É inegável que Eduardo Spohr é um dos autores mais importantes da história do Brasil, e veja que eu não me privei ao gênero de fantasia, mas sua relevância agrega toda a literatura do país. José Louzeiro, escritor e roteirista, autor de obras como “Depois da Luta” (1958) e “LúcioFlávio, o passageiro da agonia” (1975), disse a seguinte frase sobre o primeiro livro de Eduardo Spohr, “A Batalha do Apocalipse” (2007): “Não há na literatura em língua portuguesa conhecida nada que se pareça com A Batalha do Apocalipse”.
No longínquo ano de 2007, tudo mudou. O primeiro livro d0 autor, “A Batalha do Apocalipse”, fora lançada de forma independente através da Nerdbooks, obviamente vinculada ao Jovem Nerd. Eduardo tornou-se um gigante, devido ao seu feito de ser um autor independente vastamente publicado. A partir de 2010, os livros de Spohr saem através do selo Verus da editora Record, o que não tira o mérito do grupo do Jovem Nerd pela iniciativa anterior.
Com o sucesso do primeiro livro de Spohr, novas portas foram abertas para o que viria a ser a nova literatura fantástica brasileira contribuindo com a nova realidade da internet. Blogs, podcasts, canais no YouTube entre outras plataformas colaboraram e colaboram para a divulgação dessa nova leva de autores nacionais, que saíram dessa “literatura bairrista” para brincarem com anjos, dragões, elfos e bolas de fogo.
Porém, assim como eu disse no artigo sobre “O Horror Cósmico em Berserk” (que você pode conferir na edição 67 da revista semanal do Fórum Conan, o Bárbaro), a obra fantástica de Eduardo Spohr, assim como Berserk, é o que eu gosto de chamar de “obra amálgama”, por agregar diversos elementos, inspirações e gêneros nos presenteando com um universo delicioso.
Entretanto, se eu for listar todas as referências no “Spohrverso” seria um ou mais artigos apenas para isso, portanto focarei em dois elementos presentes na obra, elementos inspirados nos pais de Conan e Cthulhu, respectivamente Robert Ervin Howard e Howard Phillips Lovecraft. A partir de agora, veremos como a literatura pulp, inspirou a maior saga de fantasia do Brasil.
O “Spohrverso”, como ficou conhecido o universo criado por Eduardo Spohr conta com os livros “A Batalha do Apocalipse – Da Queda dos Anjos ao Crepúsculo do Mundo” (2007), e em seguida uma trilogia que conta histórias anteriores e ao mesmo tempo paralelas as do primeiro livro, esta trilogia chama-se Filhos do Éden e conta com “Filhos do Éden – Herdeiros de Atlântida” (2011), “Filhos do Éden – Anjos da Morte” (2013) e “Filhos do Éden – Paraíso Perdido”(2015), além de ter lançado um livreto de contos no ano de 2019 para participantes de um projeto do Catarse, “Filhos do Éden – Heróis & Soldados” (2019) e em 2016, juntamente com o ilustrador Andreas Ramos, a enciclopédia do universo “Filhos do Éden – Universo Expandido”. De certa forma, foi muito fácil achar as inspirações do autor, uma vez que, além de sempre as deixar claras em alguns podcasts (como Jovem Nerd e Desconstruindo), nas páginas 12, 13 e 14 do “Universo Expandido” ele expõe justamente suas inspirações, destacando algumas delas como Conan, o Bárbaro e a obra de Lovecraft.
Focando-se mais na mitologia judaico-cristã, a Batalha do Apocalipse não abre tanto espaço para os conceitos “cosmicistas”, entretanto já deixa um pequeno gosto. No capítulo “Linha do Tempo” (página 583) temos o seguinte trecho:
“? Protouniverso. Inexistência do tempo ou da matéria. Yahwe, a Lei e Tehom, o Caos, vagam pela sombra do espaço.”
E em seguida:
“? Protouniverso. Yahwe da vida aos cinco arcanjos: Miguel, Lúcifer, Gabriel, Rafael e Uziel. Tehom cria seus deuses-monstros: Behemot, Leviatã, Tanin, Enuma, Taurt.”
O dualismo presente na obra nem sempre aparece de maneira preta ou branca, mas em tons mais escuros ou claros de cinza. Tehom, como citada acima, é uma entidade feminina do Caos. O autor afirma no podcast “Papo Lendário #171 – Spohrverso” que tais entidades e conceitos jamais serão explicados, pois nem se quer ele as compreende de fato. Assim como Lovecraft criou Azatoth, o Caos Primordial, Eduardo criou Tehom e suas crias, os “deuses-monstros”, que são entidades de entropia, caos, destruição e niilismo, o oposto de Yahwe (o deus judaico-cristão) que surge como uma consciência de criação e benevolência.
Neste universo, os anjos comandados pelos arcanjos criados por Deus, venceram aquela que seria conhecida como “Batalhas Primevas”, uma guerra avassaladora que guiou os rumos do universo e da realidade. Após esta batalha, as crias dos deuses-monstros, denominadas “grandes antigos” ou “demônios da noite antiga” pelos feiticeiros antediluvianos, vagaram pelo universo buscando refúgio e idolatria.
Não há como não dizer que estes são assuntos totalmente “lovecraftianos”, uma vez que é conhecida a admiração de Spohr pelo Cavaleiro de Providence, e na trilogia “Os Filhos do Éden” há diversas inspirações, e algumas delas serão mostradas a seguir.
No segundo livro da trilogia, “Filhos do Éden – Anjos da Morte”, Danyel, um querubim, casta dos anjos guerreiros, deve realizar uma missão de caçar e destruir uma mulher anjo, Prisca Ryke, que comandava um prostíbulo – O Clube do Inferno – nas ruas de Amsterdã. Sem muitos spoilers, o que se sucede neste “inferninho” (perdão pelo trocadilho) está à altura de qualquer “O Chamado de Cthulhu”, “O Festival” ou “A Cidade sem Nome”. Confira um trecho presente na página 449 do segundo livro da trilogia:
“(...) Outro pulso, rosnados mais fortes, o aroma crescendo, até surgir da escuridão um enorme tentáculo, ou mais parecia um galho podre, cheio de espinhos, áspero, amarronzado, que produzia um rangido de madeira a cada torcida. Se fosse humano, Denyel teria indiscutivelmente enlouquecido (...)”
E o cosmicismo na obra não para por aí, é parte integral da saga. Mas algo que torna o apego lovecraftiano da obra ainda mais interessante é o embate “anjos x grandes antigos”. Como dito no parágrafo passado, “se fosse humano, Danyel teria indiscutivelmente enlouquecido”. Neste universo os horrores espaciais convivem com anjos de luz, humanizados, porém poderosos, mas ainda assim “os netos de Tehom” atormentam e são idolatrados por seres humanos, especialmente no conto “Tempos Modernos” presente no livreto “Filhos do Éden – Heróis & Soldados”, conto este que eu prefiro não comentar, pois vale cada página.
Dagon também aparece em Filhos do Éden. Ok, não é o mesmo Dagon de Lovecraft. Como o próprio Spohr explica no podcast “Desconstrutindo #12 – Escrita Criativa”, não é o mesmo Dagon do conto homônimo que fica agarrado em um monólito gigante em uma ilha que fede a peixe, mas sim o deus filisteu citado na bíblia em 1 Samuel 5, porém é inegável a referência, em especial a partir dos seguintes trechos:
1º - “(...) Dagon era a mais respeitada das divindades locais. Seu clero mantinha o controle sobre os prostíbulos, os estaleiros e o mercado de escravos. (...)”.
2º - Os ashimas eram animais, peixes bípedes que haviam sobrevivido à era do gelo buscando refúgio no mar. Com a escassez de alimentos que se seguiu ao cataclismo, foram obrigados a caçar na superfície, atacando os portos e as vilas costeiras. (...). (...) os clérigos ofereciam aos seres um barco com trinta virgens, que eram mortas e arrastadas às profundezas (...)”.
Ambos os trechos, respectivamente das páginas 250 e 251 do livro “Filhos do Éden – Paraíso Perdido”, demonstram uma provável (e por que não óbvia) inspiração ou homenagem a Lovecraft, que imortalizou estas criaturas, esses “homens-peixe”, principalmente nos contos “Dagon” (1919) e “A Sombra Sobre Innsmouth” (1936).
Que Howard e Lovecraft eram amigos todos já sabemos. Ambos se homenageavam em suas histórias e a quem diga que seus textos se passavam no mesmo universo. Isso não vem ao caso agora, porém como há alguns elementos do cosmicismo lovecraftiano nos textos do nosso amado Cimério, isso não se pode negar.
Acredito que Spohr pegou o melhor dos dois mundos e os saldou em seu próprio. Desde horrores incompreensíveis a tempos e civilizações perdidas, Eduardo pagou tributo a dois dos maiores nomes dos pulps durante a sua saga, porém a evidente inspiração em Conan e sua Era Hiboriana está presenta naqueles que foram tempos selvagens, a era Antediluviana.
