terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Narrativas distópicas viram best seller após eleição de Trump

Imagem tirada do Site Likesuccess

Premissas de '1984' e 'O conto da aia' são comparadas a momento político atual

POR BOLÍVAR TORRES

Assim que a conselheira da Casa Branca, Kellyanne Conway, usou o orwelliano termo “alternative facts” (“fatos alternativos”) em uma entrevista na TV americana, em janeiro, as vendas do clássico “1984” dispararam na Amazon. O romance de George Orwell, que voltou à lista dos mais vendidos quase 70 anos após a sua publicação original, é visto por muitos como a mais didática tradução do recém-empossado — e já contestado — governo Donald Trump.

A narrativa imagina uma sociedade distópica, onde todas as ações de seus habitantes são monitoradas por uma oligarquia totalitária. Para manter o controle político e a submissão do povo, ela criou a “novilíngua” — um idioma que restringe a linguagem para distorcer e eliminar informações reais. Vale lembrar que, desde o seu primeiro dia no poder, Trump faz uso de uma linguagem simplória e limitada para empurrar mentiras aos americanos, como a de que sua posse teria tido o maior público da História.

Usado justamente para justificar as mentiras do presidente, o “fatos alternativos” de Kellyane levou a comparações imediatas com a “novilíngua”. Mas, apesar de ser a mais lembrada, “1984” não é a única distopia literária que ressoa com o momento político do mundo. Na semana passada, “O conto da aia” (1985), da canadense Margaret Atwood, chegou subitamente ao topo da lista da Amazon. Enquanto antigos clássicos, como “Admirável mundo novo” (1932), de Aldous Huxley, voltam à pauta, quase todos os dias matérias na imprensa internacional buscam alguma trama remota, como “O concorrente” , de Stephen King (1982), que teria “previsto” o presidente Trump, a era da pós-verdade e outros fenômenos contemporâneos. Estaria a sociedade procurando nas distopias imaginárias do passado uma resposta para seus temores atuais?

— A distopia, quando não é mero recurso narrativo, geralmente se propõe a avisar: “Olha, se X continuar do jeito que está, vamos acabar caindo nessa situação infernal Y” — opina o escritor Carlos Orsi, autor de livros de ficção-científica como “Campo total”. — Acho que distopias só são visíveis ou na perspectiva histórica ou, de dentro, por quem está olhando para a boca do canhão. Não creio que o cidadão médio ponha a mão na testa e pense, “cara, que distopia!”. Mas creio que dá pra ver os sinais de que o medo de um futuro imaginado muito ruim acaba levando as pessoas a colaborar com a construção de um futuro real também muito ruim.

'LEIA E LUTE'

No momento em que os mais terríveis pesadelos parecem estar se tornando realidade para muita gente, a ficção distópica testa a sua força e influência, sendo usada inclusive como elemento de resistência. Na semana passada, dezenas de cópias de três importantes distopias da língua inglesa — “1984”; “O conto da Aia”; e “In the Garden of Beasts”, de Erik Larsen — foram compradas por um benfeitor anônimo e colocadas para doação em uma livraria de Los Angeles, com as palavras de ordem: “Leia e lute”.

A própria Atwood, que não para de dar entrevistas após o súbito revival de seu livro (cuja adaptação para o cinema deve estrear em abril), compartilhou a notícia nas redes sociais. No Brasil, “O conto da Aia” deve ganhar uma nova edição em meados de 2017 pela Rocco. É fácil entender o interesse atual pela trama, em que extremistas cristãos aproveitam um falso ataque terrorista islâmico para instituir uma teocracia totalitária. Já “1984”, atualmente no catálogo da Companhia das Letras, teve um aumento de dez por cento das vendas por aqui em relação ao ano passado.

