terça-feira, 29 de setembro de 2020

As Flores do Abismo de Thomas Ligotti


Eu devo sussurrar minhas palavras ao vento, sabendo que de alguma forma chegarão a vocês que me enviaram aqui. Deixem que esta desventura, como a primeira fragrância fétida de outono, seja carregada de volta até vocês, minha boa gente. Porque foram vocês que decidiram aonde eu deveria ir, vocês que desejaram que eu viesse aqui e para ele. E eu concordei, porque o medo que enchia suas vozes e entremeava seus rostos era tão maior do que suas palavras podiam exprimir. Eu temi seu medo dele: aquele cujo nome não sabíamos, aquele que vivia longe da vila naquela casa arruinada que há muito tempo vira a passagem da família Van Livenn. “Que tragédia”, todos concordávamos. “E eles cuidaram daquele lindo jardim por tanto tempo. Mas ele… ele não parece interessado nessas coisas.”

Eu fui escolhido para revelar seus segredos e encontrar qual indiferença ou malícia o novo proprietário nutria contra nossa vila. Deveria ser eu, vocês disseram. Eu não era o professor das crianças da vila, quem detinha o conhecimento que vocês não detinham e quem poderia por isso enxergar mais profundamente o mistério de nosso homem? Isso foi o que vocês disseram, nas sombras de nossa igreja onde nos encontramos naquela noite; mas o que vocês pensaram, eu não pude deixar de sentir, era que ele não tem filhos, ninguém, e ele passa tantas de suas horas caminhando pelas mesmas florestas nas quais vive o estranho. Pareceria muito natural se eu calhasse de passar pela casa do velho Van Livenn, se eu calhasse de parar e talvez pedir um copo de água para um viajante das florestas. Mas essas simples ações, mesmo naquela época, pareciam uma aventura extraordinária, apesar de nenhum de nós confessar esse sentimento. Nada a temer, vocês disseram. E então eu fui escolhido para ir sozinho até aquela casa que caiu em tamanha ruína.

Vocês já viram a casa e como, se aproximando dela pela estrada que sai de nossa vila, ela aparece repentinamente na vista – uma flor pálida entre árvores escuras de verão, agora uma fantasmagórica flor no outono. Primeiramente, foi como pareceu aos meus olhos. (Sim, meus olhos, pensem neles, boa gente: sonhem com eles.) Mas conforme me aproximei da casa, de suas suas tábuas cinzentas, emborcadas e empenadas e estranhamente manchadas, o pálido lírio se tornou um cogumelo venenoso. Com certeza, a casa pregou essa peça em alguns de vocês, e todos vocês viram-na uma vez ou outra: seu teto de telhas onduladas em formato de escamas como um peixe imenso, verde-mar e brilhando no sol de outono; seus dois frontões no sótão com janelas panorâmicas que culminam no topo como na ponta de uma lágrima; seu pórtico em formato de sepulcro acima de escadas de madeira apodrecida. E enquanto eu fiquei parado nas sombras do lado de fora daquela porta, eu escutei centenas de gotas de chuva irem de encontro aos degraus atrás de mim, enquanto o ar esfriava e o céu ganhava sombras próprias. A chuva fraca manchava o terreno vazio e acinzentado próximo da casa, regando o solo estéril onde aquele extraordinário jardim tinha florescido no tempo dos Van Livenns. Que desculpa melhor para a minha intrusão? Me abrigue, estranho, da tempestade gelada de outono, e de uma fragrância úmida e apodrecida.

Ele respondeu prontamente às minha batidas, sem movimentos suspeitos nas cortinas esfarrapadas, e eu entrei em seu lar escuro. Não havia necessidade de explicação; ele já tinha me visto caminhando à frente das nuvens, embora eu não o tivesse visto: seus braços esguios eram vagamente como galhos retorcidos; seu rosto preguiçoso e sem expressão; os trapos sem cor que eram mais fáceis de ver como andrajos esfrangalhados do que como partes do mais pobre vestuário. Mas sua voz, essa é uma coisa que nenhum de vocês jamais ouviu. Apesar de abismado com quão gentil e musical ela soava, eu estava ainda menos preparado para a sensação de grandes distâncias criada pelo eco de suas palavras vazias.

“Era um dia como este quando eu vi você pela primeira vez andando na floresta,” ele disse, olhando para a chuva lá fora. “Mas você não se aproximou da casa. Eu me perguntei se você viria.”

