segunda-feira, 28 de maio de 2018

Eu só escrevo porque eu viajo para outros... - entrevista Mia Couto


Escritor moçambicano mais famoso no Brasil, Mia Couto é branco, filho de portugueses e parte de uma minoria numérica em um país composto por mais de 95% de negros. O autor fala em sua obra de uma África mestiça que, como faz questão de ressaltar, abriga a maior diversidade genética, biológica, cultural e linguística do mundo.

Em suas histórias, Mia Couto escreve do ponto de vista de negros, brancos, africanos, portugueses, homens e mulheres. Para o escritor, só é possível fazer literatura porque lhe é permitido “viajar para outros”. “A escrita, se for interrogada do ponto de vista de lugar de fala, ela morre. Eu só escrevo porque eu viajo para outros. Eu sou mulher, eu sou criança, eu sou velho, eu sou outros quando escrevo. Se eu só posso escrever naquela competência do meu lugar de fala como compete, eu só falo sobre mim. Então, o que cria a literatura é essa capacidade de ser um outro”, disse o autor em entrevista ao UOL TAB #159 quando esteve no Brasil lançando "O Bebedor de Horizontes".

Na conversa, Mia Couto falou ainda sobre a questão racial em seu país e no Brasil, lembrou sua participação no movimento que lutou pela independência de Moçambique e indicou outros autores conterrâneos para os leitores brasileiros. Confira abaixo a íntegra da entrevista:

UOL: Qual é a África em que Mia Couto vive? E qual é a África que Mia Couto escreve?
Mia Couto: Quando a gente diz que a África é o berço da humanidade, significa que a maior diversidade genética, biológica, cultural, linguística, mora ali. Isso não é só uma afirmação, mas é perceber o significado desse mergulho nesse mundo que continua gerando aquilo que é o grande patrimônio nosso, que é a diversidade.

Esse universo africano que existe nos meus livros é a África que eu vivi, uma África mestiça como todas as outras. Não é pelo fato de eu ter uma origem europeia que eu atravesso esse território da mestiçagem. São misturas entre africanos, entre culturas diferentes da África, portanto são misturas internas, dentro do continente, e são misturas com influências que vêm de fora. O que me interessa é esse território do contato com o outro, essa zona de troca.

Você é filho de portugueses, num país colonizado pelos portugueses e lutou pela independência. Como foi o início da sua relação com Portugal? Mia era visto pelos moçambicanos como moçambicano ou como português? E como Mia se vê nesse contexto?
Há muitas coisas que atravessam a minha relação com Portugal. É uma relação que eu tive que aprender a corrigir, a superar, porque era uma relação de colonizado versus uma potência colonial. E eu tive que aprender a entender e tocar isso, que era esse outro país, Portugal, já depois da independência, depois de eu ter escutado histórias que não ajudaram a superar essa visão do passado.



Você conheceu Portugal só depois da independência?
Eu fui quando era muito pequeno, mas não me lembro dessa viagem, quando meus pais foram uma vez visitar a família. Depois só conheci Portugal quando eu já era bem adulto, já tinha uma pátria, um país pelo qual eu lutei. Mas obviamente a luta nunca foi era contra Portugal, não era contra o povo português. Era contra um sistema político que nos dividia, que nos apartava.

Eu sempre tive essa grande felicidade que os moçambicanos me olhavam como moçambicano, esqueciam da minha cor. Foram pouquíssimos os casos em que me fizeram lembrar que eu tinha uma cor diferente. E a frente [Frente de Libertação de Moçambique] à qual eu pertenci tinha vários brancos e indianos e mestiços e, claro, os negros. É preciso perceber que 95% dos moçambicanos são de raça negra. A nossa luta era para superar esse tipo de divisão, quer seja raça, quer seja étnica – Moçambique tem 25 ou mais etnias diferentes –, quer seja religiosa.


Você já relatou que, no início da militância, se viu em uma reunião onde era o único branco. A cor da pele fazia diferença ali?
Não, eu não senti isso. Eu acho que o que fazia a diferença eram as vivências. Quem estava ali tinha que fazer uma coisa, era muito curiosa. Esse momento foi muito forte para mim. Havia umas 40 pessoas, e todas tinham que fazer a “narração do sofrimento”. Era o tamanho, a dimensão desse sofrimento, que dava a chave para que a pessoa ingressasse no movimento. Havia ali um sofrimento real, eram pessoas que tinham passado fome, tinham sido torturadas, tinham sido presas etc.

