Eu não sei definir "1984".
Tenho extrema dificuldade em analisar tal obra sem cair nos clichês de frases como "um livro da atualidade", "um aviso aos defensores da liberdade" ou "uma mensagem contra o autoritarismo". Aliás, nem sei como começar o presente texto. Tenho uma dificuldade, e talvez eu tenha que criar uma fórmula um tanto própria — porém não inédita — de olhar o livro e o autor com clareza.
Talvez, trazer outros — aqueles que são bem maiores que eu — para analisar a obra de George Orwell, os mortos quem sabe. Tive que encontrar entre aqueles que já se foram o que podemos chamar de "filosofia de vida". Autores totalmente diferentes que possam me dar uma unidade. Recorro a parte de certa tradição de pensamento que, não só posso contrapor as ideias presentes do livro, mas também complementar a obra em sua totalidade de pensamentos díspares. Comecemos então, por onde tudo começa: o começo.
George Orwell (pseudônimo de Eric Blair), nasceu em Motihari, Bengala, na Índia Britânica em 1903. Filho de um funcionário público a serviço da Coroa (mais especificamente, da administração britânica do comércio de ópio), estudou como bolsista de 1917 a 1921 no tradicional e aristocrático Eton College, na Inglaterra. Após a conclusão do ensino médio, ingressou na Polícia Imperial Indiana sendo agente da polícia colonial na Birmânia, onde serviu até 1927, quando decidiu se dedicar à carreira de escritor. Em 1937, na Guerra Civil Espanhola, lutou contra o fascismo ao lado dos trotskistas e anarquistas socialistas, mas desiludiu-se: a ascensão do stalinismo o leva a dissociar a cúpula da União Soviética das propostas concretas de melhoria da vida dos proletários, além de testemunhar certa sanguinolência de seus seguidores (digo stalinistas). Autor de seis romances, além de inúmeros ensaios e artigos, sendo considerado um dos escritores mais importantes do século XX. Morreu em Londres, vítima de uma tuberculose pulmonar, em 1950, aos 46 anos.
Dada a biografia, podemos dar o start em nossa análise. Então, sente-se em sua cadeira nobre leitor, pegue a garrafa da bebida que quiser, e vamos ao texto e a especialidade de alguém perdido: conversar com pessoas mortas!
O primeiro morto a ser consultado será Otto Maria Carpeaux. Ensaísta, jornalista, crítico literário, crítico de arte, crítico de música e historiador austríaco naturalizado brasileiro, organizou a primeira relação de livros-modelos ocidentais (o primeiro a dizer de Kafka no Brasil, conhecendo o autor pessoalmente) que se tem notícia nas letras nacionais e a sistematização de nossa boa literatura. Para Carpeaux, o livro é um prognóstico que não se cumpriu, e por isso seria mesmo datado. No seu "História da literatura Ocidental" da Editora LeYa, no volume "As Tendências Contemporâneas" ele aponta que, apesar de ninguém duvidar de Orwell ter boa-fé, ele é um homem que afirma que sabe o caminho certo de combater comunistas porque é um ex-comunista, sendo o típico homem que afirmou durante tantos anos que só ele sabia e podia indicar o caminho certo contra os perigos do capitalismo e do fascismo.
Carpeaux cita o período de Orwell na Espanha, onde o autor desenvolveu seu "Homage to Catalonia" (Homenagem à Catalunha e recordando a Guerra Espanhola, Avis Rara, 2021) — Otto usa os nomes dos livros em inglês, o que me leva a crer que não haviam sido publicados no Brasil quando a época do lançamento de sua crítica. Carpeaux continua, dizendo que a crítica mais severa classificou Orwell como um grande escritor após sua sátira "Animal Farm" (A revolução dos bichos, Avis Rara, 2021), mas que ele não foi um grande romancista e que seu "1984" é "a típica antiutopia: pesadelo do futuro totalitarismo que esmagará o indivíduo com requintes de desumanidade", sendo uma "literatura de valor reduzido", e "só se pode esperar que a obra perca, com o tempo, a atualidade para ficar, enfim, esquecida".
O segundo que está além da porta eterna e que não pode retroceder é Aldous Huxley. Escritor britânico que havia lhe dado aulas de francês a Orwell em Eton, já era considerado uma referência na literatura distópica e de ficção científica pela publicação de obras como "Admirável Mundo Novo" (Brave New World, 1932), sucesso esse que seu aluno repetiu.