Suas palavras me deixaram à vontade, porque nossa apresentação parecia já ter sido feita. Eu tirei meu casaco, que ele pegou e colocou em uma cadeira de madeira muito pequena ao lado da porta da frente. Estendendo um braço longo e torto e uma mão ampla para o interior, ele formalmente me deu boas vindas ao seu lar.

Mas de alguma forma, ele mesmo não parecia se sentir em casa ali. Era como se os Van Livenns tivessem deixado para trás todas as suas posses mundanas para o uso do próximo ocupante da casa, o que não seria estranho, considerada a tragédia. Nada parecia pertencer a ele, apesar de que havia pouco demais naquela casa para ser possuído por qualquer pessoa. Além das duas cadeiras velhas em que nos sentávamos e da pequena mesa torta entre elas, os poucos objetos que eu podia ver davam a impressão de ter sido reunidos apenas por acidente ou negligência, uma marca dos últimos dias dos Van Livenns. Um enorme baú jazendo num canto, sua grande tranca enferrujada saltada aberta e suas alças pesadas largadas soltas no chão, teriam parecido muito menos soturnos escondidos num sótão ou porão. E aquela cadeira em miniatura próxima à porta, com um gêmea idêntica caída sobre seu encosto próxima à parede oposta, pertencia a um quarto de criança. Próximo à janela fechada, uma estante alta parecia apropriada, se aqueles vasos quebrados, botas velhas e outras parafernálias alheias às prateleiras de livros não tivessem sido enfiadas entre os volumes gastos. Uma cômoda de quarto ficava contra uma parede, mas aquilo pareceria deslocado em qualquer aposento: o vazio de suas gavetas ausentes estava profundamente engendrado com desuso. Todas aquelas coisas me pareciam arruinadas com a memória de degeneração e morte relatada na história dos Van Livenns. Mas deixemos isto de lado por hora, antes que eu me esqueça de contar do espesso, fantasioso cheiro que permeava aquele cômodo, inspirando a sensação de que jardins fétidos de cultivo deformado floresciam no pó e em cantos sujos em todo lugar ao redor de mim.

A única luz na casa era provida por dois lampiões que queimavam de cada lado da lareira. Atrás de cada uma dessas lâmpadas havia um espelho oval em uma moldura ornamentada, e que refletia as luzes dos pavios trêmulos jogando nossas sombras na ampla parede vazia atrás de nossas costas. E enquanto nós dois nos sentávamos parados em silêncio, eu vi aqueles outros dois inquietos sobre a parede, como que soprados pelo vento ou talvez submetidos a alguma tortura sutil.

“Eu tenho algo para você beber,” ele disse. “Eu sei como é longe andar da vila.”

E eu não tive de fingir sede, boa gente, porque ela era tanta que eu queria engolir a tempestade, que eu podia ouvir além da porta e paredes mas podia apenas ver como uma luz ocasionalmente cintilando atrás das cortinas ou brilhando claro como agulhas entre as frestas irregulares das persianas.

Na ausência do meu anfitrião, eu dirigi meus olhos aos tesouros de sua casa e fiz deles meus. Mas havia algo que eu não enxergava, de algum modo eu sabia disso. De toda forma, eu tinha sido enviado para espionar e então tudo ao meu redor parecia suspeito. Vocês vem agora o que eu falhei em ver então? Vocês podem perceber a coisa sendo focalizada através de meus olhos? Vocês podem espiar os cantos cheios de teias de aranha ou sondar os títulos daqueles livros inclinados? Sim; mas vocês podem agora, no sonho mais insano de nossas vidas, espreitar lugares que não têm cantos e que não carregam nomes? Isso é o que eu tentei fazer: enxergar além do restos mortais dos Van Livenns; enxergar além do palco assombrado onde eu tinha feito minha entrada. E assim eu tive de revirar cantos pelo avesso com meus olhos e ler o terceiro lado das páginas de um livro, procurando futilmente contemplar o que então eu não podia tocar com nenhum de meus sentidos. A coisa permaneceu sem forma e sem nome, úmida e submersa, algo pantanoso e abismal que se opunha ao puro frio da tempestade de outono lá fora.

Quando meu anfitrião retornou, ele carregava consigo uma garrafa verde empoeirada e um copo brilhante, ambos os quais ele pôs sobre a pequena mesa entre nossas cadeiras. Eu peguei a garrafa e seu toque era morno em minha mão. Esperando que algum líquido negro espesso jorrasse do gargalo, eu fiquei surpreso ao ver apenas o mais puro líquido fluindo para dentro do copo. Eu bebi e por um momento fui removido para um mundo de luz congelada que vivia dentro da fria água límpida.

