terça-feira, 23 de novembro de 2021

CTHULHU ENTRE O CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES

O que há de mais misericordioso no mundo, creio eu, é a incapacidade da mente humana para correlacionar tudo o que ela contém. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a negros mares de infinitude, e não fomos destinados a nos aventurar muito longe. As ciências, cada qual se empenhando em seguir seu próprio rumo, poucos danos têm até o presente nos causado; mas quando, algum dia, as peças do nosso conhecimento desagregado se juntarem, irão expor o panorama de uma realidade tão aterrorizante — e também a posição apavorante que ocupamos nela —, que ou enlouqueceremos com a revelação ou nos refugiaremos das luzes letais na paz e na segurança de uma nova idade das trevas.

– O chamado de Cthulhu, H.P. Lovecraft


A citação acima do presente texto não foi colocada aleatoriamente de modo nenhum. O presente autor acredita que, se fosse pedido um parágrafo que condenasse a proposta do que é horror para o cavalheiro de Providence, esse seria o escolhido (muito embora A Música de Erich Zann e A Cor que Caiu do Espaço sejam texto superiores e melhores acabados segundo sua própria proposta). A originalidade, a complexidade estruturante da narrativa e à ideia de uma ameaça cósmica traduzida na pluralidade de vozes, “O chamado de Cthulhu” constitui um marco não só na obra do autor, mas de todo o terror moderno trazendo nuances criativas ainda não exploradas na época.


Em suas origens, a temática do conto já era presente em sonhos e anotações, com os tópicos literários dos autores Guy Maupassant e Arthur Machen de textos bastante específicos. Le Horla, onde Lovecraft toma emprestado um repertório de características de um ser que objetivamente quer dominar silenciosamente a humanidade e Novel of the Black Sea de quem toma emprestado a estrutura narrativa de suspense.


A explosão no mercado norte-americano de revistas populares contendo ficção de vários gêneros no início do século passado trouxe para o grande público, autores hoje consagrados. Periodicamente, as revistas pulp traziam enredos dos mais variados e simples. Leves e de fácil leitura, foram a porta de entrada para vários autores. Foi durante a década de 1930 que vários autores norte-americanos contribuíram para um catálogo de trabalho colaborativo composto de narrativas que mais tarde ficaram conhecidas como Cthulhu Mythos.


Batizada por August Derleth, essa pseudomitologia acabou englobando narrativas em um universo compartilhado de vários autores. Tendo origem nas histórias de Lovecraft, elas tiveram participação de autores como Robert Ervin Howard, Clark Ashton Smith e Robert Bloch. Essas histórias dizem respeito ao retorno à Terra de seres ancestrais após milênios de ausência, de entidades transdimensionais que aterrorizavam e tornavam-se divindades por onde passavam. O uso do nome da entidade Cthulhu é justificado apenas por sua fama, pois em relação ao panteão de “deuses” lovecraftianos Cthulhu tem um lugar bastante inferior em relação a outras entidades devastadoras. Construído de forma fragmentada através de diversos contos, o Mythos apresenta um sentido (ou falta de) para o cosmos (SCOTUZZI, 2016, p. 3).


A criação dos Mitos é em sua origem, promíscua. Lovecraft utilizava criações de Smith e Howard em suas próprias histórias, e vice-versa: basta lembrar que Justin Geoffrey é criação de Howard (The Black Stone - 1931) mas é utilizado por Lovecraft (The Thing on the Doorstep - 1933) e a raça dos homens-serpentes, criada por Howard para Rei Kull (The Shadow Kingdom - 1929) mas que tem a descrição um pouco mais aprofundada por Smith em The Seven Geases (1934) enquanto Bloch em uma brincadeira trouxe Lovecraft como um personagem morto por um monstro e introduziu o livro De Vermis Mysteriis no conto The Shambler from the Stars (1935) sendo respondido no mesmo ano com o conto The Haunter of the Dark, no qual o jovem Robert Blake (uma referência velada a Bloch) é morto por um alienígena.


