domingo, 26 de julho de 2020
RUBEM FONSECA E GARCIA-ROZA LADO A LADO - Bolívar Torres
As semelhanças e influências das obras dos dois maiores escritores de ficção policial do Brasil, mortos à distância de um dia
Parece até clichê de algum thriller barato. Na tarde do último dia 15, o Brasil mal havia iniciado o luto por Rubem Fonseca, vítima de um ataque cardíaco, e, menos de 24 horas depois, veio a notícia de que Luiz Alfredo Garcia-Roza não resistira à doença neurológica que o deixara internado nos últimos 12 meses. Os dois maiores nomes da literatura policial brasileira saíram de cena quase simultaneamente. Para aumentar o simbolismo da perda, Fonseca, de 94 anos, e Garcia-Roza, de 84, despediram-se em pleno centenário do primeiro romance do gênero no país — o sucesso editorial O mysterio, publicado em março de 1920 no extinto jornal carioca A folha. O baque veio em dobro. E, para os escritores policiais das novas gerações, a orfandade também. Afinal, quase todo mundo que começou a escrever suas tramas policiais no século XX se sentia um pouco filho ou neto da dupla, que continuava ativa e publicando.
Fonseca lançou seu último livro, Carne crua, no final de 2018. Já A última mulher, de Garcia-Roza chegou às livrarias em julho de 2019. Se não restam dúvidas de que a literatura policial no país se divide entre antes e depois deles, ficam as incertezas sobre o panorama sem sua presença. “Rubem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza eram o Brasil para mim”, lamentou Victor Bonini, de 26 anos, autor de Quando ela desaparecer (2019) e considerado uma das grandes promessas na área. “Eles abriram uma porta para novas gerações. Eu, como jovem escritor, não tenho o menor intuito de superá-los. Pelo contrário, gosto de pensar que crio usando da mesma matéria-prima que eles usaram.”
Para entender o impacto causado pelos dois escritores, é preciso voltar a 1963, ano de lançamento de Os prisioneiros, primeiro livro de Rubem Fonseca. Os contos do estreante pegaram a crítica de surpresa, pela inovação formal e pelo ultrarrealismo que revelava, com crueza, um Brasil até então ausente na literatura nacional. Ex-comissário de polícia, Fonseca inventou uma nova ideia de literatura urbana, com seu Rio de Janeiro tentacular, labiríntico e brutal. E o uso dos códigos da ficção policial, ainda mais evidentes nos livros seguintes, como Feliz ano novo e O cobrador, foram essenciais para a construção desse universo.
Décadas mais tarde, o carioca Garcia-Roza atravessou a porta aberta pelo colega, embora num passo muito diferente. Em 1996, aos 60 anos, o filósofo e psicanalista interrompeu uma reputada carreira na universidade para se dedicar ao sonho da ficção. Sua estreia, com O silêncio da chuva, também foi um sucesso. Escritor tardio, usou seu amplo conhecimento da natureza humana para compor suas investigações, que se estenderam por 12 títulos.
Cada um representou o melhor do gênero a sua maneira, mas se apoiando no carisma de dois personagens recorrentes. Para Fonseca, foi o advogado Mandrake, um dublê de detetive especializado em extorsão e que não tem medo de frequentar o submundo carioca. Para Garcia-Roza, o delegado Espinosa, um raro agente da lei culto, ético e sofisticado, e que, à imagem de seu criador, mergulhava com gosto nos mistérios e contradições dos seres humanos. Para o escritor e roteirista Marçal Aquino, autor de livros como O invasor (2002), os personagens representam uma resposta nacional a figuras tradicionais do gênero no exterior, como o detetive Philip Marlowe. “Com eles, os dois grandes mestres deram uma contribuição decisiva para pulverizar uma tese que, durante muito tempo, atormentou nove entre dez escritores brasileiros: que não era possível, a não ser pela via do pastiche, recriar aqui no trópico a figura do detetive clássico, que se envolve em aventuras seriadas”, disse Aquino.