No meio tempo, o homem sem expressão colocara outra coisa sobre a mesa. Era uma pequena caixa de música feita de uma madeira escura que parecia ter a dureza de uma jóia e era florida com estranhos desenhos ao mesmo tempo distintos e impossíveis de se definir. “Eu encontrei isso remexendo este lugar,” o estranho disse. Então lentamente ele puxou a tampa da caixa e se recostou em sua cadeira. Eu mantive as duas mãos ao redor daquele copo gelado e escutei a música ainda mais gelada. As nítidas notinhas que surgiram da caixa eram como estrelas de som aparecendo nas sombras do crepúsculo e no silêncio da casa. A tempestade havia terminado, deixando os sons do mundo lá fora abafados pela umidade. Dentro dos cômodos fechados, que deveriam agora ter sido transportados à beira de um abismo ou às profundezas da terra, a música cintilou como infinitesimais faíscas de luz naquela estéril ornamentação de dias mortos. Nem um de nós dois parecia estar respirando, e mesmo as sombras atrás de nossas cadeiras estavam enfeitiçadas com uma imobilidade encantada. Tudo se suspendeu por um momento para permitir que a música vagante da caixa partisse em direção a algum destino sublime e terrível. Eu tentei segui-la – através da neblina amarelada da sala e fundo na escuridão que pressionava contra as paredes, e então mais fundo na escuridão entre as paredes, então através das paredes e dentro do espaço sem divisas onde aqueles tons prateados ascenderam e tremeram como um enxame de insetos. Havia ainda beleza nessa visão, embora tingida pelo sinistro como estava. Mesmo naquele ponto eu senti que poderia me perder na vastidão que se espalhava sobre mim, uma tenebrosa extensão rica em espólios desconhecidos. Mas então algo começou a se agitar, entrando forçadamente como uma doença, intrometendo sua cabeça de cores horríveis na escuridão fresca… e me perseguindo de volta até o meu corpo.

“Então, o que você acha? Começou a ficar ruim mais pro final, não começou? Eu fechei a caixa antes que piorasse. Diria que eu agi corretamente?”

“Sim,” eu disse, minha voz tremendo.

“Eu pude ver no seu rosto. Meu propósito não era ferir você. Eu só queria te mostrar uma coisa – dar um vislumbre.”

Eu bebi o resto da água, então coloquei o copo que ainda estava segurando na mesa. Me acalmando um pouco, eu disse, “E o que é que você queria me mostrar?”

“A loucura das coisas,” ele disse. E ele pronunciou essas palavras calmamente, precisamente, enquanto encarava meus olhos para ver como eu reagiria.

Claro, eu precisava ouvir mais. Afinal, era para isso que eu estava lá, não era? Vocês podem me escutar em seus sonhos, meus amigos?

“A loucura das coisas”, eu reiterei, tentando tirar mais dele. “Receio que eu não entenda.”

“Nem eu. Mas isso é tudo que eu posso dizer sobre isto. Aquelas são as únicas palavras que eu posso usar. As únicas que se aplicam. Eu já me deleitei nelas. Como um jovem estudante de filosofia, eu costumava dizer para mim mesmo, ‘eu vou entender a loucura das coisas.’ Isso era algo que eu sentia que precisava saber – que eu precisava confrontar. Se eu pudesse confrontar a loucura das coisas, eu pensava, então eu não teria nada mais a temer. Eu poderia viver no universo sem sentir que estava me despedaçando, sem sentir que eu iria explodir com a loucura das coisas que no meu ponto de vista formavam a própria fundação da existência. Eu queria rasgar o véu e enxergar as coisas como elas são, não me cegar para elas.”

“E você conseguiu?” Eu perguntei, sem me importar nem um pouco se eu estava escutando um lunático, tão fascinado eu estava pelo que ele tinha a dizer. Apesar de eu mal conseguir entender suas palavras, eu sabia que havia algo nelas que não era estranho para mim, e por alguns momentos eu me distraí pelas suas implicações. Porque quem entre nós já não experimentou algo que possa ser chamado de a loucura das coisas? Mesmo se não usarmos essas exatas palavras, nós devemos em algum momento em nossas vidas ter sentido seu significado. Nós devemos ter tocado, ou ter sido tocados, por aquela perturbação que o estranho pensava ser a fundação da existência. Se nada mais, minha boa gente, nós todos conhecemos o destino dos Van Livenns. Não seria estranho se ponderarmos na solidão de nossas mentes sobre o que chamamos de sua “tragédia” e se refletirmos sobre esse nosso mundo.

