sexta-feira, 6 de abril de 2018

O Retorno de Hastur - August Derleth - Parte I


NA VERDADE, COMEÇOU há muito tempo: há quanto tempo, não ousaria dizer, mas no que diz respeito à minha conexão com o caso que arruinou minha carreira e trouxe dúvidas aos médicos quanto à minha sanidade, começou com a morte de Amos Tuttle. Foi numa noite de fins de inverno, com o vento sul soprando a vinda da primavera. Estava eu na antiga Arkham, assombrada pelas lendas, naquele dia; ele soube da minha presença pelo dr. Ephraim Sprague, que o atendia, e fez com que o médico chamasse a Lewiston House e trouxesse-me àquela propriedade lúgubre na Estrada Aylesbury, próxima a Innsmouth Turnpike. Não seria um lugar onde eu gostaria de estar, mas o velho pagava-me o suficiente para que eu tolerasse seu jeito tristonho e sua excentricidade, e Sprague havia deixado claro que ele estava moribundo: suas horas estavam contadas.

E de fato era o caso. O velho mal teve forças para fazer com que Sprague saísse do aposento e então falar comigo, embora sua voz estivesse clara o suficiente, saindo com pouca dificuldade.

“Você conhece minha vontade testamentária,” disse ele. “Cumpra-a ao pé da letra.”

Essa havia sido uma questão polêmica entre nós, devido a seu desejo de que, antes que seu herdeiro e único sobrinho sobrevivente, Paul Tuttle, pudesse clamar a propriedade, a casa devesse ser destruída – não derrubada, mas destruída, junto com certos livros designados pelo número de prateleira, em suas instruções finais. Seu leito de morte não era lugar para debater novamente aquela ideia de destruição gratuita; assenti, e aceitei a ordem. Teria sido melhor sorte se eu tivesse obedecido sem questionar!

“Veja só,” continuou, “há um livro lá embaixo, que você deve devolver à biblioteca da Universidade Miskatonic.”

Falou-me do título. Naquele momento não significava nada para mim; mas a partir daí tornara-se para mim, mais do que eu possa descrever – símbolo de um horror ancilário, de coisas enlouquecedoras além do véu da vida cotidiana e prosaica – a tradução latina do abominável Necronomicon, de autoria do árabe louco Abdul Alhazred.

Encontrei o livro com facilidade. Pelas últimas décadas de sua vida, Amos Tuttle havia vivido em reclusão cada vez maior, entre livros coletados em toda parte do globo; textos antigos, roídos pelas traças, com títulos que apavorariam um homem menos rijo – o sinistro De Vermis Mysteriis, de Ludwig Prinn, o terrível Culte de Ghoules do Comte d'Erlette, o condenável  Unaussprechlichen Kulten de von Juntz. Não sabia então o quão raros eram esses livros, nem compreendia a raridade sem preço de certas peças fragmentárias: o aterrorizante Livro de Eibon, os Manuscritos Pnakóticos, cheios de passagens horrorosas, e o temível Texto de R'lyeh; pois estes, descobrir ao examinar os balancetes, depois da morte de Amos, haviam sido comprados por somas fabulosas. Mas em parte alguma eu encontraria um número tão alto quanto aquele pago pelo Texto de R'lyeh, que havia chegado a ele de alguma parte do interior sombrio da Ásia; de acordo com os arquivos, ele havia pago não menos que cem mil dólares pelo livro; mas além disso, no registro do manuscrito amarelado, havia uma notação que me confundiu na época, mas que me dá ânsia pressagiosa em relembrar – depois da menção da soma, Amos Tuttle havia escrito, com sua caligrafia de teia de aranha: além do cumprimento da promessa.

Estes fatos não aconteceram até que Paul Tuttle tomasse posse, mas antes disso, várias ocorrências estranhas aconteceram, coisas que deveriam ter levantado minhas suspeitas quanto às lendas interioranas que falam de poderosas influências sobrenaturais ligadas à casa antiga. A primeira dessas ocorrências foi de pouca consequência, comparada às outras; aconteceu apenas que, ao devolver o Necronomicon à biblioteca da Universidade Miskatonic, em Arkham, encontrei-me levado por uma bibliotecária de lábios franzidos, direto ao escritório do diretor, Dr. Llanfer, que pediu-me diretamente para que eu explicasse a razão pela qual o livro estava em minhas mãos. Sem hesitação em responder, descobri que o raro volume jamais recebera permissão para sair da biblioteca e que, na verdade, Amos Tuttle o havia subtraído em uma de suas raras visitas, após ter falhado em persuadir o Doutor Llanfer a emprestá-lo. E Amos havia sido astuto o suficiente ao preparar de antemão uma imitação maravilhosamente razoável do livro, com a encadernação quase idêntica, e a reprodução do título e de suas páginas iniciais reproduzidas de memória; na ocasião de seu furto do livro do árabe louco, Amos havia substituído a imitação pelo original e saído com uma das duas únicas cópias disponíveis desta obra temida no continente norte-americano e uma das cinco conhecidas no mundo.

