Chego agora àquela porção de minha narrativa que temo iniciar, não apenas devido à credibilidade do que devo escrever, como porque, na melhor das hipóteses, será um registro vago e incerto, repleto de inferências e evidências notáveis, embora desconexas, de um mal ancilário e pleno de horror, vindo de além do tempo, de coisas primais vagando logo após os limites da vida comum que conhecemos, de sobrevivências animadas terríveis nos lugares ocultos da Terra. O quanto disto Tuttle aprendeu daqueles textos infernais que confiou-me para que eu os enviasse às prateleiras proibidas da Biblioteca da Universidade Miskatonic, não sei. Certo é que ele deduziu muitas coisas que não sabia até que fosse muito tarde; de outras teve pistas, embora haja dúvida que ele tenha compreendido totalmente a magnitude da tarefa a qual tão descuidadamente se propusera, quando buscou descobrir a razão por trás da ordem de deliberada destruição dos livros e da casa de Amos Tuttle.
Logo após meu retorno às antigas ruas de Arkham, os eventos sucederam com indesejada rapidez. Depositei o pacote de livros na biblioteca com o dr. Llanfer, e imediatamente parti para a casa do Juiz Wilton, onde fui feliz em encontrá-lo. Ele estava para começar a jantar, e convidou-me para juntar-me a ele, o que aceitei, embora não tivesse apetite algum; de fato toda comida parecia-me repugnante. Naquele momento todos os medos e dúvidas intangíveis que havia guardado conflitavam dentro de mim, e Wilton percebeu logo que eu estava sob grave e incomum estresse nervoso.
“Coisa curiosa o incidente da cripta Tuttle, não é mesmo?” comentou com destreza, adivinhando a razão de minha presença em Arkham.
“Sim, mas não mais curiosa que as circunstâncias da reposição do corpo de Amos Tuttle aos pés de seu jardim,” respondi.
“De fato,” disse ele sem sinais visíveis de interesse, sua calma servindo para restaurar algum senso de tranquilidade em mim. “Ouso dizer que você veio de lá e sabe exatamente do que está falando.”
Neste ponto, relatei o mais brevemente possível a história que havia vindo contar, omitindo apenas uns detalhes mais improváveis, mas não tendo sucesso total em afastar suas dúvidas, embora ele fosse educado demais para permitir que essas dúvidas fossem forçadas sobre mim. Ele sentou um pouco, num silêncio pensativo, depois que terminei, fitando uma ou duas vezes o relógio, que mostrava que a hora já havia passado das sete. Interrompeu então seu devaneio para sugerir que eu telefonasse à Lewiston House e arranjasse para que qualquer chamada para mim fosse transferida para a casa do juiz Wilton. Fiz isto de imediato, um tanto aliviado com o fato dele ter consentido em levar o problema a sério o suficiente para devotar sua noite a ele.
“Quanto à mitologia,” disse ele, logo após eu retornar à sala, “pode ser descartada como uma criação de uma mente louca, a do árabe Abdul Alhazred. Eu havia aconselhado sobre isso, mas à luz das coisas que aconteceram em Innsmouth, talvez fosse melhor que não apostar em nada. Contudo, eu não estava presente na sessão. A preocupação imediata é o próprio Paul Tuttle; proponho que examinemos suas instruções de antemão.”
Mostrei o envelope e o abri. Continha apenas uma folha de papel, com as seguintes linhas enigmáticas e agourentas:
“Minei a casa e o terreno. Vá imediatamente, sem demora, ao portão do pasto, a oeste da casa, onde, no arbusto do lado direito da pista próxima a Arkham, escondi o detonador. Meu Tio Amos estava certo – isto deveria ter sido feito desde o começo. Se você me falhar, Haddon, então, diante de Deus, terá solto na terra um tal flagelo como o homem jamais conheceu e jamais verá novamente – se de fato o homem sobreviver a ele!”
Uma amostra daquela verdade cataclísmica deve ter, naquele momento, começado a penetrar minha mente, pois quando o juiz Wilton acabou de ler o trecho, fitou-me embaraçado e perguntou, “O que irá fazer?” Respondi sem hesitar: “Vou seguir estas instruções ao pé da letra!”
Ele observou-me por um momento, sem comentar; e então aceitou o inevitável e afastou-se. “Devemos então esperar as dez da noite, juntos,” disse gravemente.
O ato final do incrível horror que teve seu ponto focal da casa Tuttle ocorreu pouco antes das dez, caindo sobre nós, em seu início, de maneira tão desconcertantemente prosaica, que o horror total, quando veio, foi sem dúvida chocante e profundo. Pois às cinco para as dez, o telefone tocou. O juiz Wilton pegou do aparelho e mesmo de onde eu estava sentado consegui ouvir a voz em agonia de Paul Tuttle, chamando meu nome.
Tomei o telefone da mão do juiz Wilton.
“É Haddon,” disse numa calma que não sentia. “Que foi, Paul?”