Eu não tinha sofrimento nenhum. Comecei a medir meu sofrimento e pensei "Eu tenho que inventar qualquer coisa rapidamente, um sofrimento instantâneo que me surgisse naquela altura". E pensei que talvez houvesse uma grande frase, que seria que eu sofri porque eu vi os outros sofrerem. Mas quando eu cheguei lá, não saiu nada, fiquei paralisado. A pessoa que estava conduzindo a reunião disse "Você é um tal que faz poesia e publica no jornal?". Eu disse "Sou eu". Ele disse "Então pode entrar, nós precisamos de si". E isso foi muito bonito, porque me dava uma dimensão de um movimento que era sensível a essas coisas.

Essa veia artística era importante no movimento. Mesmo no momento de luta, era importante ter poesia?
Sim. As mensagens entre os combatentes eram sempre feitas em poesia. E os dirigentes revolucionários se diziam todos poetas. Era como se fosse obrigatório ser poeta para ser da direção do movimento. Havia essa ideia de que a poesia era uma espécie de mensagem para o futuro. Era um recado que se dava para um tempo que haveria de vir. Era uma espécie de apologia de um mundo novo, que precisava ser mais cantado do que outras coisa.



Você disse que ser branco não fazia muita diferença ali...
Devo retificar uma coisa. Por exemplo, nós podíamos participar nas atividades políticas, ideológicas etc., mas não podíamos participar na luta armada. Nós não podíamos ir para a frente de batalha. E havia razões diversas que nos diziam, havia uma razão de que, se por acaso, um branco fosse morto durante a guerra, isso iria consolidar a ideia de que a propaganda do regime fascista, colonial, era de que a luta era comandada por russos. E, portanto, isso serviria de propaganda para provar que havia russos que estavam de arma na mão combatendo.

Mas eu acho que a razão principal era uma outra. Uma espécie de balanço. Apesar de tudo havia uma força que definia a identidade das pessoas pela raça e dizia "Ok, eles são moçambicanos, mas no momento chave, em que era preciso matar alguém, eles iriam hesitar em matar alguém de sua própria raça".


E essa seria uma luta dos negros?
Essa seria uma luta dos negros.


Houve algum momento em que você se percebeu branco, num país em que mais de 90% das pessoas são negras?
No meu caso, não. Por exemplo, quando eu escrevo uma história, os personagens que surgem são negros. Quando eu tenho que perceber que alguém não é negro, eu tenho que pensar e colocar isso como uma espécie de marca de extensão no texto. Mas a minha imaginação é toda construída nesse outro universo. Aprendi a ser outros.

Eu sou biólogo e trabalhei muito no campo. Quando eu chegava com os meus colegas, eu era o único branco. E as pessoas usam uma expressão que quer dizer "chegaram os brancos". O valungo, no plural, são "os brancos". Os meus colegas também são chamados de valungo. Não tem a tradução exata da cor da pele, mas esse outro estranho é diferente, porque fala português, porque se veste de uma certa maneira, por uma espécie de identidade mais cultural do que da cor da pele. E se você fala a língua local, você é imediatamente incorporado, você já não é um mulungo, ou os valungo. Você é um mulandi, é como se fosse negro. Então, as fronteiras são outras.

Em Moçambique, ser branco também significa ter privilégios que os negros não têm?
Ainda passa muito por isso, sim. Há uma herança que ainda conta, que esses brancos eram filhos de gente que tinha mais privilégios, mais formação acadêmica etc. E herdaram alguma coisa que seria daquilo que seria a riqueza dos pais, dos avós. Mas hoje a maior parte das pessoas que têm privilégios e que são ricas e têm posses, não são brancos.



Você falou que, nos seus livros, normalmente os personagens são negros...
Quando surgem na cabeça, sim, surgem como negros.


Em algum momento isso foi questionado por autores negros ou por leitores negros em Moçambique, numa espécie de questionamento de lugar de fala?
Não. Esse é um debate novo, mesmo no Brasil. É uma coisa que vocês estão a importar de algum lado, não sei de onde, mas desconfio. Mas há escritores negros que se colocam na posição de brancos. Aliás, a escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala, ela morre. Eu só escrevo porque eu viajo para outros. Eu sou mulher, eu sou criança, eu sou velho, eu sou outros quando escrevo. Se eu só posso escrever naquela competência do meu lugar de fala como compete, eu só falo sobre mim. Então, o que cria a literatura é essa capacidade de ser um outro.



