segunda-feira, 20 de março de 2017

Abandonados, "os burros" sentem que seu esforço cotidiano não tem valor


Passado o frenesi da indignação com o ocorrido nas prisões, podemos pensar um pouco sobre aquele inferno. Digo de cara que não acredito na indignação regada a queijos e vinhos. Vamos dos argumentos mais óbvios (e nem por isso menos verdadeiros), aos menos óbvios.

Chegando mesmo aos que parecem obscuros aos inteligentinhos.

Óbvios: o Estado brasileiro é canalha, irresponsável, os dirigentes mentem, não estão nem aí para a vida dos presos (nem de ninguém), prender todo mundo num cubículo de lata é querer que se matem, o crime organizado cresce em meio ao vácuo do poder público, há uma crise no sistema prisional, há corrupção, as autoridades não fazem diferença entre um ladrão de galinha e um serial killer, pobre e preto sempre vai mais preso do que branco coxinha.

Tudo verdade. Menos óbvios: esse tema dá aos foucaultianos um gozo que beira o orgasmo porque Foucault achava que soltando os presos faríamos a verdadeira revolução. Será que ele alguma vez teve que encarar algum bandido querendo mata-lo? O PCC chega mesmo a tirar lágrimas de alguns foucaultianos com sua declaração de fundação regada a direitos humanos.

Uma das razões que torna muito do que os intelectuais falam risível é o fato de que vivem uma vida muito segura em seus casulos corporativos em universidades blindadas ao conhecimento e a qualquer tipo de risco.

Para foucaultianos sofisticados, os bandidos são vítimas da ordem social repressiva e mostram em seu comportamento a doença social, por isso, os trancamos nas cadeias para "esquecermos" de nossa patologia social. Esse tom surgiu em algumas indignações, mas com um certo cuidado porque essa moçada está um pouco assustada com a "revolta dos burros".

Quase obscuros: o que vem a ser essa "revolta dos burros"? Primeiro um reparo geopolítico mais amplo. Com a vitória de Trump, a inteligência pública começou a falar de novo em populismo. O segredo do Trump é ele falar o que o povo americano "burro" pensa. Os "burros" que falam inglês.

A inteligência pública há muito tempo está alienada do "povo", entrincheirada nas universidades e nas redações da mídia, falando sempre a mesma coisa: "como esse povo é burro e fala que bandido bom é bandido morto?" A inteligência pública está de costas para o povo comum e preocupada com sua carreira e seu sucesso nas redes sociais.

Avancemos um pouco mais nesses argumentos obscuros. Pois é. Os populistas atuais crescem na mesma medida em que insistimos em pensar que vivemos uma "revolta dos burros", mesmo que não digamos dessa forma explícita.

A inteligência está tão acostumada com queijos e vinhos que esquece o tal do povo. Os populistas crescem na mesma medida em que os "burros" sentem que o sistema político profissional e os inteligentes não estão nem aí pra eles. Por isso sentem que os inteligentes "só defendem os bandidos".

Um adendo: existe "burro" preto e pobre e "burro" branco e rico, ok? Vamos "ouvir os burros" um pouco? Pelo menos imaginar que podemos ouvi-los.

Quem sabe essa "revolta dos burros" pode indicar algo importante por detrás? Eu arriscaria dizer que esses "burros" se sentem abandonados pelo Estado e pela inteligência pública de forma crassa no seu dia a dia.

Esquecidos em seus impostos, acharcados por uma burocracia assassina e destruidora de qualquer iniciativa profissional que não seja apenas viver de salário e "direitos trabalhistas", em suas filas da saúde e do transporte público. Escolas são um lixo.

Andam com medo nas ruas. E não dá pra convencer ninguém que de fato pode ser assaltado ou morto por um bandido de que Foucault tem razão e que quando você é assaltado, você é o bandido, e o bandido é a vítima. Risadas?

Abandonados a sua solidão de "cidadãos honestos" (atenção! Os inteligentinhos acham que ninguém é mais honesto do que um traficante de drogas), "os burros" sentem que seu esforço cotidiano para viver dentro da lei, cuidando de suas famílias (mas que coisa mais classe média, não?) não tem nenhum valor. E estão aprendendo a dizer o que pensam.

Ai virá a "revolta dos burros" de carga.

*Texto do filósofo e escritor Luiz Felipe Pondé, colunista da FSP às segundas-feiras.