quarta-feira, 15 de agosto de 2018

A escravidão na noite mais escura - O Escravo de Capela (Marcos DeBrito)

O SOL FORTE DAQUELE DIA ARDERA POR TODA A TARDE na pele negra dos escravos que trabalhavam na lavoura de cana-de-açúcar da Fazenda Capela. O canavial esparramava-se pela vasta planície, estendendo-se além das vistas, e muitos homens eram necessários para lavrar os incontáveis alqueires de cana-de-açúcar daquela terra que não parecia ter fim. - Marcos DeBrito

O LIVRO


Tendo como cenário a época do Brasil do Colônia, no final do Século XVIII, na Fazenda de Capela, que passa por um período conturbado. A narrativa tem dois núcleos distintos, a Casa-Grande e a Senzala.

Casa-Grande é administrada por Antônio Batista da Cunha Vasconcelos, que é pai do capataz Antônio Batista da Cunha Vasconcelos Segundo, um homem sádico e psicótico que saboreia violentar os escravos das maneiras mais sádicas possíveis e o médico recém-formado Inácio, o mais jovem dos irmãos Cunha Vasconcelos, que volta à fazenda depois estudos pela Europa com pensamentos abolicionistas, discordando completamente do tratamento dado aos escravos de Capela. Deslocado, ele se apaixona pela escrava Damiana, e com isso também um amor proibido na época surge com mistérios terríveis por trás da origem do casal - mais especificamente na jovem.

Já na Senzala está Sabola Citiwala, um escravo que chegou a pouco tempo na fazenda e sofre ao se adaptar a condição servil e nas mãos do capataz e Akili, um senhor que, há muitos anos, havia tentado fugir de Capela e como castigo foi incapacitado de andar após um dos castigos cruéis de Antônio Segundo. No meio de todo esse sofrimento, uma cumplicidade acaba surgindo, com Akili vendo a mesma determinação e desejo de liberdade em Sabola que tinha no passado, e ajudando o jovem congolês arquitetar um plano de fuga e envergonhar os Cunha Vasconcelos.

E é justamente graças a um ato nefasto de Antônio Segundo que uma figura encapuzada e vingativa retorna dos mortos atrás de todos que o fizeram sofrer e foram testemunhas de tamanha crueldade. Marcos DeBrito reconstrói o folclore nacional utilizando elementos históricos e sobrenaturais, cheio de surpresas e reviravoltas - um terror nacional que precisa ser mais conhecido.


O CONTO



Um dos momentos mais marcantes dessa bienal para mim, foi conhecer o autor do livro. Posso dizer que me tornei um fã lendo um pouco sobre seu trabalho no cinema e o minilivro disponibilizado pelo site da Faro Editorial.

Desde que publiquei o King, Poe, Lovecraft pela Editora Illuminare, não parei de escrever e enviar contos para antologias. Qual foi minha felicidade que, o conto que enviei para Em Foco Editora foi selecionado para fazer parte da antologia Tudo se completa de algum jeito.

Quando li o edital, pensei que não poderia encaixar um conto dark nela. Cabia apenas amor e coisas do coração - que não são, definitivamente, minha praia. Foi quando li essa parte de O Escravo de Capela e visitei a Casa do Sítio da Ressaca (um museu afro localizado no Jabaquara). Notei que abandonamos nossas memórias, e que, "de algum jeito", a escravidão ainda fez - e faz - parte de nossa cultura. Suas chagas não vão ser curadas em um dia, um mês, um ano, um século.

A Casa está abandonada, caindo totalmente aos pedaços. Em um total desprezo, o poder publico colocou concreto armado sobre barro - o que causou rachaduras por toda a casa. A má conservação chega a tal ponto que a casa está caindo: a terraplanagem foi mal feita, canalizando os córregos de água limpa e evitando que a terra pudesse absolver os nutrientes dela. O peso a está levando para um barranco, e não demora muito tempo para ela ser totalmente destruída pelo tempo.


Prestes a completar 300 anos, segundo o Jornal São Paulo Zona Sul, a casa bandeirista de pau a pique que serviu por muito tempo como rota de fulga dos escravos, foi descoberta em um passeio feito pelo modernista Mário de Andrade em 1937, quando o escritor ocupada o cargo de Secretário Municipal de Cultura. O primeiro restauro da Casa Sítio da Ressaca foi há 40 anos, em 1978, e aberta ao público em 1979. Em 1986, sofreu um pequeno incêndio. Depois, passou por quatro novos pequenos restauros, o último deles em 2002. O Jabaquara News corrobora com a informação com a foto acimaAtualmente encontra-se sustentada por escoras de madeira para não ruir de vez - e isso se arrasta desde 2004.

Então, vendo tudo isso, eu tinha o cenário, a temática (a escravidão do Brasil e seus reflexos) só faltava o enredo. Conhecendo a direção que ia o livro do Marcos, eu segui suas pegadas até notar que, para ter o impacto e passar a mensagem que almejava, precisaria fazer um caminho totalmente inverso - como um caçador atrás dos rastros do Curupira. Foi dai que nasceu a história, que logo trás nas primeiras linhas, uma homenagem a esse grande escritor e ao Pedro (editor da Faro Editorial).

Para quem quiser saber mais sobre a cultura negra no Brasil, visitem a Casa do Sítio da Ressaca, o Museu Afro Brasil e a exposição "Histórias Afro-Atlânticas” presente em duas sedes: o MASP e o Instituto Tomie Ohtake.