por Rodrigo Kmiecik
Certa vez Michael Moorcock, consagrado autor da saga de Elric de Melniboné e outros clássicos da fantasia e ficção científica, acusou J.R.R. Tolkien de ser um “cripto-fascista”, devido aos temas conservadores e moralistas em sua obra. De fato, o conservadorismo cristão da classe média inglesa é facilmente identificável na obra do professor, especialmente em “O Senhor dos Anéis”, mas chamá-lo de “cripto-fascista” é, no mínimo, um exagero talvez até maldoso e de caráter pessoal de Moorcock.
De qualquer forma, salvo o romantismo crítico de Moorcock, suas opiniões em relação aos elementos conservadores na obra de Tolkien são muito úteis para compreender uma nova visão a respeito do épico do Um Anel e, mais ainda, para entender as ideias intrínsecas à ficção fantástica de Michael Moorcock. Em diversas entrevistas este autor manifestou-se como um anarquista; como afirma no livro “Mythmakers and Lawbreakers: Anarchist Writers on Fiction”: “estive atraído por ideias anarquistas desde os 17 anos, sofisticando meu pensamento político lendo especialmente Kropotkin”.
Estes ideais anarquistas estão impregnados na obra de Moorcock, como o próprio comenta no livro supracitado: “minha ficção age em função de permitir aos leitores decidirem autonomamente suas próprias atitudes morais”. O ponto central deste tema para essa argumentação é não apenas a autonomia do leitor sobre os personagens, mas o que os personagens são em sua materialidade moral nos textos de Moorcock; apesar de ambíguas e envoltas em brumas de interpretação, as ações morais dos personagens de Moorcock seguem uma linha mais ou menos definida pelo próprio pensamento moral e político do autor, obviamente, ou seja, o anarquismo.
Portanto, para a reflexão que vem a seguir, devemos entender Elric de Melniboné como um “herói” essencialmente anarquista, completamente autônomo moralmente, que vaga no limbo entre a razão e a emoção, como todos os seres humanos. Na dita alta fantasia, escapa-se um pouco deste realismo moral que Moorcock propõe. Ao contrário do questionável Elric, em obras como “O Senhor dos Anéis” ou genéricos, protagonistas geralmente são heróis em suma essência, motivados ou por uma paixão completa, ou por uma razão desumana, que os afasta da realidade e pinta sua moralidade com contornos bem definidos. Este é o caso de Aragorn, por exemplo, que carrega razões e paixões inabaláveis, todas envoltas em atos de amor e heroísmo pelo que é certo.
Em “Elric de Melniboné” isto é simplesmente impossível pelo fato de que não existe “o certo” no mundo de Moorcock. Enquanto Tolkien nos apresenta um mundo maniqueísta, tomado pela dualidade da luta entre Bem e Mal, Moorcock apresenta um panorama mais cinzento de perspectivas e ações. Em diversos contextos, é difícil saber como o príncipe feiticeiro de Melniboné irá agir. Irá aliar-se à um bando de forasteiros ou irá chaciná-los por uns goles de vinho fresco e alimento? Nunca se sabe. Esse motivo narrativo será levado ao extremo por autores como Karl Edward Wagner, em seus livros do espadachim Kane, mas é Moorcock quem começa a firmar as bases deste âmbito na literatura de fantasia.
Karl Edward Wagner criticou Moorcock justamente pelo oposto: o autor americano entendia o mundo de Elric como algo ainda muito dualista, pautado na lógica de Ordem x Caos que, para Wagner, pouco se diferenciava do clássico Bem x Mal. Sinto necessário discordar de Wagner. Explico. No mundo de Tolkien, a estrutura Bem x Mal é uma luta teleológica, ou seja, ela começa com um fim já bem definido, quase profético. Assim, em Tolkien há um vencedor definido, e este vencedor é o Bem. Ele triunfa sobre o Mal e as coisas são restauradas, a ordem passa a imperar. Em Moorcock o embate entre Ordem e Caos não tem valores teleológicos, não existe fim definido; tudo é cercado pela imprevisibilidade. E o papel do Campeão Eterno – o qual Elric é em seu plano cósmico – é simplesmente balancear Ordem e Caos, sem jamais subjugar uma delas em prol de um bem maior que é certo por excelência. Podemos terminar este argumento com as próprias palavras de Moorcock: “frequentemente meus personagens conquistam o balanço entre Ordem e Caos pois recusam-se a servir qualquer coisa, apenas sua própria consciência”.