Um tempo onde a barbárie e a civilização caminhavam juntas, um tempo onde um homem media ainda mais as suas palavras, pois sabia que leis selvagens poderiam lhe custar os dentes. Compare os trechos a seguir:
1º - Os Filhos do Éden – Paraiso Perdido, página 292:
“(...) O curioso era que, fora da arena, todos os clientes se respeitavam, e as discussões nunca terminavam em sangue. Ablon refletiu sobre essa peculiar faceta do comportamento humano e observou que, em certas ocasiões, a ausência de leis torna os homens ainda mais corteses, já que não há regras que impeçam alguém de estourar-lhes a cabeça ou cortar-lhes a garganta enquanto provocado (...)”.
2º - Conan, o Bárbaro volume 1, Editora Pipoca & Nanquim, conto A Torre do Elefante, página 98:
“(...) Homens civilizados são menos corteses do que os selvagens, porque sabem que, de modo geral, podem ser mal-educados sem que seus crânios sejam partidos. (...)”.
A brincadeira com a barbárie nessa parte do terceiro livro da trilogia de Spohr é fascinante. Uma guerra entre as civilizações de Enoque e Atlântida se estende há anos, e Ablon, o Vingador, se vê no meio deste entrave, em um mundo fantástico, bárbaro e inimaginável.
Para ser franco, essa parte do livro se tornou a minha favorita da saga, pois havia tudo o que eu queria ver: Lovecraft, Howard e Spohr.
Em uma certa parte da aventura, Ablon se vê aprisionado, sem seus poderes sendo entregue ao feiticeiro antediluviano, Kothar, um mago antigo, sábio, porém vaidoso e manipulador. Evocando uma criatura indecifrável e de poder alarmante, este se torna naquele instante um vilão clássico das histórias howardianas, estando de frente a um horror inimaginável e incontrolável cujo nome é N’glalek, o Rastejante.
Assim como Conan, Ablon segue a filosofia de que “se sangra, morre”. O herói, um legítimo querubim, não recua um centímetro ante o inominável e ao lado de sua colega Ishtar (sua própria Valéria), partem para o impossível, derrotar uma entidade tão, ou mais antiga que o tempo.
Gosto de dizer que no terceiro livro em especial há um “sentimento de espada e feitiçaria”, aquele gosto de aço e sangue que nós sentimos ao ler uma história desse subgênero tão amado da fantasia, imortalizados pelas histórias de Howard, Michael Moorcock, Clarck Ashton Smith, C.L. Moore, Fritz Leiber e agora, sem sombra de dúvidas, Spohr.
No instante que eu finalizo este artigo me vejo iluminado por um abajur, sentado em uma cadeira desconfortável, mas com um sorriso no rosto, pois me cerco daqueles que mudaram o jogo. Ao meu lado tenho o criador de grandes heróis como Conan, Solomon Kane e Bran Mak Morn, também me cerco do criador de Nyarlathotep, Cthulhu, Hydra e tantas outras aberrações e do criador de Ablon, Kaira, Denyel e tantas outras divindades.
Assim como Spohr deve tributos ao pulp, eu devo tributo a ele. Espero que tenham gostado do texto. Obrigado.
Fontes:
Livros
- A Batalha do Apocalipse – Da Queda dos Anjos ao Crepúsculo do Mundo (Verus Editora).
- Os Filhos do Éden – Herdeiros de Atlântida (Verus Editora);
- Os Filhos do Éden – Anjos da Morte (Verus Editora);
- Os Filhos do Éden – Paraiso Perdido (Verus Editora);
- Os Filhos do Éden – Universo Expandido (Verus Editora);
- Os Filhos do Éden – Heróis & Soldados (Verus Editora);
- Conan, o Bárbaro volume 1 (Editora Pipoca & Nanquim);
- Conan, o Bárbaro volume 2 (Editora Pipoca & Nanquim);
- Conan, o Bárbaro volume 3 (Editora Pipoca & Nanquim);
- O Mundo Fantástico de H.P. Lovecraft (Editora Clock Tower);
- O Mundo Sombrio – Histórias dos Mitos de Cthulhu (Editora Clock Tower).
Podcasts
- Desconstruindo #11 – Os mitos de Cthulhu e o legado de H.P. Lovecraft;
- Desconstruindo #12 – Escrita Criativa;
- Desconstruindo #15 – Gênese e retrospectiva de A Batalha do Apocalipse, Herdeiros de Atlântida e Anjos da Morte;
- Desconstruindo #18 – Conan, a Era Hiboriana e o legado de Robert E. Howard;
- Desconstruindo #18 [Suíte] – Repercussão do programa sobre Robert E. Howard, Conan e a Era Hiboriana;
- NerdCast 80 – A Batalha do Apocalipse;
- Nerdcast 276 – Filhos do Éden e o Spohrverso; - Nerdcast 491 – Filhos do Éden e o fim de tudo;
- Papo Lendário #171 – Spohrverso;
- Ghost Writer 64: Paraíso Perdido – O Fechamento do Spohrverso?.