“Consegui?” disse o estranho, me trazendo de volta para mim mesmo. “Ah, sim. Até demais, eu diria. Eu consegui me desprender de todos meus medos, e até do próprio mundo. Agora eu sou um andarilho do universo, um errante dos espaços onde a loucura das coisas não tem limites. Um dia, após anos de estudo e prática, eu me rendi ao que me aguardasse. Mas eu não posso dizer aonde eu vou ou porque eu vou até lá. Tudo é muito caótico na minha existência. De alguma forma, entretanto, eu sempre volto a este mundo, como se eu fosse alguma criatura que retorna na ocasião para seu lar. Esses lugares a que eu chego parecem me atrair para eles, como se tivessem sido preparados, até invadidos antes de mim. Porque sempre existem coisas, pequenos itens que são exatamente o que eu esperaria. Essa caixa de música, por exemplo. Eu olhei ao redor até encontrar algo deste tipo. Pelos seus desenhos eu pude ver que ela havia sido tocada pela loucura das coisas, e você também pôde, eu percebi. Que destruição ela deve ter causado para aqueles despreparados para tais fenômenos. O que aconteceu nesta casa? Eu só posso imaginar.”

E então a tragédia dos Van Livenns foi iluminada. Qual deles teria cruzado com a caixa de música onde ela deve ter jazido escondida por sabe-se lá quanto tempo? Ao longo do tempo, eles todos devem ter se tornado suas vítimas. A condição da casa e de seu terreno – esse era o primeiro sinal. E então os gritos que começamos a ouvir de nossas casas e que fizeram com que continuássemos dentro de casa. O que isso tudo significava? Fora quase um ano até que não houvesse mais nenhum som ou qualquer movimento atrás das cortinas da casa. Logo depois, cinco corpos foram encontrados, alguns deles mortos há mais tempo que outros. Nenhum deles inteiro. Todos barbarizados além do humano. Nós quisemos pensar que havia sido um estranho, mas não conseguimos fazê-lo por muito tempo. Não depois de que uma inspeção ser conduzida, e a conclusão ser de que eles sucumbiram um após o outro ao longo do período de tempo de um mês. Eles disseram que o velho Van Livenn devia ter sido o último deles. Seu corpo estava uma bagunça de pedaços picados, mas ele deve ter feito tudo sozinho, julgando pelo machado que ainda estava seguro em seu punho morto.

“Com licença”, disse o estranho, mais uma vez me despertando de um estado de distração. Ele estava agora de pé junto à janela fechada, espiando entre a fileira de ripas que ele puxara para abrir. Com um lento movimento de sua mão, ele acenou para que eu me juntasse a ele, sorrateiramente ao que parecia. “Olhe. Você pode vê-las?”

Através das frestas da janela fehada eu pude ver algo lá fora, bem onde os Van Livenns tinham uma vez cultivado seu muito admirado jardim em dias passados. Mas o que eu vi era como os desenhos na caixinha de música – intrincado mas indistinto.

“Elas quase se parecem como flores, não é? Tão vividamente coloridas elas brilham na noite. E ainda quando eu as encontrei pela primeira vez – não neste corpo, claro – quase tudo era escuro. Mas não era escuro como uma casa às vezes é escura, ou como as florestas são escuras porque as árvores grossas mantém a luz de fora. Era escuro apenas porque não havia nada para manter a escuridão de fora. Como eu posso saber disso? Eu sei porque eu pude ver com mais do que meus olhos – eu pude ver com a própria escuridão. Com a escuridão eu vi a escuridão. Era imensidão sem fim ao redor de mim – vastidão ininterrupta, horizonte negro encontrando horizonte negro. E havia também algumas coisas dentro da escuridão, e eu achei que elas fossem minha própria forma, de modo que eu me estendi para tocá-las através do universo de escuridão, eu também me estendi fundo dentro de mim mesmo, tal como eu era. Ainda assim tudo que pude sentir eram aquelas coisas, aquelas flores. Tocá-las era como tocar luz e cores e mil tipos de formas crescentes e arrepiantes. Em toda aquela escuridão que me permitia ver a própria escuridão, essas coisas se contorciam, uma massa vermiforme que tentanva fazer dela mesma uma parte de mim. Eu as devo ter trazido comigo quando vim a este lugar. Após eu tomar esta forma, elas me abandonaram e se enterraram naquele terreno ali. Elas partiram a terra naquela mesma noite, e eu pensei que viriam atrás de mim. Mas de alguma forma a situação mudou. Eu acho que elas gostam de estar onde estão agora. Você pode ver por você mesmo como elas se contorcem, quase alegremente.”