Há quem diga que Conan, de Robert E. Howard, se encaixe nas condições amorais da qual falamos aqui, mas o bárbaro possui um código de conduta até bem definido de acordo com sua visão de mundo, bondoso com os indefesos, implacável contra os cruéis. Moorcock subverte essa ideia, Wagner a extrapola. Tolkien apenas a deixa de lado.
Agora tendo definido bem o viés da ficção de Michael Moorcock e J.R.R. Tolkien, partimos para o ponto central deste texto: o caráter dos heróis de cada autor em suas obras-primas. Tanto em Elric como em “O Senhor dos Anéis”, temos dois grandes heróis aristocratas – aqui utilizo o termo herói para designar tanto Elric quanto Aragorn, apesar de Elric ser um anti-herói, como define o próprio Moorcock: “o anti-herói é aquele que tradicionalmente se opõe à toda a moralidade estabelecida no status quo.” Apesar disso, tomemos o termo apenas para designar o personagem que conduz os rumos centrais da estória. Além disso, sabemos que na obra de Tolkien existem vários protagonistas, e pode-se tomar Frodo ou Sam como heróis da história; porém, como este texto visa uma comparação entre os personagens aristocratas e seus desdobramentos, deixamos de lado os hobbits e focaremos no glorioso herdeiro de Gondor.
A frase acima carrega uma ironia que nos trás a uma primeira observação à obra do professor Tolkien. Portanto, vamos compreender as ideias centrais do viés moral de sua ficção. Os temas recorrentes são uma intensa busca pela restauração da antiga Ordem que está ameaçada ou foi quebrada; a viva memória sobre as glórias do passado e uma ânsia por sua recuperação no tempo presente, como se as mudanças e novidades da modernidade alarmassem o status quo vigente. Os hobbits devem permanecer em seus casebres, tomando chá e fumando seus cachimbos, em paz e longe do mundo exterior, isolado em sua ilha, como um bom inglês conservador o faria. Afinal, quantas milhares de vezes Bilbo não sente saudades de sua quente e seca toca de hobbit?
Além disso, outro fator decisivo é o louvor às linhagens, ao valor que se dá a elas. Isso pode ser, dentre tantos outros motivos, uma influência clara da Literatura medieval da qual Tolkien muito apreciava e muito injetava em suas obras. O apego ao Nome, aos títulos do reino ou do país, a importância magnânima de ser um descendente de um povo que um dia, no passado distante, teve dias de glória na ilha de Númenor.
“Ele é Aragorn, filho de Arathorn, e descende, através de muitas gerações, de Isildur, filho de Elendil, de Minas Ithil. É o chefe dos dúnedain no Norte; poucos restam desse povo”. Isso é dito por Elrond em uma passagem em “A Sociedade do Anel”, quando esta é formada em Valfenda. No filme, Legolas é quem adapta esta fala: “Ele é Aragorn, filho de Arathorn, e você o deve respeito”. Percebam o exaltar à linhagem aristocrata. Um conservadorismo típico da classe média inglesa, de raízes fincadas na literatura medieval, dos grandes personagens, que Tolkien traduz em bravura e heroísmo em sua obra.
Aron Gurevich, historiador russo autor do já clássico “Categorias da Cultura Medieval”, faz uma breve observação sobre as mentalidades da literatura oral e escrita deste período, que muito se faz útil para entendermos sua influência direta no caráter da ficção tolkieniana. Segundo o historiador, “[na literatura medieval] as pessoas são generalizadas ou estereotipadas, e não individualizadas. Ao invés de penetrar nos múltiplos fenômenos vivos, o artista tem como ideia inicial a inevitável oposição entre o sublime e o comum, uma oposição polarizada entre o Bom absoluto e o Mau absoluto.”
Exemplos claros são Aragorn, um “bom absoluto”, daqueles paladinos mais cafonas de qualquer RPG, e do outro lado Sauron, um “mau absoluto”, o chefão final. Podem argumentar em discordância sobre as ambiguidades de personagens como Saruman ou Boromir, que transitam entre Bem e Mal em diversas partes da narrativa. Entretanto, essas mudanças nunca são em função de decisões morais ligadas à razão, mas sim inseridas na cosmovisão cristã de seu autor, ou seja, transições devido ao “pecado” da cobiça do Anel, dos temores que rodeiam o Mal à espreita. Apesar de haver breves ambiguidades, portanto, estas ainda se inserem na lógica dualista e cristã.
