segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Idiotas que creem na salvação pela tecnologia ignoram essência humana - Luiz Felipe Pondé


A fenomenologia científica da idiotia contemporânea ocupará muito tempo nos anais dos congressos de antropologia e etnopsiquiatria nos próximos mil anos. Isso se esses mil anos não forem tomados por esses tipos sofisticados de idiotas que dominam, em grande parte, o mundo "rico" atual.

Você não sabe o que é um idiota da tecnologia? Veja o filme "O Círculo", com Emma Watson e Tom Hanks. A personagem interpretada por ela é o exemplo típico de um idiota da tecnologia. O personagem interpretado por ele, o vilão, é mais saudável do que ela, a "santinha" da história.

Eis uma primeira característica desse tipo de comportamento: o idiota da tecnologia é alguém que vê o avanço da tecnologia como fato evidente de que o mundo será melhor e de que, retirando de circulação os poucos vilões (como o personagem do Hanks no filme em questão), o resto da humanidade (a maioria soberana) caminhará em direção a um futuro de "uso responsável" da ferramenta.

A ferramenta de redes sociais do filme é simples: todos veem todos o tempo todo. Como diz a personagem da Watson: "Every secret is a lie" (todo segredo é uma mentira).

Ao longo do filme, algo de terrível acontece com ela e um amigo seu, mas, diante do horror da destruição da privacidade, ela opta por comparar os riscos dessa ferramenta com aviões que raramente caem, mas que nem por isso deixamos de voar.

Nessa comparação reside a identidade do idiota da tecnologia. Ele é um incapaz de apreender que o ser humano, quando exposto a demasiada luz, dissolve. Torna-se um monstro. É na sombra que a alma sobrevive. Na ausência de informação plena. Numa certa tensão com a impossibilidade, com o fracasso. Só idiotas "creem" no sucesso como redenção do humano -ou quem nunca teve sucesso na vida.

Num dado momento, ao ser entrevistada para entrar no "Círculo", a empresa em questão, ela diz que o pior que pode acontecer à humanidade é "ter potencialidades não realizadas". Outro traço do idiota da tecnologia. Não entende que a realização da potencialidade absoluta é a "demonização" do humano. E que os inteligentinhos da tecnologia não me venham com seu mimimi. É um descrente que aqui vos escreve. Quem defende o humano pleno (o "pós-humano" como dizem por aí), ou o faz por ignorância ou por má-fé.

No filme, nossa idiota, após levar seu melhor amigo à morte por conta do assédio de um bando de pessoas, que como um enxame de abelhas o localizam e o acossam por meio de seus celulares e da ferramenta de localização do "Círculo", chega à conclusão de que eliminando o dono da empresa (o capitalista egoísta interpretado por Hanks) e abrindo a ferramenta para o mundo inteiro, todo o risco acabará.

Na última cena, todo mundo vê todo mundo no mundo todo, em tempo real. Quem não percebe a distopia nessa sequência é um idiota da tecnologia.

A ideia de transparência absoluta da vida é uma monstruosidade em que, infelizmente, muitos creem. A democracia plena.

O fato de que a falta de transparência pode levar à corrupção faz com que os idiotas da tecnologia achem que instalando a transparência plena (todos veem todos o tempo todo em tempo real) acontecerá a pureza absoluta no mundo.

Não. Levará a outro tipo de corrupção: aquela já descrita, ainda de forma "fascista", na obra "1984" de George Orwell. Não há tirano maior do que o controle de todos por todos. A soberania absoluta do "povo" sobre as pessoas é pior do que a tirania de Lênin ou Stálin. O maior fascismo é a democracia de todos contra o indivíduo. Não há onde se esconder.

Fiodor Dostoiévski (1821-1881), o maior profeta desse tipo de horror moderno (entre outros profetizados por ele), viu o sonho da "democracia das redes sociais plena" em 1851 no Hyde Park em Londres: o Palácio de Cristal, a casa do futuro (fato ao qual o autor alude em seu livro "Memórias do Subsolo").

Diante do delírio dos que viam nessa casa transparente a beleza das tecnologias do progresso, em que todos seriam "objetos da informação", Dostoiévski fez o diagnóstico que vale para esses idiotas das tecnologias da informação hoje: só o homem escondido no subsolo sobreviverá.

Luiz Felipe Pondé é filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência.