O romance de Aluísio de Azevedo de fato se encaixa bem no formato realista. Mas, sabendo que o personagem Brás Cubas escreveu as suas memórias depois de morto e que no século XIX não havia evidências de vida depois da morte (como não as há até hoje, aliás), o jovem leitor se pergunta: como pode ser realista um livro que se chama "Memórias póstumas"?
A pergunta do aluno é inteligente. A obra de Machado nos oferece várias ocasiões para duvidar do realismo que lhe imputam, como a personagem do doutor Simão Bacamarte, o protagonista de "O alienista": ele é o cientista que se vê sempre prestes a revelar a verdade verdadeira aos incautos e não arreda desta auto-ilusão nem mesmo quando encontra tão-somente o seu próprio erro, mostrando-se então a caricatura do realista de carteirinha, daquele que quer nos mostrar a vida como ela é.
Não contente em atacar a concepção realista com seus personagens e metáforas, Machado de Assis a combateu explícita e frontalmente em vários textos críticos.
Na dura crítica que fez a "O primo Basílio", romance de Eça de Queiroz, o escritor brasileiro afirmou categoricamente: voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o realismo; assim não sacrificaremos a verdade estética. Machado ordenou a exclusão do realismo do campo da arte para não sacrificar a verdade estética, isto é, aquela verdade que não esconde do leitor que inventa realidades de papel.
No ensaio A Nova Geração, Machado de Assis afirmou, de maneira mais categórica ainda: a realidade é boa, o realismo é que não presta para nada. Creio que ele não podia ser mais claro. Segundo o autor, o realismo não presta para nada porque sobrepõe à vida um ideal com o qual a vida mesma não concorda.
O realismo quer dobrar a vida à sua perspectiva, mas com isso termina por recusá-la e não por afirmá-la. O realismo quer descrever a vida como ela é, mas faz apenas uma reprodução fotográfica e servil das cousas mínimas e ignóbeis para as tratar com uma exação de inventário, ou seja, para as dispor em gavetas uniformes como se cada acontecimento se reduzisse à dimensão de todos os outros.
Por isso, Machado não perde a chance de reduzir o realismo a uma ironia divertida: porque a nova poética é isto e só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha.
Mas por que, se o próprio Machado de Assis reduziu o realismo a pó de traque, há tantos que ainda insistem em considerá-lo realista?
Na coluna anterior, critiquei a atribuição insistente de "realista" à obra de Machado de Assis apesar de muitas análises que demonstram o contrário, apesar de metáforas óbvias contra o realismo na ficção do próprio escritor, como a do doutor Simão Bacamarte em "O Alienista", e, principalmente, apesar dos ataques explícitos de Machado ao realismo, como aquele em que ele diz que "a realidade é boa, o realismo é que não presta para nada".
Mas por que semelhante insistência? Talvez porque o nível de semelhança com a realidade permaneça sendo o critério fundamental para julgar a obra de arte. Perguntado à queima-roupa por que achou tal ou qual romance bom, o leitor médio responderá ou "ora, porque tem tudo a ver com a realidade" ou "ora, porque tem tudo a ver comigo".
O problema desse critério é que ele é externo à obra literária. Se uma das duas respostas está certa, o livro é ruim, ou seja: não é de ficção. Um texto ficcional parte da realidade, sim, mas para negá-la e criar uma outra realidade. A ficção desconfia por princípio do que se entende por realidade, caso contrário não seria ficção.
Da mesma maneira, um romance não pode ter "tudo a ver" com determinado leitor, como se o escritor estivesse pensando apenas nesse leitor enquanto escrevia a sua história. Assim como o torcedor de futebol se identifica com o artilheiro do campeonato porque gostaria de ser como ele (mas não é de modo algum, ou então não ficaria apenas na arquibancada), o leitor de ficção se identifica com o protagonista de um romance, tanto faz se herói ou vilão, porque gostaria de viver intensamente o que ele parece estar vivendo (embora muito provavelmente não esteja, já que a vidinha de cada um de nós costuma ser bem menos intensa do que a dos nossos heróis de papel).