Você já disse que Moçambique tinha uma ideia de que o Brasil teria atingido uma democracia racial, o que não é verdade. Como você vê esse Brasil, que está longe dessa democracia racial e ainda reproduz tanto o racismo?
Eu acho que não conheço o Brasil a ponto de poder fazer grandes julgamentos. Mas a impressão que eu tenho é muito superficial, quase turística. Eu venho aqui e percorro aquilo que é só um lado epidérmico do Brasil. Mas dá pra ver que ainda pouco se resolveu desse ponto de vista, do ponto de vista das várias democracias que podem ser nomeadas: raciais, da representatividade da mulher, da aceitação da diversidade brasileira, me parece que ainda há muito a ser percorrido. E há principalmente agora um clima, um ambiente de grande tristeza, uma espécie da afundamento das pessoas que acham que qualquer coisa muito feia está aí e pode crescer.


E você enxerga isso da representatividade nos locais onde você anda, na televisão?
Eu vejo o Brasil muito pelos meus amigos. Eu acho que ainda é preciso fazer uma grande luta ainda, sim. Eu não gosto do termo representatividade, gosto do termo da aceitação dessa diversidade racial que o Brasil tem, ao nível de uma igualdade. Mas, por exemplo, acho que o preconceito, da homofobia, que está ainda muito presente. Mas acho que uma coisa que se vê no Brasil é que é muito mais assumido. Quando sai à rua, se vê muita gente que não tem vergonha, que deixou de ter medo e vergonha de se assumir homossexual, gay lésbica, seja o que for. E isso é sem dúvida uma conquista.


Mas você falava que seus amigos estão preocupados com o quê?
Meus amigos estão preocupados com o Brasil, consigo mesmos. É uma coisa que me deixa um pouco angustiado, porque me parece que eles têm a percepção de que há uma coisa que pode estar a acontecer muito grave, em termos de uma invasão conservadora, de uma possibilidade de uma direita, que é quase uma extrema direita, poder ganhar um grande território no Brasil.

Mas eu acho, e isso agora é uma opinião com uma certa arrogância, eu vi em Moçambique isso. E, no momento em que essas forças têm esse poder crescente, a grande resposta seria uma frente unitária, uma frente que percebe que esse é o grande inimigo, essa redução da liberdade, da cidadania e da capacidade de o Brasil ser livre. E, portanto, é preciso perceber que essas pequenas lutas, que dividem os meus amigos – e que por exemplo passam por essas questões da apropriação cultural, dos debates sobre lugar de fala, sobre o rigor da linguagem, o politicamente correto e divisões partidárias –, me parece que teriam que ser superadas para encontrar uma frente unitária. Por algo maior, porque esse inimigo não está entretido em pequenas discussões.
Eu aceitei fazer uma entrevista para um canal de televisão, não vou dizer o nome, que alguns [amigos] não perdoam. Como se eu tivesse vendido a minha alma a uma estação de televisão. Como se eu tivesse cedido num princípio fundamental. Essa mesma estação de televisão, quando eu vejo o discurso dessa extrema direita, é acusada de comunista. Alguma coisa está confusa aqui.

Você vê alguma diferença no Brasil, no que diz respeito às relações raciais, desde que começou a visitar o país e agora? Há mais negros nas suas plateias hoje, por exemplo?
Vejo, sim. Não sei o quanto isso é representativo, mas acho que isso é visível. Se o Brasil olha melhor para a África, ele olha melhor para si mesmo, para aquilo que é a herança africana que tem dentro de si próprio. E é olhado sem uma tentativa de resgate, de salvação ou de redenção, como se aquela África viesse salvar o Brasil. Não é isso que interessa. O que interessa é ter uma relação tranquila com as Áfricas, com a modernidade africana, que o Brasil continua a desconhecer muito, né?


O senhor é um dos autores africanos mais lidos no Brasil e sempre costuma indicar outros autores africanos. Como é sua relação com outros autores, especialmente moçambicanos?
Ah, é muito boa. Acho que aquela ideia que a gente morre de inveja uns dos outros, um estereótipo sobre as inimizades que se criam entre os autores, não é o caso. Tenho grandes amigos entre os escritores e nós fazemos uma frente única. Aqui eu sempre trago livros dos outros para se eu puder tornar mais visível esses outros colegas, eu faço.

Que outros autores moçambicanos você indica para os brasileiros?
Há muitos jovens, mas vou falar dos da minha geração. Acho que há dois na prosa e um na poesia que eu sugeriria. Um é o Ungulani Ba Ka Khosa, que é meu escritor preferido de Moçambique, e que é pouco conhecido no Brasil. Acho que ele publicou aqui um livro, chamado "Ualalapi". E a Paulina Chiziane, que publicou no Brasil com mais sucesso que o Ungulani. E o Eduardo White, que é um poeta, que morreu há uns quatro, cinco anos, mas tem uma obra muito vasta e que vale a pena conhecer.