Você acha que homens invisíveis, viagens no tempo, máquinas voadoras e jornadas em outros planetas são produtos da imaginação “europeia” ou “ocidental”? Abra “As Mil e Uma Noites” – uma coleção de contos populares compilados durante a Idade de Ouro Islâmica, do século VIII ao XII – e você a encontrará lotada destas narrativas e mais.
Os leitores ocidentais muitas vezes ignoram a ficção especulativa do mundo muçulmano. Eu uso o termo de forma bastante ampla, para capturar qualquer história que imagine as implicações de avanços culturais ou científicos reais ou imaginados. Algumas das primeiras incursões no gênero foram as utopias inventadas durante a floração cultural da Era de Ouro. À medida que o império islâmico se expandia a partir da Península Arábica, englobando futuramente territórios que iam desde a Espanha até a Índia, a literatura abordava o problema de como integrar uma vasta gama de culturas e pessoas. ”A Cidade Virtuosa” (al-Madina al-fadila), escrita no século IX pelo estudioso muçulmano Al-Farabi, foi um dos primeiros textos excelentes produzidos pela incipiente civilização muçulmana. Foi escrito sob a influência da ”República” de Platão e imaginava uma sociedade perfeita governada por filósofos muçulmanos – um modelo para a governança no mundo islâmico.
Assim como a filosofia política, os debates sobre o valor da razão eram uma característica da escrita muçulmana no momento. A primeira novela árabe, “O Filosofo Autodidata” (Hayy ibn Yaqzan, literalmente ”Vivente, filho do Vigilante”), foi composta por Ibn Tufail, um médico muçulmano da Espanha do século XII. A trama é uma espécie de ”Robinson Crusoe árabe”, e pode ser lida como uma experiência de pensamento sobre como um ser racional pode aprender sobre o universo sem influência externa. Trata-se de uma criança solitária, criada por uma gazela em uma ilha remota, que não tem acesso a cultura ou religião humana até encontrar um náufrago humano. Muitos dos temas do livro – a natureza humana, o empirismo, o significado da vida, o papel do indivíduo na sociedade – ecoam as preocupações dos filósofos da era do Iluminismo, incluindo John Locke e Immanuel Kant.
Nós também temos de agradecer ao mundo islâmico por uma das primeiras obras de ficção científica feminista. A curta estória “O Sonho da Sultana” (1905) de Rokeya Sakhawat Hussain, escritora e ativista bengali, ocorre no reino mítico de Ladyland. Os papéis de gênero são revertidos e o mundo é dirigido por mulheres, seguindo uma revolução na qual as mulheres usaram sua proeza científica para dominar os homens. (pois estes estupidamente haviam descartado a aprendizagem das mulheres como um “pesadelo sentimental”.) O mundo é muito mais pacífico e agradável como resultado. Em um ponto do conto, o inspetor da sultana que as pessoas riem dela. E lhe é explicado:
“As mulheres dizem que você é muito masculina.”“Masculina?”, eu disse: “O que elas querem dizer com isso?”“Elas querem dizer que você é tímida e retraída como os homens.”
Mais tarde, a sultana fica mais curiosa sobre o desequilíbrio de gênero:
“Onde estão os homens?”, perguntei a ela.“No lugar que merecem, onde deveriam estar”.“Lhe súplico, deixe-me saber o que você quer dizer com” onde deveriam estar"."O, eu vejo meu erro, você não pode conhecer nossos costumes, pois você nunca esteve aqui antes. Nós trancamos nossos homens dentro de casa.”
No início do século 20, a ficção especulativa do mundo muçulmano surgiu como uma forma de resistência às forças do colonialismo ocidental. Por exemplo, Muhammadu Bello Kagara, autor de origem hausa da Nigéria, escreveu ”Ganďoki” (1934), uma novela ambientada em uma África Ocidental alternativa; Na história, os nativos estão envolvidos em uma luta contra o colonialismo britânico, mas em um mundo povoado por gênios mágicos e outras criaturas místicas. Nas décadas seguintes, à medida que os impérios ocidentais começavam a desmoronar, o tema da utopia política era muitas vezes atado com um certo cinismo político. A novela do escritor marroquino Muhammad Aziz Lahbabi, “O Elixir da Vida” (Iksir al-Hayat) (1974), por exemplo, centra-se na descoberta de um elixir que pode conferir imortalidade. Mas, ao invés de encher a sociedade com esperança e alegria, fomenta divisões de classe, distúrbios e desvelamentos das camadas sociais.
Um gênero ainda mais tenebroso de ficção surgiu atualmente das culturas muçulmanas. O ”Frankenstein em Bagdá” de Ahmed Saadawi (2013) reimagina o Frankenstein no atual Iraque, entre as consequências da invasão de 2001. Neste recontar, o monstro é criado a partir de partes do corpo de pessoas diferentes que morreram por causa da violência étnica e religiosa – e, eventualmente, acaba desenvolvendo sua própria violência. No processo, o romance se torna uma exploração da falta de sentido da guerra e das mortes de pessoas inocentes.
Nos Emirados Árabes Unidos, novela adulto-juvenil ”Ajwan” (2012) de Noura Al Noman segue a jornada de um jovem alienígena anfíbio enquanto luta para recuperar o filho sequestrado; O livro está sendo transformado em uma série de TV, e toca em temas que incluem refugiados e adoutrinamento político. Na Arábia Saudita, a novela de ficção científica de Ibraheem Abbas e Yasser Bahjatt, ”HWJN” (2013), explora relações de gênero, fanatismo religioso e ignorância, e oferece uma explicação naturalista para a existência de ”jinns” (os gênios mágicos) que residem em uma dimensão paralela. A novela sombria do escritor egípcio Ahmad Towfiq, ”Utopia” (2008), entretanto, prevê uma comunidade fechada em 2023, onde a nata da sociedade egípcia recuou após o colapso econômico e social do país. E no Egito pós Primavera Árabe o romancista Basma Abdel Aziz conjura um mundo kafkiano em ”The Queue” (2016) – um livro ambientado em um levante mal sucedido, em que cidadãos indefesos se esforçam para combater uma absurda e sinistra ditadura.
A ficção especulativa é muitas vezes agrupada no romantismo europeu e lida como uma reação à Revolução Industrial. Mas se esse galope ao longo dos séculos de esforço muçulmano mostra qualquer coisa, é que ponderar tecnologias fantásticas, imaginar arranjos sociais utópicos e traçar os limites embaçados entre mente, máquina e animal, não são uma exclusividade do Ocidente.