Tendo vivido entre o final do século XIX e na primeira metade do século XX, Lovecraft teve sua obra marcada recentemente por controvérsias. Algumas coisas que ele escreveu hoje são consideradas no mínimo ultrapassadas e de mau gosto. O autor caiu em desgraça nos últimos anos, coincidindo com um foco intenso em seu racismo ao ponto de que o troféu World Fantasy Award não ter mais seu busto como prêmio. Ele era dado desde a sua criação em 1975, desenhado pelo cartunista Gahan Wilson. A nova estátua com o novo design - vencedor de um concurso em 2016 - vem do escultor e artista Vincent Villafranca. As várias referências sobre latinos, negros e mulatos não são nada elogiosas:


Examinados na delegacia após uma viagem extensa e fatigante, os prisioneiros revelaram-se todos homens do tipo mais torpe, mestiços e mentalmente perturbados. Em sua maioria eram marinheiros, alguns negros e mulatos, em grande parte caribenhos e portugeus de Brava, nas ilhas de Cabo Verde, que conferiam as cores voduístas àquele culto heterogêneo. Mas antes que se fizessem muitas perguntas, tornou-se manifesto que havia algo muito mais profundo e antigo que a feitiçaria negra envolvido naquilo. Degradadas e ignorantes como eram, aquelas criaturas apegavam-se com surpreendente consistência à ideia central de sua fé abominável. (LOVECRAFT, 2017, p. 55)


Esses “homens do tipo mais torpe” são “mentalmente perturbados” por serem mestiços. O leitor pode vir a incomodar com esse tratamento dado por Lovecraft, que hoje nos revela um olhar ultrapassado e preconceituoso, porém o presente autor acredita que fazer uma leitura apenas do ponto racial seria algo apressado e desmedido (mesmo que obras completamente originais tenham saído dessa leitura, como A Balada do Black Tom de Victor LaValle, Território Lovecraft de Matt Ruff e O alinhamento das estrelas de Juliane Vicente presente no livro Lovecraft: Re-imaginado), restringindo tanto a mensagem contida na obra como a sensação presente nela.


O autor também fala (e critica) o abandono das classes dominantes do que ele chama de cultura superior (oriunda e baseada na filosofia grega, no direito romano e na religião judaica) para abraçar o que é diferente, o que não se encaixa nesse perfil - uma ideia esboçada no segundo parágrafo e trabalhada em uma história anterior chamada "O Horror em Red Hook". Para Lovecraft não só a raça da pessoa era problemática, mas todo o seu meio cultural. Leituras esotéricas pelas referências já no segundo parágrafo do conto a teosofia, éons antigos e ocultismo podem revelar o seu ponto de vista.


Os teósofos vêm tecendo especulações sobre a assombrosa grandeza do ciclo cósmico, dentro do qual nosso mundo e a raça humana não passam de incidentes transitórios. Eles têm se referido a estranhas reminiscências em termos que fariam nosso sangue congelar se não fossem mascaradas por um brando otimismo. Mas não foi deles que partiu o único vislumbre de éons proibidos que me traz calafrios quando penso a respeito e me faz beirar a loucura quando com ele sonho. Esse vislumbre, como sempre acontece com os lampejos atemorizantes da verdade, surgiu de uma combinação acidental de coisas diversas - neste caso, uma velha matéria de jornal e as anotações de um professor falecido. Espero que ninguém mais consiga fazer uma combinação como essa; eu, certamente, enquanto viver, jamais proporcionarei em plena consciência qualquer elo adicional a essa horrenda cadeia. Creio que o professor também pretendia guardar silêncio sobre a parte que lhe era conhecida, e que teria destruído suas anotações se a morte súbita não tivesse se apoderado dele. (LOVECRAFT, 2017, p. 44)


Os cultuadores são vistos como perigosos, medonhos até. A questão de mexer com o oculto, descobrir o mal antigo ou cultuar Cthulhu não te faz superior, não te faz evoluir. Mesmo não sendo cristão (ateu convicto desde os nove anos) é possível encontrar ecos bastante frequentes de uma linguagem religiosa, com termos ligados ao cristianismo para se referir aos perigos que ameaçam a humanidade e a norma mundana como “blasfemo”, “diabólico”, “demônio”, “infernal” e também narra uma lembrança imaginativa (que é mais acessível a pessoas mais sensíveis como Henry Anthony Wilcox, o pintor hipersensível da obra) do mal que há trás das aparências.