Além dos dois personagens marcantes, a dupla também teve um papel essencial para diminuir o preconceito contra o gênero, acredita Tailor Diniz, que escreve ficção policial desde o final dos anos 1990. “Lá pela década de 1980 era moda ler e comentar Rubem Fonseca”, disse. “As pessoas não se constrangiam com um livro policial dele na mão. Alguns resistentes até escamoteavam. Diziam que aquilo não era literatura do gênero. Depois de Feliz ano novo, todo mundo queria escrever como Fonseca. Aí a coisa foi meio trágica, mas mesmo assim foi um incentivo para a escrita e a leitura.” O mesmo ocorreu com Garcia-Roza, que começou em uma grande editora — a Companhia das Letras, que publicou todos os seus livros — e, logo de cara, ganhou um Jabuti. “Isso também ajudou muito”, complementou Diniz. “Ler um policial que ganhou o então maior prêmio literário do país não desmerecia o apuro intelectual.”
“Ambos se apoiaram no carisma de dois personagens recorrentes. Para Fonseca, o advogado Mandrake, um dublê de detetive especializado em extorsão. Para Garcia-Roza, o delegado Espinosa, um raro agente da lei culto, ético e sofisticado”
Professor de literatura na Universidade de São Paulo (USP), Jean Pierre Chauvin lembrou que um dos primeiros críticos a analisar de forma séria o gênero por aqui foi Álvaro Lins, em 1953 — mais de 30 anos após o surgimento na cena nacional. Sua visão, no entanto, era repleta de preconceitos e sinais negativos. Mesmo não sendo muito levada a sério pela crítica no início, a ficção policial já começou com sucesso. Depois de ser publicada em folhetim, O mysterio, primeira trama detetivesca do país, chegou a ter mais três reedições em livro. Mas seu teor era essencialmente cômico. Os autores, Coelho Netto, Afrânio Peixoto, Viriato Corrêa e Medeiros e Albuquerque, que se revezavam na autoria dos capítulos, criaram um pastiche carioca de Sherlock Holmes, o Sherlock da Cidade, mais conhecido por suas trapalhadas do que por seu talento investigativo.
Não por acaso, aliás, obras detetivescas foram por muito tempo destinadas ao público infantojuvenil. O sucesso de O escaravelho do Diabo, publicado de modo seriado na década de 1950, ou ainda dos livros da coleção Vaga-Lume escritos por Pedro Bandeira e José Louzeiro é emblemático nesse sentido. “É um pouco como se, na época, o gênero fosse destituído de interesse, ou qualidade suficiente, para o universo adulto”, observou Chauvin, que nos últimos anos percebeu um aumento de estudos relevantes sobre ficção policial e na quantidade de autores produzindo bons romances na área.
“Os melhores escritores brasileiros de ficção policial que conheço são os que liam a coleção Vaga-Lume quando crianças e, já adolescentes, se apaixonaram por Fonseca e Garcia-Roza”, disse Cláudia Lemes, fundadora da Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (Aberst). “Os autores que conseguem conciliar, sem preconceitos, essas influências com a nova cara da ficção policial são geralmente os mais lidos. No final, talvez não seja uma questão de se aproximar ou se afastar do legado deixado pelos mestres, e sim de conversar com ele enquanto criamos novas vozes.”
“O mysterio”, primeira trama detetivesca do país, escrita há 100 anos por vários autores, quando o gênero ainda era desacreditado na literatura nacional. Foto: Reprodução legenda |
Autora de livros como A segunda morte de Suellen Rocha, Lemes é um dos principais nomes da cena independente, que cresceu muito graças ao bom uso das redes. “Como o gênero está forte na literatura, nos filmes e nas séries, o autor independente encontra um público receptivo”, disse a escritora. “Os blogueiros literários fazem o resto: criam eventos, divulgam, promovem e fazem um trabalho de formação de leitores e movimentação de vendas que poucas editoras e livrarias têm se comprometido a fazer.”
Trata-se de um movimento similar ao vivido pela literatura fantástica dez anos atrás, acredita o escritor e editor Cesar Alcázar, idealizador do selo Safra Vermelha, criado para retomar a tradição das coleções policiais. O sucesso de Cláudia Lemes e de outros expoentes, como Ana Paula Maia e Raphael Montes, despertou a atenção das editoras e feiras para novos nomes.
Desde o ano passado, o país também ganhou seu primeiro evento dedicado exclusivamente à ficção de crime, o Porto Alegre Noir. “Há muito ainda que ser explorado no gênero, tanto em temática quanto em ambientação”, avaliou Alcázar. “Temos uma riqueza de vozes, personagens e histórias que fica mais evidente a cada dia. Apesar das perdas inestimáveis de Fonseca e Garcia-Roza, tudo indica que essa literatura está se fortalecendo cada vez mais e tem um belo futuro pela frente.”