercantil, industrial e financeira, em que as cifras passaram a ser o sinal timológico principal e que os valores monetários móveis passaram a significar a posse do kratos social mais elevado.* Desde então a quantidade começou a predominar sobre a qualidade, o quantitativo passou a superar o qualitativo. A maquinaria, o desenvolvimento técnico, a perda de significação econômica do artesanato, o proletariado industrial, as grandes empresas, as unidades econômicas poderosas e monopolizadoras, a perda da significação humana acompanham paralelamente, provocando as naturais reações, porque a história humana é sempre o campo de uma luta antinômica entre o positivo e o negativo, entre o quantitativo e o qualitativo, entre o sagrado e o profano, entre, em suma, os valores positivos e os opositivos, com as sedimentações viciosas intercalares entre eles. Não se quer dizer que tais acontecimentos avassalem totalmente o âmbito social, mas apenas que eles se tornam predominantes numa camada atuante da sociedade, a quem cabe um papel de orientá-la também. É inegável que as mais altas personalidades, as cerebrações mais enérgicas não pactuam com essa desumanização. Sem dúvida que os apóstolos da desumanidade são sempre os mais deficientes, mas, também, de uma atividade perigosíssima e capazes de dominar vastos setores sociais, encontrando sempre adeptos dóceis aos seus ensinamentos.
A ênfase que se deu em nossos dias aos estudos axiológicos é um sinal da reação à excessiva desumanização do homem no século dos grandes desumanizadores: Lênin, Stálin, Hitler, Mussolini e outras figuras menores, e uma sequela de intelectuais equívocos, que contribuem com o ludíbrio da sua inteligência fantasmagórica para trabalhar em favor dessa desumanização, que a técnica poderosa, a desintegração atômica, as conquistas científicas, a megatérica construção de um poderio econômico e militar, que é um Moloc a devorar vidas e a ameaçar a destruição final, cooperam para que essa desumanização cresça.
O artista, que é quase sempre um brincalhão com coisas sérias, também contribui ludicamente para a desumanização na arte, que se torna quantitativista, e também uma plêiade de pseudossábios, de mentes de inteligência postiça põem-se a cooperar pelo cibernetismo da inteligência, a ponto de se convencerem de que o homem já não precisa do homem, e pode ser um troço vivo, capaz de gozar dos estupefacientes deliciosos, que o seu falso progresso oferece.
Eis um campo bem vasto para investigar na história de todos os povos e nos dias que correm, que é algo que nos aponta sinistros sinais de um niilismo avassalador. Todos anunciam o naufrágio, esses são-joões-batistas da catástrofe... É mister denunciá-los e combatê-los.
*O autor retoma a etimologia utilizada em seções anteriores desta obra, valendo-se de kratos, na acepção de poder (A Superioridade da Força sobre o Direito), e relacionando timológico com thymos, radical de estimar, com o mesmo valor de estimativa, pois designa um tipo de mesura mais superficial do que o axiós (Exploração Viciosa do Esporte), que estaria na raiz mesma da formação dos valores (axiologia), concepção que será desenvolvida no parágrafo seguinte. (N. E.)