A consciência do mal que foge do nosso entendimento e controle é a temática mais recorrente na tradição cristã. Seu ponto de divergência com a tradição lovecraftiana é que não há Cristo para redimir os pecados e salvar as almas do mal. Os personagens que investigam esse mal, os cientistas, acadêmicos e policiais apenas encaram resquícios visíveis do todo: é a tribo de esquimós na Groenlândia que cultua um ser estranho, é o vodu de pessoas no pantano de Nova Orleans, é um artista genial e hipersensível que tem crises e pesadelos, são marinheiros que encontram uma ilha totalmente estranha e tem traumas por isso - fatos inicialmente, para o menor observador, desconexos mas que fazem parte de algo mal que perdemos a extensão por ser muito profundo. Eles, os investigadores, fazem parte ou estão inseridos dentro da cultura superior benigna que vai à forra com a cultura inferior maligna.


Outro que segue essa mesma temática de queda, de abandono de tradições, de conflito com um mal muito maior do que o imaginável mas adicionando a camada de negação da realidade é o escritor francês Michel Houellebecq. Sua maior contribuição recente para essa temática na literatura foi seu romance "Submissão" de 2015. Permeada de humor ácido, a obra nos mostra o fastio e o desencanto cultural da vida do personagem central, François, com a vida dele correndo paralela à do seu país natal, que, decadente, desemboca na submissão quase simultânea de ambos ao islamismo. O autor francês utiliza a mesma simbologia de decepção e desilusão que o ator norte-americano, trocando os cultistas de Cthulhu por cultuadores do islã - não só emulando um conflito racial, mas também um conflito religioso e moral.


Ora, o desencanto é também uma das marcas de Lovecraft. Em um nível mais intenso, transforma-se na certeza de nossa insignificância perante o caos primordial do Universo. É isso que fornece a base da estética do horror cósmico, consolidada pelo autor nascido em Providence, no estado norte-americano de Rhode Island, em 1890. Seus relatos nos lembram de que somos poeira, e nada mais; também nos recordam de que basta o despertar de alguma entidade antiquíssima para, como poeira, sermos varridos da existência. Uma visão de mundo excepcionalmente sombria e da qual Houellebecq compartilha, ainda que a expresse por vias muito diferentes. (NESTAREZ, 2020)


Para Lovecraft, antes mesmo do conteúdo racial, o mais importante é a manutenção de nossa cultura e nossos valores civilizacionais. Os seus preconceitos e incômodos transparecem tanto em seus narradores quanto na criação do seu horror é a defesa sobretudo da cultura ocidental de matriz anglófona. Para ele, nossa civilização é frágil, tem construtos demorados de se montar mais muito rápidos para desmoronar e todas as outras culturas querem destruir esses construtos, mesmo que eles não sejam perfeitos. Cthulhu representa de alguma maneira o imaginário que os acadêmicos seguidores de Samuel P. Huntington designaram como “Choque de Civilizações” onde as identidades culturais e religiosas dos povos se tornam a principal fonte de conflito no mundo pós-Guerra Fria.



