Via Revista Aventuras na História |
Em fúria, o cavaleiro o passou pela espada. Apenas para ouvir então o choro da criança, encontrada em meio à confusão, com uma víbora morta ao seu lado. O sangue era da cobra, não da criança e, petrificado, ouviu o último ganido de seu fiel servo, que havia dado cabo da ameaça, salvando sua progenitura.
Diante de um brutal remorso, o cavaleiro fez um santuário para Guinefort, deitando seu corpo a um poço, cobrindo com terra e plantando um bosque em volta. Esse santuário é real: seria visitado por fiéis, pedindo favores ao santo, até os anos 1930, quando finalmente a Igreja Católica fez fazer sua vontade para que fosse destruído. Para eles, era um sacrilégio venerar Guinefort.
Porque, se não ficou claro ainda, Guinefort era um cachorro. Um galgo. E não estava sozinho: no País de Gales, basicamente a mesma história era contada para São Gelert, com um lobo no lugar da víbora. Parece ter sido um plágio criado por um taverneiro espertinho, que plantou uma lápide do “santo” perto de seu negócio. O nome Gelert veio de um santo real humano, que havia sido esquecido.
Há ainda um santo num terreno cinzento entre o homem e seu melhor amigo: o mártir São Cristóvão. Talvez você o conheça pela imagem de um gigante atravessando o menino Jesus por um Rio. No catolicismo, ele é retratado como um homem comum, mas, no cristianismo ortodoxo, ele pode aparecer com a cabeça de um cachorro.
A bizarrice vem de uma confusão com sua região de origem. Essa história começa em Canaã (atual território de Israel, Líbano, Palestina e Síria), onde, segundo a lenda, os homens eram fortes e ferozes. Dois termos hebraicos eram usados para descrevê-los: Cainita (que significa filho de Caim), e sua derivação Cananita. Entre os séculos 6 e 9, os termos se confundiram com outra palavra: Caninita, que significa homem-cachorro. São Cristóvão nasceu no norte de Canaã. Quando a região foi tomada pelos romanos, entre os séculos 3 e 4, acabou preso, e foi descrito pelos captores como um líder caninita. Esse pequeno erro de interpretação pode ter atiçado o imaginário popular – que passou a enxergar Cristóvão como um cachorro gigante.
A maluquice foi aceita porque uma das lendas mais conhecidas da Idade Média falava dos cinocéfalos, um povo com cabeça de cachorro. A tribo onde nasceu Cristóvão, os marmaritas, seria inteira composta de cinocéfalos. Ratramno, um teólogo do século 9, chegou a escrever um tratado questionando se eles tinham alma. Caso tivessem, era obrigação do cristão tentar convertê-los.