sábado, 10 de fevereiro de 2018

O tesão de Salomé - Luiz Felipe Pondé


"A ópera entra nos ossos." Era assim que Charles Baudelaire, poeta e ensaísta francês, definia o que óperas causavam nele. Concordo com o que dizia o famoso melancólico, crítico do tédio moderno, enquanto flanava pelas ruas de Paris profetizando o fracasso das promessas modernas.

A ópera "Salomé", que foi levada ao Theatro Municipal nas últimas semanas, é um exemplo dessa dor nos ossos. De autoria de Richard Strauss, o mesmo que compôs a famosa "Assim Falou Zaratustra", que carrega o nome de uma das principais obras de Nietzsche e compõe a trilha sonora do filme "2001 - Uma Odisseia no Espaço" de Kubrick, "Salomé" é baseada na peça homônima escrita pelo grande irlandês Oscar Wilde. Nosso irlandês maldito é conhecido por seu erotismo e seu flerte com o niilismo.

Sua Salomé é uma vítima do desejo. Esse mesmo, que hoje em dia se fala muito, se diz ser o centro da vida, mas que murcha sob a bota da vida correta e saudável. Nunca se desejou tão pouco, como nos dias atuais, em que se fala tanto de sexo. A morte do desejo salta aos olhos nas besteiras teóricas de gente que diz que sexo é construção social (teorias de gênero). O sexo brocha diante do gênero.

Temo que, se fosse escrita hoje em dia, "Salomé" seria censurada sob a acusação de ser "machista". Oscar Wilde seria considerado mais uma vez um incorreto. Os corretinhos, que vão acabar com a inteligência de uma vez por todas em algum momento do século 21, nunca entenderão que não existe "arte correta", só sob regimes fascistas.

E por que "Salomé" seria incorreta? Porque a peça fala de como Salomé, enlouquecida pelo profeta João Batista, que a despreza, manda cortar sua cabeça. E a ideia de que uma mulher mande cortar a cabeça do homem que a despreza, por tesão e ressentimento, parece um absurdo no mundo dos corretinhos em que vivemos.

Todos conhecem a história do Novo Testamento na qual a princesa da Judeia Salomé pede ao seu padrasto Herodes (o filho, não o pai, o grande arquiteto e reformador do segundo templo de Jerusalém) a cabeça do profeta João Batista, que acusava sua mãe de prostituta.

Supostamente, Salomé, que é objeto de desejo enlouquecido do padrasto, faz esse pedido, após dançar para ele, por conta das ofensas do profeta contra sua mãe.

Aí vem a grande sacada de Oscar Wilde. Haveria outro motivo para um pedido tão monstruoso? O desejo de Herodes por ela é conhecido, mas e se ela fosse apaixonada pelo profeta?

Seu pedido seria, para Oscar Wilde, na verdade, uma vingança passional contra o amante que a desprezou (coisa comum desde a pré-história, mas que agora é moda dizer que é "fruto da opressão").

Homens também se vingam por paixão, mas os afetos masculinos não estão na moda, a menos que seja como parte da própria "opressão" da frase acima. Um homem teria atravessado a amante que o desprezou com uma faca, não pedido que cortasse sua cabeça para por entre as pernas.

Salomé é atraída pelo profeta preso. Manda tirá-lo da cela, usando o amor do capitão da guarda por ela (que acaba por se matar de ciúmes).

À medida que o profeta canta seu amor por Deus e seu desprezo pelo mundo da carne, ela vai ficando com tesão. A castidade dele a enlouquece (muitas mulheres sonham em pôr a perder padres e pastores casados).

Salomé, então, será devorada de tesão. Quer seu corpo, seus cabelos, sua boca, quer beijá-lo, lambê-lo. Ele a despreza. Ela enlouquece e pede sua cabeça para que possa beijar, enfim, sua boca, mesmo que cheia de sangue. Manda matá-lo por raiva e tesão.

O desejo desorganiza, mas é delicioso. Com o sangue dele entre as pernas, nos seios, nos cabelos e na boca, Salomé aperta o morto assim como quem quer engoli-lo por inteiro.

Mas, imagino que num mundo no qual sexo será de uma vez por todas careta como tudo que é correto, esta Salomé não existirá. Provavelmente, estará por aí, sendo fálica, lutando com uma espada, querendo ser homem.

Mas a Salomé encantadora é aquela que morre de tesão, aperta a cabeça do profeta morto entre as pernas e bebe seu sangue, com os olhos vidrados de dor.