sábado, 29 de agosto de 2020

Autor de "O Senhor dos Anéis" é nova face da guerra cultural no Brasil - Reinaldo José Lopes


Fãs dos romances de fantasia do filólogo e escritor britânico J. R. R. Tolkien costumam se reunir mundo afora para ler textos do autor todo dia 25 de março. A data corresponde à derrota definitiva do vilão Sauron em O Senhor dos Anéis, a mais conhecida das obras tolkienianas. Se depender do projeto de lei proposto pelo deputado federal Dr. Jaziel, do PL do Ceará, a data pode passar a ser oficialmente o Dia de Ler Tolkien no Brasil. Na justificativa do projeto, o deputado menciona a crescente respeitabilidade literária e acadêmica dos livros de Tolkien no país.

De fato, grupos de pesquisa que estudam a influência do britânico sobre a literatura de fantasia têm surgido com mais intensidade nos últimos dez anos –o mesmo vale para dissertações de mestrado e teses de doutorado que dissecam aspectos da mitologia ficcional do autor.

O parlamentar aponta ainda a popularidade de Tolkien e o interesse por suas narrativas e línguas inventadas (uma das marcas registradas de seus textos) entre os jovens leitores como motivações do projeto.

Curiosamente, o texto da proposta designa Tolkien como "premiado filósofo", embora a verdadeira especialidade acadêmica do autor tenha sido a filologia –o estudo da evolução dos idiomas, e não a filosofia. Segundo a assessoria do deputado, foi um erro induzido por corretor ortográfico, que será corrigido. Quando se considera a dificuldade crônica de fomentar o hábito da leitura no Brasil, é possível pensar na obra de Tolkien como aliada para modificar esse quadro nos ensinos fundamental e médio, por exemplo.

Além do apelo para crianças e adolescentes já habituados a cenários de fantasia em filmes, séries e games, livros como "O Senhor dos Anéis", "O Hobbit" e "O Silmarillion" são plataformas interessantes para discutir diferentes gêneros de prosa e formas poéticas (já que o autor emprega os mais variados tipos de métrica e rima em poemas entremeados na narrativa). Também se pode discutir as influências de diferentes mitologias reais, em especial a nórdica e a celta, no imaginário tolkieniano, ou o impacto dos totalitarismos e guerras mundiais do século 20 sobre o universo criado pelo autor.


O ciclo de lendas criado por Tolkien, por outro lado, pode ser visto como uma tentativa de reimaginar mitologias pagãs sob um prisma essencialmente cristão, já que o autor era católico fervoroso. O deputado cearense, em entrevista ao jornal O Globo, citou os "valores cristãos" dos livros como mais um argumento em favor do projeto.

Esse é um dos potenciais problemas da ideia, porque a religiosidade e o conservadorismo de Tolkien têm feito com que sua obra seja recrutada por alguns dos soldados da guerra cultural conservadora no Brasil dos últimos anos.

Na eleição presidencial de 2018, por exemplo, circularam memes comparando o então candidato Jair Bolsonaro ao personagem Faramir, guerreiro nobre e abnegado de O Senhor dos Anéis. O autor do projeto de lei se identifica com as diretrizes do atual presidente, criticando a "doutrinação esquerdista" nas escolas. Também é legítimo questionar se não seria mais proveitoso um diálogo entre a obra de Tolkien e autores mais próximos da realidade brasileira, inclusive os da tradição fantástica, em vez de o entronizar sozinho numa data oficial. De qualquer modo, o prefácio de O Senhor dos Anéis deixa claro que o autor não apreciava a instrumentalização política e ideológica de sua obra, preferindo o tipo de leitura que "reside na liberdade do leitor" de interpretar o que lê.