“Faça-o!” gritou. “Oh, Deus, Haddon – faça-o agora – antes... tarde demais. Oh, Deus – o refúgio! O refúgio!... Você conhece o lugar... portão do pasto. Oh, Deus, seja rápido!...” E então aconteceu aquilo que jamais esquecerei; a súbita e terrível transformação de sua voz, de modo que foi como se ela entrasse em colapso e degenerasse em balbucios abismais; pois os sons que vieram pelo fio eram bestiais e grosseiros, sons brutais e salivantes, dentre os quais alguns se repetiam e se repetiam, e eu ouvia num horror cada vez maior aquele matraquear triunfante, antes que ele se fosse:
“Iä! Iä! Hastur! Ugh! Ugh! Iä Hastur cf’ayak ’vulgtmm, vugtlagln vulgtmm! Ai! Shub-Niggurath!... Hastur – Hastur cf’tagn! Iä! Iä! Hastur!...”
E então, abruptamente, todo som se calou, e voltei-me para presenciar as feições aterrorizadas do juiz Wilton. E ainda assim não o havia visto, nem havia visto qualquer coisa que, em minha compreensão, devesse ser feita; pois abruptamente, com efeito cataclísmico, compreendi o que Tuttle havia falhado em descobrir, até que fosse tarde demais. E num ímpeto, desliguei o telefone; saí correndo da casa para a rua, sem chapéu nem casaco, com o som do juiz Wilton chamando a polícia pelo telefone, ainda ecoando na noite atrás de mim. Corri numa velocidade antinatural das ruas sombrias e assombradas da cidade de Arkham, amaldiçoada pelas bruxas, para noite de outubro da Estrada Aylesbury, direto pela pista e pelo portão do pasto, onde por um breve instante, ouvi as sirenes soarem por trás de mim, e vi a casa Tuttle através do jardim, delineada num infernal brilho púrpura, bela, mas ainda assim, alienígena e tangivelmente maligna.
Empurrei então o detonador, e com um tremendo rugido, a velha casa explodiu em pedaços, e as chamas saltaram de onde a casa um dia havia estado. Por uns poucos momentos atônitos fiquei ali, subitamente ciente da chegada da polícia pela estrada ao sul da casa, antes de começar a mover-me na direção deles, e ver assim que a explosão havia conseguido o que Paul Tuttle havia imaginado: o colapso das cavernas subterrâneas sob a casa; pois a própria terra estava se assentando, deslocando-se para baixo, e as chamas que subiam chiavam e ferviam na água que irrompia ali embaixo.
Foi então que aconteceu outra coisa – o último horror alienígena, que misericordiosamente bloqueou o que eu vi nas ruínas que se juntavam sobre as águas em inundação – a grande massa protoplásmica saída do centro do lago formado onde estava antes a casa Tuttle, e a coisa que veio gritando contra nós pelo jardim, antes que encarasse a outra e começasse uma batalha titânica pelo domínio, interrompida apenas pela brilhante explosão de luz que pareceu emanar do céu a leste, como um feixe de relâmpago incrivelmente poderoso; uma tremenda descarga de energia em forma de luz, de modo que por um horrendo momento tudo se revelou – antes que apêndices relampejantes caíssem como se do coração do próprio pilar de luz, um abarcando a massa nas águas, e jogando-a para longe no mar, o outro agarrando aquela segunda coisa no jardim e lançando-a ao céu, numa mancha negra que diminuía, onde desapareceu entre as estrelas eternas! E então veio aquele silêncio cósmico e absoluto, e onde um momento antes, este milagre de luz acontecera, estava apenas a escuridão e a linha de árvores contra o céu, e baixo no leste, o olho brilhante de Betelgeuse, em Órion ascendia na noite de outono.
Por um instante, não sabia o que era pior – o caos do momento anterior, ou o silêncio completo e sombrio do momento presente; mas os pequenos gritos dos homens horrorizados fizeram-me recuperar a vontade, e notei então que, pelo menos eles não compreenderam o horror secreto, a coisa final que cauteriza e enlouquece, a coisa que ascende nas horas negras para espreitar as profundezas sem fundo da mente. Eles podem ter ouvido, como eu ouvi, aquele som agudo e distante de assobio, aquela ululação enlouquecedora vinda do golfo imensurável e profundo do espaço cósmico, a lamúria que desceu com o vento, e as sílabas que flutuaram pelas correntes de ar: Tekeli-li, tekeli-li, tekeli-li... E certamente viram a coisa que veio gritando conosco, vinda das ruínas que afundavam lá embaixo, a caricatura distorcida de um ser humano, com seus olhos caídos na invisibilidade, em massas grosseiras de carne escamosa, a coisa que balançava seus braços sem ossos contra nós, como os apêndices de um polvo, a coisa que berrava e matraqueava com a voz de Paul Tuttle!
Mas eles não podiam saber o segredo que só eu sabia, o segredo que Amos Tuttle deve ter imaginado nas sombras de suas últimas horas, a coisa que Paul Tuttle demorou demais para descobrir: que o refúgio buscado por Hastur, o Inominável, o refúgio prometido Àquele Que Não Deve Ser Nomeado, não era o túnel, nem era a casa, mas o corpo e a alma de Amos Tuttle em pessoa, e caso estes não estivessem dispostos, a carne viva e a alma imortal daquele que vivesse naquela casa amaldiçoada na Estrada Aylesbury!
Tradução de Arthur Ferreira Jr.