Depois destas palavras ele caiu em silêncio por um momento. Era uma noite escura, os céus ainda cobertos pelas nuvens que mais cido haviam trazido chuva. As lâmpadas sobre a lareira brilhavam com uma luz penetrante que cortava as sombras do tecido negro ao nosso redor. Por que, boa gente, eu estava tão atônito pelo fato de que esse fantasma diante de mim podia caminhar pelo quarto e realmente levantar uma das lâmpadas, e então carregá-la pelo corredor em direção aos fundos da casa? Ele pausou, se virou e acenou para que eu o seguisse.

“Agora você as verá melhor da escuridão. Isso é, se você quiser ver a verdadeira loucura.”

Ah, meus amigos, por favor não me desprezem pela escolha que eu fiz nesta noite. Lembrem-se que foram vocês que me mandaram, porque eu era aquele que menos pertencia à nossa cidade.

Furtivamente, nós deixamos a casa como se fôssemos duas crianças fugindo sorrateiras para passar uma noite no bosque. A luz da lâmpada roçou a grama molhada atrás da casa e parou onde o jardim terminava e começava a floresta, fragrante e soprada pelo vento. A luz se movia para a esquerda e eu me movia com ela, em direção à área onde o jardim uma vez crescera.

“Veja elas se contorcendo na luz,” ele disse quando os primeiros raios caíram em um emaranhado de formas se convulsionando, como as entranhas radiantes do inferno. Mas as formas rapidamente desapareceram na escuridão e para fora da vista, puxando a si mesmas do solo amolecido pela chuva. “Elas recuam da luz. E veja como elas retornam a seus lugares quando a luz é retirada.”

Elas fecharam novamente como águas separadas correndo para se refundir. Mas essas eram águas corruptas cujas correntes tinham se coagulado e se diferenciado na forma de criaturas amarradas por veias viscosas e pulsantes, engendradas em bocas trabalhando.

“Mova a luz para o mais próximo possível do jardim”, eu disse.

Ele ficou bem na borda, enquanto eu fiquei mais adiante ainda em direção àquela maré vazante de dendritos pegajosos, aquelas aberrações do abismo. Quando eu estava fundo em sua malha, eu sussurrei: “não perca a luz, ou elas vão cobrir de novo o chão onde eu estou. Eu posso vê-las tão bem. A verdadeira loucura. Eu a confrontei sem medo.”

“Não,” disse o estranho. “Você não está preparado. Volte para a luz antes que o pavio se apague.”

Mas eu não escutei a ele, ou ao vento que se levantou. Ele veio abaixo das árvores e varreu o jardim, arremessando-o na escuridão.

E o vento agora carrega minhas palavras para vocês, boa gente. Eu não posso estar aí para guiar vocês, mas vocês sabem agora o que deve ser feito, tanto a esta terrível casa quanto a seu jardim que foi trazido para este mundo por um dos que condenou a si mesmo a caminhar outros mudos. Por favor, uma última palavra para agitar seu sono. Eu me lembro de ter gritado para o estranho:

Elas estão me arrastando com elas. Meus olhos podem ver tudo na escuridão. Eu não sou quem eu sou. Pode me ouvir? Pode ouvir minhas palavras?

“Eu acabei de ter o sonho mais terrível”, sussurrou um dos muitos que estavam acordando nos quartos escuros da vila.

“Não foi um sonho. Você pode ouvir os outros lá fora?”

Uma figura vestida de camisola se levantou da cama e se moveu como uma silhueta até a janela. Na rua abaixo, uma multidão carregando luzes e batendo às portas para que os que ainda sonhavam se juntassem a eles. Seus lampiões e lâmpadas balançavam na escuridão e o fogo de suas tochas tremeluzia loucamente. Feixes de chamas atirados dentro da noite.

O povo da cidade não disse uma palavra um para o outro, mas eles souberam onde eles estavam indo e o que fariam para libertar seu concidadão, eu mesmo, da própria tragédia. E apesar de não enxergarem nada além da louca destruição que jazia em frente, enterrado como um sonho esquecido dentro de cada um deles havia uma perfeita imagem de outros olhos e das formas impronunciáveis que neles penetraram. Mas não deixem que seus fogos se apagarem enquanto vocês fazem seu trabalho. Não deixem que elas te levem também, para seu reino extraterreno. Venham, então, e fechem meus olhos. Assassinem os seres para os quais foram atraídos. Então, fechem suas mentes tão bem quanto vocês podem ao abismo que é lar da loucura das coisas.

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