A segunda das ocorrências foi um pouco mais alarmante, embora tenha a aparência de sair das histórias mais convencionais de casas assombradas. Tanto Paul Tuttle quanto eu ouvimos na casa, em momentos estranhos da noite, particularmente enquanto o cadáver de seu tio estava ainda lá, o som de passos acolchoados, mas com algo esquisito neles: não era como se os passos fossem dentro da casa, mas passos de alguma criatura de tamanho quase além da concepção do homem, andando uma boa distância nos subterrâneos, de modo que o som na verdade vibrava na casa, a partir das profundezas da terra abaixo desta. E quando faço referência a passos, é apenas por falta de uma melhor palavra para descrever os sons, pois não eram passos limpos mas sons esponjosos, gelatinosos, chapinhantes, feitos com a força de tanto peso, que o consequente tremor de terra naquele lugar não era mais que isso. Mas agora o barulho se foi, coincidentemente logo após termos despachado o cadáver de Amos Tuttle, 48 horas antes do planejado. Os sons, classificamos como apenas os assentamentos da terra ao longo da costa distante, não só porque não demos muito importância a eles, mas devido à coisa final que aconteceu antes de Paul Tuttle tomar posse oficial da velha casa na Estrada Aylesbury.

A última coisa foi a mais chocante de todas, e dos três que a presenciaram, apenas eu permaneço vivo hoje, já que o doutor Sprague faz um mês de morto hoje, mas na época fora ele que observou e disse, “Enterre-o logo!” E assim o fizemos, pois as mudanças no corpo de Amos Tuttle eram macabras além da compreensão, especialmente horríveis no que sugeriam, e assim porque o corpo não estava caindo em decadência visível, mas mudando sutilmente para outra coisa, infundindo-se de uma iridescência esquisita, que escurecia até o ponto de parecer quase ébano, e a aparência da carne de suas mãos inchadas e de seu rosto mostrava o crescimento de pequenas escamas. Da mesma forma haviam mudanças no formato de sua cabeça; parecia alongar-se, assumir uma forma curiosa e pisciana, acompanhada de uma leve emanação de cheiro de peixe, saindo do caixão; e o fato dessas mudanças não serem mera imaginação foi chocantemente comprovado quando o corpo foi depois encontrado no lugar para onde seu maligno sucessor havia levado, e lá, finalmente apodrecendo, outros viram comigo as terríveis e sugestivas mudanças que haviam ocorrido, embora devam dar graças que não tenham conhecimento do que aconteceu antes. Mas no período em que Amos Tuttle estava na casa velha, não haviam pistas do que estava para acontecer, e fomos rápidos em fechar o caixão e mais rápidos ainda em levá-lo até o mausoléu dos Tuttle, coberto de hera, no cemitério de Arkham.

Naquela época, Paul Tuttle estava no final da casa dos quarenta anos, mas como muitos homens de sua geração, tinha o rosto e a constituição de um jovem de vinte. De fato, a única pista de sua idade estava nos leves toques de cinza no cabelo de seu bigode e têmperas. Ele era um homem alto e de cabelos escuros, um tanto acima do peso, com olhos azuis e francos, que anos de pesquisa erudita não haviam reduzido à necessidade de óculos. Ele não ignorava os termos da lei, pois rapidamente nos fez saber que se eu, como executor testamentário de seu tio, não estivesse disposto a ignorar a cláusula que ordenava a destruição da casa na Estrada Aylesbury, contestaria em juízo com base na insanidade de Amos Tuttle. Apontei a ele que ele estaria sozinho contra mim e o dr. Sprague, mas ao mesmo tempo não estava cego ao fato de que a irrazoabilidade da ordem poderia muito bem nos trazer uma derrota jurídica; e além disso, eu mesmo considerava a cláusula, nesse sentido, esquisitamente gratuita e sem sentido nesse apelo à destruição, e não estava preparado para lutar no tribunal por uma questão tão menor. Ainda assim, se tivesse previsto o que viria depois, teria atendido ao último pedido de Amos Tuttle, não importando qualquer decisão da corte. Contudo, tal capacidade de previsão não me ocorreu.

Eu e Tuttle fomos ver o juiz Wilton, e expomos o caso a ele. O juiz concordou conosco que a destruição da casa parecia desnecessária, e mais de uma vez fez sutil menção de concordar com a crença de Paul Tuttle na insanidade de seu falecido tio.

“O velho parecia alienado, sempre o conheci assim,” disse secamente. “Quanto a você, Haddon, poderia levantar-se no tribunal e jurar que ele era absolutamente são?”

Lembrando, com certo desconforto, o roubo do Necronomicon na Universidade Miskatonic, tive de confessar que não poderia fazê-lo.

De modo que Paul Tuttle tomou posse da propriedade na Estrada Aylesbury, e eu retornei a meu escritório advocatício em Boston, não exatamente descontente com a resolução das coisas, mas ainda assim sentindo um desconforto oculto, difícil de ser definido, uma sensação insidiosa de tragédia iminente, com certeza também alimentada por minha memória do que havia visto no caixão de Amos Tuttle, antes que este fosse selado e trancado no secular mausoléu do cemitério de Arkham.

Tradução de Arthur Ferreira Jr.