De modo geral, a modernização melhorou o nível material de Civilização em todo o mundo. Mas será que ela também melhorou as dimensões moral e cultural de Civilização? Isso parece ser verdade em alguns aspectos. Escravidão, tortura, abuso cruel das pessoas ficaram cada vez menos aceitáveis no mundo contemporâneo. Entretanto, será isso apenas o resultado do impacto da civilização ocidental sobre outras culturas e, portanto, irá ocorrer uma inversão moral à medida que decline o poderio ocidental? Na década de 90, há muitos indícios da relevância do paradigma do “puro caos” dos assuntos mundiais: uma quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente em muitas partes do mundo, uma onda global de criminalidade, máfias transnacionais e cartéis de drogas, crescente número de viciados em drogas em muitas sociedades, um debilitamento generalizado da família, um declínio na confiança e na solidariedade social em muitos países, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver predominam em grande parte do mundo. Numa cidade atrás da outra — Moscou, Rio de Janeiro, Bangeoc, Xangai, Londres, Roma, Varsóvia, Tóquio, Johannesburgo, Délhi, Karachi, Cairo, Bogotá, Washington —, a criminalidade parece estar subindo vertiginosamente, e os elementos básicos da Civilização estão-se esvanecendo. Fala-se de uma crise global de governabilidade. A ascensão das corporações transnacionais que produzem bens econômicos está cada vez mais sendo igualada pela ascensão de máfias criminosas transnacionais, cartéis de drogas e gangues terroristas que estão atacando violentamente a Civilização. A lei e a ordem são o primeiro pré-requisito da Civilização e em grande parte do mundo — na África, na América Latina, na antiga União Soviética, na Ásia Meridional, no Oriente Médio — elas parecem estar evaporando, estando sob séria ameaça na China, no Japão e no Ocidente. (HUNTINGTON, p. 409 - grifo nosso)


Uma vez que o mundo não está mais ligado em um conflito econômico ou ideológico, acontece que a tendência é que o rearranjo internacional crie ligações culturais e civilizacionais. Ele alerta para o risco de um choque entre oito civilizações que não partilham os mesmo valores, e notadamente entre as civilizações ocidental, islâmica e confuciana, com as outras cinco sendo a latino-americana, a africana, a hindu, a eslavo-ortodoxa e a nipônica. O conflito será por coisas básicas: a forma de vida, o papel do feminino na sociedade, a forma como educar crianças. O cavalheiro de Providence teve, de alguma forma, o vislumbre desses conflitos passando para sua problemática criação, principalmente no sentido moral de abandono cultural que os povos passam hoje.


Para conhecer o autor, uma obra de referência em nosso mercado é o volume Contos Reunidos do Mestre do Horror Cósmico da Editora Ex-Machina que recentemente foi relançado e ampliado em parceria com o Sebo Clepsidra. Ela chamou a atenção dos aficionados por horror por ter um escopo editorial bem definido: apresentar em um só volume todas as narrativas curtas de H.P. Lovecraft traduzidas e acompanhadas de um extensos apêndices. Os artigos, escritos pelos principais pesquisadores brasileiros da obra de Lovecraft, como Caio Bezarias, Alexander Meireles da Silva e Alcebiades Diniz Miguel, têm a introdução e a supervisão editorial de S.T. Joshi (o maior especialista na obra e vida do autor).


Bibliografia:


HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Tradução de M. H. C. Côrtes. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997;


LOVECRAFT, Howard Phillips. Contos Reunidos do Mestre do Horror Cósmico. Editora Ex Machina, São Paulo, 2017;

MORAES, Igor. Revista Diário Macabro n° 3. Editora Diário Macabro, Rio Claro, 2018;

MORAES, Igor. Além da Imaginação e do Tempo. Editora Clock Tower, Jundiaí, 2020;

NESTAREZ, Oscar. Desencanto e pessimismo: H.P. Lovecraft na visão de Michel Houellebecq. Revista Galileu, São Paulo, 18 de fev. de 2020. Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2020/02/desencanto-e-pessimismo-hp-lovecraft-na-visao-de-michel-houellebecq.html>. Acesso em: 26/01/2021;


SCOTUZZI, Nathalia Sorgon. Our Black Pantheon: A Estrutura do Cthulhu Mythos de H. P. Lovecraft. Revista de Linguagem, Cultura e Discurso Mestrado em Letras - UNINCOR - V. 07, N. 2, Três Corações, 2016;