Como artista, nenhuma de suas obras transmitiu a medida integral de sua riqueza intelectual. Amado pelo público, foi visto com desdém pelos críticos eruditos (como o próprio Carpeaux e M.R. James). Membro de uma família de tradicionais intelectuais ingleses da elite britânica, envolvida com discussões que iam da teologia ao darwinismo, Huxley foi abraçado pela massa que se sentiu representada por seus livros — principalmente seu best-seller, inspirado pelo tempo em que viveu na Itália durante o regime de Mussolini, se mudando para Hollywood a fim de trabalhar como roteirista.
No outono de 1949, meses após lançar "1984", George Orwell recebeu uma carta de seu ex-professor, saudando-o pelo sucesso e concordando com todas as críticas positivas. Apesar de comedido nas palavras, não pode deixar de falar que, se o mundo caísse em um pesadelo, provavelmente seria o que ele imaginou, pois a violência física é menos sugestiva do que manobras de manipulações psicológicas, como a hipnopedia, e o controle reprodutivo. Segundo ele:
Em outras palavras, eu sinto que o pesadelo de 1984 está destinado a ser modulado ao pesadelo de um mundo mais semelhante ao que eu imaginei em Admirável Mundo Novo. A mudança surgirá como resultado de uma necessidade sentida [pelo governo] para o aumento da eficiência.
Pode-se imaginar que Huxley estava certo em algum grau, já que o mundo não parece estar sendo modulado, mas caminhando para uma fusão entre ambos na realidade. Não há a super-vigilância nos moldes estatais, mas também não há liberdade plena. O exemplo que vou pegar aqui (e aproveitando ele como ponte para conversar com outro morto daqui alguns parágrafos abaixo) e que as histórais divergem é o sexo: enquanto em "1984" essa atividade é regulada, em Admiravel Mundo Novo ele é totalmente liberado, sem nenhuma restrição.
Falando de divergência, a divergência foi uma temática abordada por C.S. Lewis. Lewis dispensa comentários: é o homem por trás de Nárnia, e muito mais que isso. Acadêmico de renome, influente apologista cristão e autor de best-sellers de literatura infantil, foi professor e tutor de Literatura Inglesa na Universidade de Oxford até 1954, quando foi unanimemente eleito para a cátedra de Inglês Medieval e Renascentista na Universidade de Cambridge, posição que manteve até a aposentadoria.
A BBC TV no dia 12 de dezembro de 1954, adaptou para a televisão a distopia de George Orwell, sendo eleito um dos 100 principais eventos da TV britânica daquele século. Aproveitando a publicidade da BBC, o catedrático escreveu um ensaio (presente em "Sobre Histórias" [On Stories: And Other Essays on Literature, 1966]) ponderado sobre o trabalho de George Orwell, comparando "1984" (que foi um sucesso imediato ao lançamento) com "A Revolução dos Bichos" (que demorou a cair nas graças do público).
Seu argumento principal é que apesar de ser um azarão (talvez por causa do próprio Lewis, já que publicou, na mesma semana que "A Revolução dos Bichos" seu "Aquela fortaleza medonha" [That Hideous Strength, 1945] — que o próprio Orwell leu e resenhou), a alegoria de bichos falantes é realmente um livro maior que a distopia, e que os personagens principais da distopia não estão a altura da tragédia. Para Lewis, um governo autoritário só pode ter resistência por pessoas de índole inquestionável, de caráter probo, e os personagens principais vão se tornando interessantes à medida que sofrem. Na visão de Lewis:
A morte de Sansão, o cavalo, comove-nos mais do que todas as crueldades mais elaboradas do outro livro. E não só comove, mas convence. Aqui, apesar do disfarce animal, sentimos que estamos em um mundo real. É assim — esse amontoado de porcos se empanturrando, cães mordedores e cavalos heroicos — que a humanidade é; muito boa, muito ruim, muito mesquinha, muito honrada. Se os homens fossem apenas como as pessoas em 1984, não valeria a pena escrever histórias sobre eles. É como se Orwell não pudesse vê-los enquanto não os colocasse em uma fábula de animais.
Por fim, qual a conclusão disso tudo? Eu continuo não sabendo definir 1984. Há tanto a ponderar… Mas posso falar dos mortos aqui mencionados e definir se seus comentários foram mais assertivos ou errados.
