domingo, 2 de junho de 2024

Desgraçados entre milhões - 80 anos do livro "Cascalho", de Herberto Sales

O céu escuro, com a armação que houve de uma hora para outra, as águas caíram de uma vez nas cabeceiras distantes. E inundando talhados, catas e grunas, carregaram pela noite adentro os paióis de cascalho. No povoado da Passagem, à margem do Rio Paraguaçu agora de monte a monte, rajadas de vento cortavam de alto a baixo as ruas ermas, quando os garimpeiros, em lúgubre vozerio, irromperam pela praça alagada com enxurradas descendo para o areão. Vinham encharcados de chuva, transportando como destroços suas bateias, seus carumbés, suas enxadas, seus frincheiros, suas alavancas, seus ralos, suas brocas  —  suas ferramentas de trabalho, no ombro e na cabeça. Na frente deles caminhava o velho Justino, empunhando a candeia de azeite que o vento ameaçava apagar. Foi quando de novo desabou a chuva. - Herberto Sales

Livro de 1944, Cascalho de Herberto Sales, hoje presente no catálogo da Editora É Realizações (que possuí uma coleção só com o nome do autor) é um retrato fiel de seu tempo, transcendendo-o. O autor contava com 27 anos na época, apresenta vocábulos regionalistas com uma história de animalização do homem e embrutecimento das relações humanas por meio da violência e pobreza.

O cenário desse atrito é a Chapada Diamantina (sendo mais preciso, as cidades de Andaraí, Piranhas e as águas cruéis do rio Paraguaçu), a lapidação de diamantes e a geografia de suas lavras. Tocas e ranchos dos primórdios convivem com grandes casarões coloniais habitados por barões do diamante em sua fase de decadência. Livro tardio pertencente as grandes obras do que foi nomeado como "ciclo nordestino", seu enredo só não é mais curioso do que o ato de sua publicação.

Vamos a ela.

Herberto, morando em Andaraí, se correspondia com Marques Rebelo (autor de Marafa), mas nunca falou que estava escrevendo Cascalho. Ao concluir o romance fez duas cópias, enviou uma ao concurso literário onde Aurélio Buarque de Holanda era secretário e ficou com a outra. Obcecado em regionalismos afim de relacioná-los para um futuro dicionário, Aurélio surpreendeu-se com a qualidade do texto, além de encontrar nele o que tanto procurava. Sendo vizinho de Marques Rebelo, Aurélio comentou a obra que estava lendo e ficou admirado ao saber que o Rebelo conhecia o autor. Frustrado com o resultado do concurso literário, Herberto juntou gravetos, rasgou a cópia restante e a queimou.

Quando Herberto escreveu a Rebelo, dissecando suas decepções, comunicou que queimara a cópia única do livro. Qual foi sua surpresa ao saber que o volume original do concurso ainda existia com Aurélio, que sabendo que o calhamaço de mais de 600 páginas seria jogado fora, decidiu ficar com ele. Não foi difícil publicar o petardo no mercado editorial da época, que ganhou mais uma camada geográfica: o cenário nordestino retratado não era mais o litoral ou os engenhos, mas sim a mineração diamantina, inaugurando tal ciclo temático.

A lenda dos diamantes abundantes, encontrados até nas moelas das galinhas, contrasta com a realidade material de extrema pobreza, relações permeadas pela violência, onde todos se tornam algozes e vítimas. Em uma Sociedade Garimpeira construída pela tribalidade, qualquer um que não se adeque permanece no decadente e excluído (ou se excluindo voluntariamente para não se misturar a toda aquela corrupção). O promotor dr. Oscar do Soure, o telegrafista Nascimento e o retirante garimpeiro Silvério compõem um mosaico de personagens superiormente morais e que são esmagados pelo sistema existente, com uma sequência de humilhações. Assumindo o discurso de contestação, ambos estão presos a uma base limitada: o promotor a reclamar com seu superior na capital, o telegrafista se recusa a conviver e conversar com o povo da cidade, e o sertanejo que só pensa somente em voltar para a sua terra e na família que deixou para trás.

“Em meio da miséria em que vivia no sertão, Silvério fora seduzido por aquela maravilhosa visão de um Andaraí com garimpos enriquecendo os homens da noite para o dia, com serras escancarando veios e grunas como cofres — com a fortuna se oferecendo a todos num mundo de oportunidades espantosas”

O autor afirma categoricamente com esses personagens que ninguém de caráter fica em Andaraí. O promotor foge após ter uma de suas cartas apreendidas pelos coronéis locais, o telegrafista é movido de seu cargo por colaborar com a fuga do promotor e o sertanejo, depois de ponderar sobre seu tempo de trabalho, resolve voltar para sua família. A tragédia de Cascalho, é que não há espaço para a honestidade diante de um poder imoral, seja no campo das ideias, seja no campo das ações, seja no campo da materialidade. Ali impera a lei do mais forte.

O Brasil, para todos os efeitos, continuea a ser uma colônia, eta é que é a verdade.

A despeito de sua obra consagrada, traduzida para inúmeras línguas e tendo o seu romance de estreia adaptado para diversas mídias, Herberto isolou-se da vida literária. Retirou-se para São Pedro da Aldeia, no litoral fluminense, onde plantou mangueiras e flores muito sua terra natal (ele nunca mais voltou a Andaraí após a publicação do livro, uma ironia fina, dado os personagens mencionados e que seu nome batizou a biblioteca publica municipal), cumprindo a sina de seus personagens.

Cascalho nos mostra que, em um jogo de enganos, o que é verdadeiro não são as fortunas simuladas mas o interior das pessoas de caráter, que, ao contrário do mercado diamantífero e dos homens violentos, não se esvai diante das menores mudanças do mundo exterior.


PARA SABER MAIS DO LIVRO:

Revistando a obra de Herberto Sales por Carlos Heitor Cony

O romance Cascalho, de Herberto Sales: um retrato do garimpoda Chapada Diamantina por Everaldo Augusto da Silva

Cascalho de Herberto Sales por Narlan Matos

Os “sinais particulares” de Herberto Sales: CASCALHO, 70 anos

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