segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Caveira idolatrada - Dom Francisco de Aquino Corrêa


À memória de minha mãe


Eu a vi! Do coveiro aos pés jazia,

Onde nem uma flor a coloria,

     Nua, ignorada a vi!

A tarde semimorta o extremo raio

Enviava a beijá-la, de soslaio,

     Desde os céus de rubi.


A música era mesta. O bosque arfava…

O povo que, em silêncio, me cercava,

     Nem notou o meu penar!

Fitei os olhos na caveira branca,

E, em meio à turba, o coração me arranca

     Tristíssimo cismar…


Há doze anos que aí a sepultaram…

Bem me lembro! Era em maio; me acordaram,

     E ela era morta já.

A manhã cor-de-rosa além nascia,

E minha mãe, sem cor, lívida, se ia…

     Morta a vejo inda lá!


Tinha um frio palor… Desfeito o laço,

Os cabelos castanhos, no regaço,

     Vinham caracolar.

O roxo cílio os olhos clausurara,

E na boca o sorriso lhe murchara,

     Para não mais brotar!


De roxo e negro minha mãe vestiram…

E à mesa da varanda a conduziram,

     Deitada no caixão.

Meu pai e meu irmão e irmãs sem fala,

As crioulas, em pranto, iam beijá-la,

     No rosto e na alva mão.


Meu pai me ergueu nas mãos hirtas de gelo;

Os seus prantos molharam-me o cabelo,

     E o que senti nem sei!

Mas me inclinei por sobre a face fria:

Na escumilha violete que a cobria,

     Soluçando, a beijei!


Era o último adeus! Ela partia!

Toda a casa ululava! O meio-dia

     Começava a cair…

Fui ao jardim de grades encarnadas;

No caminho sombrio de ramadas,

     Vi o enterro sumir.


À hora quente ermara-se a campina…

Só as copas em flor, rara bonina

     Jogavam no caixão.

Perfumavam o esquife as mesmas flores,

A cuja sombra, de infantis verdores,

     Passei minha estação.


Fugiu-me assim a meninice pura,

Sem beijos, sem carícias, sem doçura,

     Ó minha mãe, sem ti!

A adolescência, como em doidas valsas,

Arrebatou-me! De alegrias falsas

     Fundo cálix sorvi!


Hoje beijo essa lúrida caveira!

E busco, em vão, teu vulto, a cabeleira,

     A face, a boca, o olhar…

Assim ai! A inocência em vão buscaras,

Que em meus olhos e lábios tu beijaras,

     Minha mãe, a cantar!


Lá fora a mocidade baila e grita:

“Rosas, flori! Na abóbada infinita,

     Astros! mundos! parai!

Quero boiar no azul das harmonias,

Rolar, morto, ao tumulto das orgias,

     Onde a sorrir se cai!”


Rajada vespertina traz-me o harpejo,

E eu palpito, deliro, ardo, louquejo,

     Desgarrado de mim!...

Mas nesse crânio a ilusão se esmaga,

Qual sobre escolhos, a irisada vaga,

     No oceano sem fim!


Ah! rasgue-se a cruel filosofia,

Que do órfão triste nessa ossada fria

     A esperança contém!

O crânio é um livro e a pálida caveira

Duma mãe, é qual santa e verdadeira

     Bíblia do eterno além!


Sim, tu, só tu, ó Religião materna,

Dominas nos sepulcros! Firme e eterna,

     Quebras o arcano horror!

Aqui, só tu, com a minha alma casas:

Subo contigo nas cerúleas asas,

     Mostras-me o meu amor.


Vejo-te, ó mãe! Num arrebol celeste,

Aquela, cujo nome em vida houveste,

     Rogas, meiga, por mim.

Sim! Pede por teu filho! É mau o mundo,

Simula beijos por morder mais fundo,

     Tem serpes no jardim.


Sou inda moço; minha alma suspira,

Que nem as cordas de encantada lira,

     À menor ilusão!

Que Ela cuide de mim, qual tu cuidavas;

E onde reina o ermo e o amor, sem vozes pravas,

     Fale-me ao coração.


Ora descansa! Possa ir um dia,

Em paz com Deus, à tua campa fria,

     Meu cadáver também…