Falo aqui da "catarse", um dos conceitos mais importantes do estudo de literatura. Como nossa sensação de identidade pessoal é difusa tanto que gaguejamos se de repente nos perguntam "quem é você" e como o personagem ficcional tem normalmente uma identidade forte, de bom grado tomamos emprestada a identidade do personagem que nos comove. Dizendo de outra maneira: a catarse não implica uma identificação do tipo "oh, estou me vendo no espelho das palavras", mas sim uma identificação de outro tipo, pela qual pego emprestada a invenção do escritor para inventar a mim mesmo como uma pessoa diferente, quem sabe melhor pelo menos mais viva!
É como se saíssemos do caminho para nos encontrarmos a nós mesmos depois da leitura. A bela "aniquilação temporária do ser" é condição da melhor leitura, como lembra o escritor C. S. Lewis, autor das "Crônicas de Nárnia", em um trecho que merece ser citado:
"O homem que se contenta em ser apenas ele mesmo e, portanto, ser menos, vive numa prisão. Meus próprios olhos não são suficientes para mim, verei por meio dos olhos de outros. A realidade, mesmo vista por meio dos olhos de muitos, não é suficiente. Verei o que outros inventaram. Até mesmo os olhos de toda a humanidade não são o bastante. Lamento que os animais não possam escrever livros. Ficaria contente em saber que face têm as coisas para os olhos de um rato ou de uma abelha. Ainda mais contente ficaria em perceber o mundo olfativo, impregnado com todas as informações e emoções que contém para um cão. A experiência literária cura a ferida da individualidade sem arruinar seu privilégio. Há emoções de massa que também curam a ferida, mas destroem o privilégio. Nelas, nossos seres isolados fundem-se entre si e afundamos de volta à subindividualidade. Mas, lendo a grande literatura, torno-me mil homens e ainda permaneço eu mesmo. Como o céu noturno no poema grego, vejo com uma miríade de olhos, mas ainda assim sou eu quem vê."
Por isso, Machado de Assis dizia que "o realismo não presta para nada", se ele sobrepõe à vida um ideal estático com o qual a vida mesma não concorda. Explica-se desse modo o pessimismo intrínseco ao realismo, como reconhecem os próprios manuais didáticos. É fácil identificar esse pessimismo na linguagem cotidiana: quando dizemos para Fulano ser "mais realista", na verdade queremos lhe mostrar o que há de mau na realidade à volta e nas pessoas que o cercam (certamente com a única exceção da nossa pessoa, aquela que lhe está abrindo os olhos). Esse pessimismo equivale ao que os políticos chamam ora de "realismo" ora de "pragmatismo" (e que podemos muito bem chamar de "cinismo").
Por isso, Machado de Assis não disse apenas que o realismo não presta, ele disse também que "a realidade é boa", desse modo recusando o pessimismo de que o acusaram tantos. Não por acaso suas últimas palavras, ao morrer com quase 70 anos de idade, foram: "a vida é boa". Enquanto viveu, não se conformou com a tal da realidade, mas também não ficou reclamando pelos cantos nem fazendo denúncias pretensamente indignadas como se fosse o dono da verdade como se fosse um típico realista que acha que só ele enxerga a vida como ela é.
Ao contrário: porque não se conformou com a realidade, procurou mexer nela com a sua ficção, procurou lhe dar a sua forma, ao mesmo tempo irônica e sábia. Ao morrer, então, reafirmou a vida como aquilo que fazemos dela. Como não se contentou em ser apenas ele mesmo, apenas Joaquim Maria, o mulato gago e epiléptico que nasceu e escreveu no país em que certos homens escravizavam outros homens por conta da cor da sua pele, tornou-se "Machado de Assis", o maior escritor brasileiro na minha opinião, o maior escritor do Ocidente.