Voltando agora à Moorcock, prestemos atenção à sua fala em “Mythmakers and Lawbreakers: Anarchist Writers on Fiction”: “meus livros frequentemente lidam com heróis aristocratas, deuses e coisas do tipo. E todos estes heróis acabam chegando à conclusão de que não deveriam seguir nem deuses nem mestres, mas tornarem-se seus próprios mestres”. Isso define bem as coisas. Elric de Melniboné é um aristocrata, de sangue melniboneano, um dos últimos de sua linhagem, do império mais poderoso que já reinou sobre o mundo. E, assim como em “O Senhor dos Anéis”, o poderoso império está ruindo, decadente, bem como Gondor antes da derrota de Sauron. Entretanto, Moorcock nos traz uma visão contemporânea e distante dos conservadorismos. Elric não busca restaurar a antiga ordem político-social e nem a entende de modo romântico como uma memória gloriosa que deve ser restituída. O feiticeiro reconhece os problemas de seu povo e aceita a decadência de seu império. Em diversos momentos em “Elric de Melniboné” e “O Navegante nos Mares do Destino”, os dois primeiros livros de sua saga, o personagem reflete a respeito no novo futuro, da ascensão dos Reinos Jovens dos humanos que um dia foram subjugados pelos cruéis príncipes melniboneanos.
Podemos entender que ambas as sagas lidam com um mundo em transformação, que fomenta a estória, seja a guerra, a queda de reis e impérios, ascensão de novos povos, etc. O ponto central da questão é como os autores enxergam essas mudanças. Tolkien, um conservador que escreve na primeira metade do século XX, não consegue ceder às mudanças e, para ele, qualquer perturbação do atual status quo é um perigo. Até mesmo as aventuras através das estradas que levam para sabe-se lá onde só existem porque culminarão em restituir a ordem. Bilbo e Frodo não exploram a Terra-Média para conhecer o mundo; o fazem com a motivação teleológica de defender a ordem, seja participando da batalha contra um terrível dragão, seja derrotando o Senhor do Escuro. Já Moorcock, um anarquista que escreve nos anos 60 e 70, de revoluções sociais lisérgicas e impactantes em todos os seguimentos da sociedade humana, consegue trazer ares de juventude para limpar a poeira envelhecida deixada por Tolkien. As mudanças em Moorcock são encaradas como boas, inevitáveis e até necessárias; a antiga ordem jaz em ruínas, e, no último ato da trágica saga de Elric de Melniboné, ele próprio alia sua espada à luta que selaria o sepulcro de Ymrrir, a Cidade do Sonhar, capital de Melniboné. Elric compreende a antiga ordem e todos seus defeitos, ele limpa e retifica os erros da memória, desmistifica as narrativas construídas sobre o passado pelos olhos do presente, e consegue entender que não há mais lugar para a velha ordem um mundo onde os Reinos Jovens surgem. O melniboneano inclusive almeja aprender com os humanos destes reinos, partindo para lá no final do primeiro livro, buscando tornar-se “um novo homem”.
Portanto, podemos concluir que Elric e Aragorn são dois gumes de uma mesma espada aristocrática. Ambos nobres, um cortando para as ideias contemporâneas de mundo, o outro para as ideias mais antigas e conservadoras a respeito da sociedade. O objetivo central aqui foi propor uma reflexão a respeito do que podemos aproveitar destes textos que vão muito além de escapismos, buscando assim absorver, descartar ou reinventar ideias e interpretações que sirvam para as nossas vidas no tempo presente. São temas muito pertinentes e bastante debatidos hoje em dia, como o conservadorismo. Na minha opinião, esses temas perpassam explicitamente nas linhas de “O Senhor dos Anéis”, e são raramente criticados – muito pela forma como as obras de fantasia são encaradas, somadas ao amor cego da maioria dos leitores em relação a estes textos.
Observo constantemente que a maioria dos grandes expoentes de vertentes literárias, como foi J.R.R. Tolkien para a alta fantasia, H. P. Lovecraft para o horror moderno, Robert A. Heinlein para a ficção científica, entre tantos outros, acabam criando uma estranha aura de proteção ao redor dos próprios narizes; parecem repousar sobre um pedestal e, a qualquer ameaça de crítica ou simples desgostar, uma multidão de bípedes surge em sua defesa, brandindo as espadas do senso comum. Chega ser injusto com nossa própria consciência histórica encarar essas obras como algo merecedor de proteção, em nome do legado de seus autores ou influências. Como disse Jacques Le Goff certa vez, o dever da História é recuperar a memória e retificar seus erros. Como seres pensantes, também devemos recuperar a Literatura e retificar seus erros, salvo anacronismos, da melhor maneira possível, para que as obras não existam apenas como um pedaço de ficção e emoção pairando ao redor, mas também como motivo de reflexão crítica a respeito de seus autores, seus vieses, intenções e desdobramentos nos dias atuais.