quinta-feira, 7 de julho de 2022

Conto de Areia: capoeira, de escrava para abolida

Slaves Fighting, Brazil, ca. 1820-24 by Augustus Earle ("Negros Lutando" [1820-24], de August Earle)

Capoeiras, capoeiras! gente que com a testa faz n'um instante mais espalhafato que meia dúzia de Godans ébrios a jogarem o soco; gente que com a faquinha n'uma mão e o copo na outra afronta o mais intrépido valentão, mete às vezes uma patrulha no chinelo, fazendo-a amolar as gâmbias com a maior frescura do mundo; gente garrula, provocadora, que só guarda as esquinas ou as praças do mercado, rebuçada às vezes em uma velha capa, trazendo o seu cacetinho por disfarce. Eis os capoeiras! - O CORREIO DA TARDE, Rio de Janeiro, 3/11/1849
Arte marcial dos tempos coloniais, a capoeira inicialmente tinha sua prática constituída por homens jovens da África Centro-Ocidental, isto é, Angola, Congo e Cabinda, na época colônias portuguesas. Como uma forma de resistência ao então Estado luso-brasileiro, ela combinava elementos de dança e de luta de diversas dessas regiões, combinando características próprias no Brasil, sendo exercida por crioulos e mulatos. A origem de seu nome é ambíguo: pode ter vindo dos praticantes escravos que carregavam produtos nas suas cabeças em grandes cestos conhecidos como capoeiras ou se originando da analogia percebida entre os golpes rasteiros e a vegetação de mato fino onde antes foi mata virgem derrubada. Sua evolução no papel de resistência e orgulho da cultura africana hoje ostentado por homens livres era motivo de prisão e castigos físicos por coisas simples: como um assobio de uma cantiga ou o uso de um casquete com fitas amarelas e vermelhas.

Prática proibida no Brasil até 1930, sua liberação total ocorreu em 1953. Em um processo lento e gradual liderado por Manoel dos Reis Machado, conhecido Mestre Bimba, criador da Capoeira Regional, depois de se apresentar no palácio da Aclamação em 1930 e convencer o então governador da Bahia, Juracy Magalhães, o valor cultural da prática. Fundou então, dois anos depois, a primeira escola de capoeira do mundo, a Academia-Escola de Cultura Regional, em Salvador, sendo reconhecido como educação física pela então Secretaria de Educação, Saúde e Assistência Pública. O período era muito propício, já que o período de forte nacionalismo. Em julho de 1953, durante sua passagem por Salvador, o então presidente Getúlio Vargas declarou após ver uma apresentação de Bimba: “A capoeira é o único esporte verdadeiramente brasileiro”. Na apresentação, o grupo era formado por uma charanga (dois pandeiros e um berimbau) e com capoeiristas que se revezavam de dois em dois, com movimentos e golpes coreografados.

Um dos muitos esforços do Mestre Bimba durante seus anos como capoeirista foi desvincular a imagem da capoeira da marginalidade, criando um código de ética próprio para recuperar a reputação e ser aceita, espalhando para além dos ambientes tipicamente associados a capoeiragem, como crimes, festas e submundo da boêmia. Seus alunos deviam estar sempre apresentáveis, com uniformes (abadás) brancos e limpos, além de lenços coloridos indicando sua graduação. Eles também não podiam beber álcool ou fumar, e suas habilidades deveriam ser mostradas em roda, com exceção à legítima defesa. Os praticantes da variedade regional tem em seus conjuntos coreografados de movimento de combate projeções de queda e golpes desequilibrantes com variações entre ginga e esquiva. Esse esforço de maneira geral teve êxito já que hoje são poucas as pessoas que conhecem o espectro delinquente da capoeira.

Mestre Bimba

Mesmo com a liberação governamental, a capoeira continuou sendo vista como uma atividade de marginais. Foi apenas em 1972 que sua prática foi oficializada como esporte pelo Conselho Nacional de Desportos. Hoje é considerada um dos maiores símbolos da cultura Brasileira sendo a Roda de Capoeira, desde 2014, reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Imaterial da Humanidade. Misto de artes marciais, esporte e dança, na atualidade a capoeira é praticada por milhões de pessoas em todo o mundo, conquistando novos adeptos onde chega, coordenando em uma mesma linha educacional o desenvolvimento de uma atividade física e mental que envolve ritmo e, obviamente, disciplina e rigidez.

Mestre Pastinha

Outra vertente da capoeira, a Capoeira Angola também foi um movimento contemporâneo da Capoeira Regional. À semelhança de Mestre Bimba, Vicente Ferreira Pastinha, mais conhecido como Mestre Pastinha, colaborou com a preservação da arte marcial. Em 1910 começou a ministrar aulas de capoeira às escondidas na sua própria casa, pois a prática ainda era proibida. Assumindo o comando do importante grupo Centro Esportivo da Capoeira Angola (CECA) em 1941, depois de um hiato, onde se afastou da capoeira entre 1920 e 1940. Instalando o CECA no Pelourinho em 1955, região histórica de Salvador e já com a capoeira legitimada, foi alvo direto de ações da Prefeitura que o estava convertendo o local em um polo turístico com o trabalho do Departamento de Turismo dirigido pelo escritor Vasconcelos Maia desde 1950.

Com passagem pela Marinha e pelo Liceu de Artes e Ofício, teve em sua prática rotinas atividades que foram reaproveitadas em suas aulas. Foi dele a invenção de uma capoeira mais teatralizada, com os aspectos do sincretismo religioso, mantendo-se próximo de intelectuais que defendiam a superioridade do candomblé nagô. Em 1966, representou o Brasil por meio da Capoeira Angola no 1º Festival Mundial das Artes Negras, em Dacar, no Senegal. Ele estava ficando cego, consequência de uma trombose que atingiu sua visão, e não chegou a passear em terras africanas. O escritor Jorge Amado, admirador de Mestre Pastinha e também um dos que lhe deram suporte em momentos difíceis de sua vida, dizia que ele não era apenas um praticante da capoeira, mas um teórico dela. Em seu livro Capoeira Angola (1965), Pastinha defendia a natureza não violenta do jogo e afirmava que a capoeira conferia dignidade, honradez e decência aos seus praticantes e argumentou que  a prática dos grupos de capoeiras do passado impediam a capoeira de ascender socialmente.

É inegável a efervescência da capoeira culturalmente no Brasil entre o inicio e o meio do século XX. Em uma fascinante saga em terras nacionais, como um verdadeiro "Conto de Areia" ou "Conto de Capoeira", é claro que a capoeira resiste e persiste apesar das dificuldades, imprimindo marcas indissociáveis na identidade nacional.

Jogar capoêra, ou, Danse de la guerre, Brazil, ca. 1935 by Johann Moritz Rugendas
("Dança da guerra" de Johann Moritz Rugendas, 1935)