Winston acordou e ligou no noticiário da TV. Seu novo líder continuava nomeando capitães. Sorridente, o advogado serviu um pouco de ração a Ariano, seu gato. Em seguida, um desvio ligeiro do beijo matinal da esposa que estava seca como um taco de giz há 150 anos.
Winston arfou o ar livre e oxigenado da rua. Era bom ser ele, finalmente era bom poder ser ele mesmo.
Quanto ao veadinho da esquina, ele andava assustado. O pai dele, outro veado (obviamente covarde demais para se assumir uma bicha), também andava ausente. A mãe da gazela, uma pobretona metida a comunista; até aquela vaca ressentida estava quieta.
Silêncio era bom, muito melhor que ouvir Pablo, Rihanna, Beyonce ou qualquer outra besteira pansexuada.
O país estava mudando, entrando nos eixos. Os de baixo embaixo, os de cima em cima, exatamente como Deus Nosso Senhor havia feito. Amém.
Winston arfou mais ar puro e oxigenado e atravessou a rua. Havia um gato morto bem na metade do caminho. Winston sorriu, mas não fez piada alguma, não em voz alta, afinal, falar da cor do bicho ainda era crime (havia projetos “igualitários”? Claro que sim, mas nada conclusivo até o momento). Continuou andando, assoviando uma música gospel medíocre e contendo os dentes que ameaçavam sorrir até saírem da boca.
O mundo cheirava como novo. A manhã brilhava, as minorias ocupavam a menor parte do espaço. Era um bom mundo. Era uma boa novidade.
Antes de chegar ao outro lado, dois garotos exalando Deca Durabolin pelos poros o notaram. Um deles riu, o outro retribuiu com um riso mais largo. Chegaram mais perto, e só então Winston notou o único borrão daquela manhã gloriosa. Prometeram policiamento e combate ao crime, mas o que havia eram milícias. Pequenas, médias e enormes. Prometeram o fim do tráfico, mas o que ocorreu foi uma redistribuição dos tóxicos por dissidentes das forças armadas. Contrabando. O bê-á-bá das ditaduras.
Os rapazes tinham armas de fogo, claro que sim. Tudo legalizado. Eram parte de uma pequena milícia. Eleitores revoltosos do capitão. Onde estavam os empregos prometidos? O novo mundo? A nova pátria? O jeito era pegar o que pudessem, na marra, nas ruas, de quem marcasse touca. Lei do mais forte.
Eles nem precisaram sujar as mãos.
Morre um inocente ou outro, fazer o quê? Nem dinheiro o filho da puta tinha na valise.
O sol continuava radiante quando a escuridão perpétua tomou conta do mundo de Winston.
Um bom mundo? Claro que sim...
Nascido em 1977, em Monte Alto, São Paulo, foi apenas recentemente que Cesar Bravo deu voz à sua relação visceral com a literatura. Durante sua vida, já teve diversos empregos — ocupando cargos na indústria da música, na construção civil e no varejo. É farmacêutico de formação. Bravo publicou suas primeiras obras de forma independente, e em pouco tempo ganhou reconhecimento dos leitores e da imprensa especializada. É autor e coautor de contos, romances, enredos, roteiros e blogs. Transitando por diferentes estilos, possui uma escrita afiada, que ilumina os becos mais escuros da psique humana. Suas linhas, recheadas de suspense, exploram o bem e o mal em suas formas mais intensas, se tornando verdadeiros atalhos para os piores pesadelos humanos. Saiba mais em facebook.com/cesarbravoautor.