Nos anos 50 do século passado, quando já era um colunista destacado nos principais jornais do país, Otto Maria Carpeaux disse que o romance de George Orwell, "1984", logo seria esquecido. Ledo engano: esquecido foi ele. Sua obra foi ressuscitada ao longo da década de 1990, com reedições com organização, notas e uma longa introdução instauradas pelo escritor e polemista Olavo de Carvalho — para saber mais, procurar o artigo "Perspectivas da interpretação: Carpeaux e sua fortuna crítica" de Guilherme Mazzafera S. Vilhena.
Sobre Huxley, posso dizer que, de todos os livros que li, seu "Admirável Mundo Novo" me arrepiou a espinha logo nas duas primeiras páginas com seu processo de desumanização. Na obra há desumanização da infância, da adolescência, e de todas as atividades relacionadas à vida adulta. Entre os três, é o único com obra de tema similar com envergadura. Em paralelismo, a mesma geração que tem liberdades sexuais é a mesma que sofre uma epidemia de doenças mentais nunca vista. O que é senão o poliamor a gameficação do livro de Huxley regado de soma (ou melhor, rivotril)? O que é o fenômeno do cancelamento no Twitter do que o nosso dois minutos de ódio?
Concordo com Lewis sobre a crítica de que "A Revolução dos Bichos" é bem superior a "1984". O autor não estava em condições físicas e mentais na época da publicação: morreu sete meses depois que seu livro ganhou as prateleiras. Viúvo e pai solteiro, ganhando a vida com muita dificuldade nos alojamentos de Islington, e trabalhando incessantemente para esquecer o fluxo de remorso e dor causados pela morte prematura de sua esposa. Ali estava o escritor inglês, desesperadamente doente, lutando sozinho contra os demônios de sua imaginação, indo parar mais tarde, com ajuda de um amigo, em uma casa escocesa localizada em meio aos resquícios da Segunda Guerra, agarrando-se aos últimos resquícios de vida.
A distopia de "1984" foi muito além de uma crítica ou sátira do regime soviético, capturando traços estruturais da mentalidade revolucionária que sobrevivem ao comunismo stalinista, pelo simples fato de que o antecederam. O final de "A Revolução dos Bichos" é uma coisa sintomática. Ali, na janela, se tornou impossível distinguir quem era homem ou quem era porco, uma referência sarcástica ao encontro de Teerã, reunindo Churchill, Roosevelt e Stalin. Como socialista, Orwell mirou em Marx, que dizia que quem iria acabar com o capitalismo seriam os proletários, mas acertou em Joseph Schumpeter, dizendo que seriam os próprios capitalistas. E o tempo mostrou que ele tinha razão.
REFERÊNCIAS
CARPEAUX, Otto Maria, 1900-1978. 3. ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. Conteúdo: Vol. 1. A herança. O mundo cristão. A transição. Renascença e reforma; Vol. 2. Barroco e Classicismo. Ilustração e revolução, Vol. 3. O Romantismo. A época da classe média; Vol. 4. Fin de siècle e depois. Literatura e realidade. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/528992>. Acesso em 25 de outubro de 2022;
DICKIESON, Brenton. George Orwell’s Review of C.S. Lewis’ “That Hideous Strength”. Via A Pilgrim in Narnia, 17 de Agosto de 2015. Disponível em: <https://apilgriminnarnia.com/2020/09/10/george-orwells-review-of-c-s-lewis-that-hideous-strength-throwback-thursday/>. Acesso em 27 de outubro de 2022;
MCCRUM, Robert. 1984, o livro que matou George Orwell. Via Revista Bula, 16 de Fevereiro de 2021. Disponível em: <https://www.revistabula.com/235-1984-o-livro-que-matou-george-orwell/>. Acesso em 28 de outubro de 2022;
Em carta, Aldous Huxley discorre sobre obra de seu aluno George Orwell. Revista Galileu, atualizado em 16 Ago 2018. Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2018/08/em-carta-aldous-huxley-discorre-sobre-obra-de-seu-aluno-george-orwell.html>. Acesso em 25 de outubro de 2022;
LEWIS, Clive Staples. Sobre Histórias. São Paulo. Thomas Nelson Brasil; 1ª edição (3 setembro 2018);
ORWELL, George. A revolução dos bichos. São Paulo. Avis Rara, 1ª edição (15 janeiro 2021);
ORWELL, George. 1984. São Paulo. São Paulo. Avis Rara, 1ª edição (25 novembro 2021);
MORAES, Igor. Avisos Fantasmagóricos: M.R. James. Via GolemSP, 2022, sábado, 6 de agosto de 2022. Disponível em: <https://golemsp.blogspot.com/2022/08/avisos-fantasmagoricos-mrjames.html>. Acesso em 25 de outubro de 2022.