— Pelo menos no mercado americano, parece ser um bom momento para publicar distopia. Dá para notar pelo aumento do número de originais com essa temática — observa Otávio Costa, publisher da Companhia. — No Brasil ainda é cedo para dizer se isso vai se confirmar, mas há sinais. Interessante notar que, tirando os países de língua inglesa, o Brasil é onde Orwell mais vende em números absolutos (foram, até hoje, 470 mil exemplares de “A revolução dos bichos” e 260 mil de “1984”).

Ex-editor na casa que mais publica ficção científica no Brasil, a Aleph, Daniel Lameira acredita que o mercado já vinha antecipando esse momento — tanto é que está repleto de tramas distópicas derivadas de clássicos como “1984”. A própria Aleph vem resgatando obras icônicas, e em breve publicará “Nós”, do russo Evgueny Zamiatin (livro que inspirou Orwell) e “Despossuídos”, da Ursula K. Le Guin. Curiosamente, a escritora, de 87 anos, respondeu no início do mês a um artigo do “Guardian”, no qual afirma que ficção científica nada tem a ver com “fatos alternativos”: “A comparação não funciona. Nós escritores inventamos coisas (...). Podemos chamá-las de ficção porque não são fatos”.

— O mundo sempre foi parecido com uma distopia para aqueles que não detêm os meios de produção; podemos discutir com qual distopia estamos mais parecidos: o amor à servitude de Huxley, a dominação do Estado, como Zamiatin e Orwell, as lobotomias como “Laranja Mecânica”? — provoca Lameira. — É impossível a ficção concorrer com a realidade. Como diz Wittgenstein: os limites da linguagem são os limites do real.

MODA RECENTE

O editor Erick Santos, da Draco (outra editora nacional prolífica em ficção científica), acredita que a distopia se tornou uma moda recente para o leitor jovem adulto. Mas ele faz uma ressalva sobre como a produção mainstream atual aborda o tema:

— Ela tem questionamentos mais sobre as dores de alguém que crescia e chegava à fase adulta do que profundas reflexões sobre a política e a sociedade. Se tivermos distopias agora, que sejam verdadeiras visões que repensem para onde estamos indo, e não que divida o mundo em quatro ou cinco arquetípicos para que os jovens possam dizer com qual se identificam. Gostaria de ver distopias pesadas e opressoras sem saída, não de romances com ação de videogames.

Carlos Orsi discorda. Para o autor, o principal desafio da ficção científica hoje é imaginar sociedades futuras que funcionem — "não utopias, mas sociedades meramente funcionais, onde a tecnologia e o conhecimento permitam superar os dilemas atuais", explica o escritor.

— Já mapeamos razoavelmente bem a forma como as coisas podem dar errado. Falta mapear a forma como podem dar certo, mas sem cair no utopismo ingênuo — avalia Orsi, citando o australiano Greg Egan, nunca publicado no Brasil, como um autor que escreveu bons livros nessa linha.— Acho que o "Jornada nas Estrelas" original, dos anos 60, por exemplo, com seu futuro brilhante de uma humanidade reconstruída pós-holocausto nuclear, fez muito mais para criar uma mentalidade de paz e aceitação do que todas as histórias distópicas de canibais percorrendo as ruínas do mundo destruído — acrescenta.

A procura pelo “livro que teria previsto” nosso momento é um erro, segundo o autor de ficção científica Octavio Aragão. Afinal, quando Orwell e muitos outros escreviam sobre o futuro, estavam criando parábolas sobre o presente em que viviam. Não por acaso, muitos dos livros que voltam com força agora foram publicados em épocas especialmente turbulentas (o fascismo dos anos 1930-40 ou o ultraliberalismo dos anos 1980).

— Desde o nascedouro, os leitores têm a tendência de relacionar as qualidades da obra à sua suposta capacidade de antever tecnologias ou estruturas sociais — lembra Aragão. — No entanto, a ficção científica discorre sempre sobre o presente, sobre extrapolações do que já existe, visando uma análise crítica de seu tempo.