Helen Stratton illustration Hans Christian Andersen "Little Mermaid." |
"A Pequena Sereia" foi uma das animações da Disney que mais marcaram a minha infância. Meu pai adorava a música do filme, especialmente "Under the Sea", chegando a usar um gravador pra captar o som do VHS e ter uma cópia da canção. Meu afeto pelo filme, contudo, não sobreviveu ao longo dos anos. Embora "A Pequena Sereia" marque o início da renascença da Disney, esse filme ainda demonstra claramente que aquele estúdio já não era capaz de produzir monumentos visuais como os que criara até 1959, antes que a Xerox ensejasse um empobrecimento brutal na estética das animações. Com o avanço da computação gráfica, longas-metragens mais vistosos seriam produzidos logo em seguida, e pelo menos uma obra-prima seria criada com "O Rei Leão". Contudo, o aspecto acetinado desses filmes me parece sofrer um envelhecimento bem cruel, e nunca mais um longa da Disney conjurou a riqueza atmosférica que caracteriza seus clássicos até "A Bela Adormecida". Aliás, na deprimente situação em que a própria Disney demonstra achar necessário substituir seus filmes, me parece muito sintomático (e não só comercialmente esperto) que ela se esforce em substituir o maior número daqueles sucessos dos anos 90, mirando pouco nas suas obras mais antigas.
Imagem do filme da Disney de 1989 |
No entanto, meu desencanto com "A Pequena Sereia" se dá, acima de tudo, porque esse é o filme mais representativo do empobrecimento ficcionista que a Disney sempre impôs às histórias que adaptou (a única possível exceção ficando por conta do seu "Alice no País das Maravilhas", que não tem nem uma fração da inteligência da obra do Carroll, mas que extraiu dela não um reflexo higienizado, e sim algo que beira um pesadelo de horror hipercolorido). De todas as adaptações açucaradas, diluídas, simplificadas e infantilizadas que a Disney fez (usurpando e imbecilizando até mesmo a noção universal do que seria um conto de fadas), "A Pequena Sereia" permanece como o caso mais grave.
Ilustração de Dorothy Pulis Lathrop, 1922. |
O texto do Hans Christian Andersen é um dos contos de fada mais ricos e profundos da literatura. Mas é também um dos mais vilipendiados por leituras tacanhas e interpretações mesquinhas, quando sequer é lido. Porque quase ninguém sabe que a sereia da velha história não entoa melodias cheias da cafonice da Broadway, mas dança com pés em dor absurda, sangrando sem parar. Ela não vence vilã alguma, e não conquista uma vida com o príncipe que ama, pois o príncipe nem chega a amá-la, e até a recompensa mais chã - a da sobrevivência - é negada aos seus esforços e seus sonhos.
Imagem retirada da Internet |
A sereia de Andersen é o horror pra todos aqueles que só conseguem ler ordens didáticas e sentidos utilitaristas, e que buscam nas histórias não algo a ser descoberto em si mesmos, mas um exemplo alheio que possa ser seguido sem responsabilidade total. Enquanto tantos leem naquela tortura e naquelas frustrações um suprassumo de subserviência machista, e na conclusão do conto nada mais do que histeria cristã, está ali uma verdadeira heroína. Cheia de curiosidade e audácia e paixão, ela suplanta todas as tentações do egoísmo, faz resistir através do sofrimento um amor verdadeiro, capaz do gesto máximo, do auto-sacrifício, e conquista não os valores dum romance qualquer, mas outros, que transcendem a todos nós e às clausuras deste mundo.
Já a Ariel... essa se basta, mesmo, dum bom partido.
A profunda canalhice de quem se revolta pela cor da pele da menina inclui, também, a tolice daqueles que se importam com que cores vestem as sereias mais medíocres, enquanto o mar tem outras, bem mais mágicas.
Imagem do filme soviético Rusalochka de Ivan Aksenchuk (1968) |
Nascido em Porto Alegre, Vasco Py Siegmann trabalha com design gráfico desde jovem. Foi diretor de arte do Fantaspoa de 2008 a 2011, passando pelo curso de Letras da UFRGS. Estudou cultura de horror e literatura fantástica há mais de quinze anos.