sábado, 19 de agosto de 2017

Doppelgänger russo - O Duplo - Dostoiévski

René Magritte | The Secret Double (Le Double secret) (1927)
Faltava pouco para as oito da manhã quando o conselheiro titular Yákov Pietróvitch Golyádkin despertou de um longo sono, bocejou, espreguiçou-se e por fim abriu inteiramente os olhos. Aliás, ficou uns dois minutos deitado em sua cama, imóvel, como alguém que ainda não sabe direito se acordou ou continua dormindo, se tudo o que está acontecendo a seu redor é de fato real ou uma continuação dos seus desordenados devaneios. Logo, porém, os sentidos do senhor Golyádkin começaram a registrar com mais clareza e precisão as suas impressões habituais, corriqueiras. As paredes empoeiradas de seu pequeno quarto, escurecidas pela fumaça, cobertas de um tom esverdeado meio sujo, a cômoda de mogno, as cadeiras de mogno, a mesa pintada de vermelho, o divã turco coberto por um encerado vermelho com florzinhas verdes e, por fim, a roupa tirada precipitadamente na véspera e largada como uma rodilha sobre o divã se apresentaram a ele com sua feição familiar. Por último, o dia cinzento de outono, turvo e enlameado, espiou pela vidraça embaçada de sua janela com um ar tão zangado e uma careta tão azeda que o senhor Golyádkin já não teve como duvidar de que não se encontrava em algum reino dos confins, mas na cidade de Petersburgo, na capital, na rua Chestilávotchnaya, no quarto andar de um prédio bastante grande, imponente, em seu próprio apartamento. Feita tão importante descoberta, o senhor Golyádkin fechou convulsivamente os olhos, como se lamentasse ter acabado de sair do sono e desejasse retomá-lo por um minuto. Mas ao cabo de um minuto se levantou da cama de um salto, é provável que por ter finalmente atinado com a ideia em torno da qual vinham gravitando até então seus pensamentos difusos e fora da devida ordem. Depois de pular da cama, correu imediatamente para um pequeno espelho redondo que estava em cima da cômoda. Embora sua figura morrinhenta, acanhada e bastante calva fosse exatamente daquele tipo insignificante que à primeira vista não chamaria a atenção exclusiva de ninguém, seu dono parecia gozar de plena satisfação com o que acabara de ver. “Ah, seria uma coisa — disse o senhor Golyádkin a meia-voz —, seria mesmo uma coisa se hoje eu cometesse alguma falha, se, por exemplo, acontecesse alguma esquisitice — me brotasse uma espinha estranha ou me viesse alguma outra contrariedade; se bem que por enquanto a coisa não anda mal; por enquanto tudo vai bem.” Muito contente com o fato de que tudo ia bem, o senhor Golyádkin devolveu o espelho ao seu antigo lugar e, apesar de estar descalço e continuar metido na roupa com a qual costumava recolher-se para dormir, correu até a janelinha e com grande afinco pôs-se a procurar com os olhos alguma coisa no pátio do prédio, para o qual davam as janelas do seu apartamento. Pelo visto, o que ele procurava no pátio também o deixou plenamente satisfeito; um sorriso de contentamento tornou seu rosto radiante. Aliás, depois de primeiro espiar por cima do tabique do cubículo de Pietruchka (Diminutivo de Piotr. [N. do T.]), seu criado, e constatar que ele não estava ali, foi pé ante pé até a mesa, abriu uma gaveta, remexeu em seu fundo, bem na parte de trás, por fim tirou de debaixo de velhos papéis amarelados e outros rebotalhos uma carteira verde surrada, abriu-a com cuidado e olhou com cautela e prazer para o seu bolso mais afastado e secreto. É provável que o maço de notinhas verdes, cinzentas, azuis, vermelhas e outras notinhas multicores também tenha olhado de um jeito muito amável e aprobativo para o senhor Golyádkin: com ar radiante, ele pôs a carteira aberta sobre a mesa à sua frente e esfregou as mãos com toda a força em sinal de imenso prazer. Por fim tirou aquele seu maço, o mais consolador maço de notas e, pela centésima vez desde a véspera, começou a recontá-las, separando cuidadosamente nota por nota com o polegar e o indicador. “Setecentos e cinquenta rublos... uma quantia formidável! Uma quantia agradável — continuou ele com voz trêmula, um pouco debilitada pelo prazer, apertando o maço na mão e sorrindo de modo significativo —, é uma quantia muito agradável. Agora eu queria ver alguém achar essa quantia insignificante! Uma quantia assim pode fazer um homem ir longe...” - Fiódor Dostoiévski
Publicado um pouco depois de seu aclamado romance de estreia, Gente pobre (1846), Dostoiévski publicava O Duplo. Embora incompreendido pela crítica da época, devido à novidade do tema e ao experimentalismo formal propostos, o autor plantou ali seu futuro: uma locução que o tornaria famoso em Crime e castigo (1866) e O idiota (1869).

Nos apresentando um fluxo de consciência considerável influenciado por Hoffmann e Gógol, Dostoiévski alcançou em O Duplo um estilo tradicional que permearia toda a literatura russa até a queda do Muro de Berlim.

Ilustração do impressionista Alfred Kubin

O romance nos apresenta o funcionário público Yákov Pietróvitch Golyádkin, que reprime seus pensamentos e ações, até que são personificadas e exteriorizadas em uma outra pessoa, em um doppelgänger que é tudo o que ele queria ser, e aos poucos o destrói.

Recentemente, o livro foi adaptado em 2015 pelo diretor inglês Richard Ayoade e coloca a trama em um cenário distópico, aparentemente localizado, entre os anos 1950 e 1980. Nosso herói se chama Simon. Vivido por Jesse Eisenberg, um sujeito solitário que cumpre com zelo sua rotina burocrática até aparecer seu sósia, que leva a melhor em tudo - até com Hannah, seu interesse romântico.