De vez em quando, experimentamos uma estória fraca que esbanja diálogos surpreendentemente bons. Todos nós já aguentamos estórias mal contadas com diálogos horríveis, mas raramente encontramos uma estória contada de modo excelente arruinada por diálogo vagabundo. E a razão é simples: narrativa de qualidade inspira diálogo de qualidade.
Como uma febre alucinante, diálogo ruim é o aviso de uma infecção apodrecida nas profundezas da estória. Mas como escritores inexperientes com frequência confundem o sintoma com a doença, eles tentam tratar as cenas reescrevendo obsessivamente o diálogo, achando que uma vez que a fala esteja correta, a narrativa será curada. Mas as enfermidades de personagem e acontecimento não podem ser curadas alterando o diálogo com paráfrases um rascunho após o outro.
Para colocar da forma mais clara possível: até que você saiba do que está falando, você não pode saber como suas personagens estão falando. A ordem na qual você cria os componentes de sua estória e como você junta todas as partes é uma decisão sua. Mas não importa quão confuso seja o processo criativo, um autor precisa ter conhecimento absoluto de forma (concepção de eventos e de elenco) e conteúdo (substância cultural, histórica e psicológica) para embasar a narrativa de cima para baixo, para criar diálogo de dentro para fora. Diálogo é o último passo, a cereja do bolo sobre camadas e camadas de subtexto.
Portanto, antes de examinar a concepção do diálogo, vamos revisar os componentes básicos do design da estória.
INCIDENTE INCITANTE
Na abertura da estória, a vida da personagem central se encontra em um estado de relativo equilíbrio. Ela tem seus altos e baixos. Quem não tem? Entretanto, o protagonista tem relativa soberania sobre sua própria existência – até que algo acontece que perturba radicalmente este equilíbrio. Chamamos esse acontecimento de incidente incitante.
Incitar significa iniciar; “incidente” significa “acontecimento”. Esse primeiro acontecimento relevante inicia a estória deixando a vida do protagonista fora do prumo. O incidente incitante pode ocorrer por uma decisão própria (ele decide largar o emprego e abrir seu próprio negócio) ou por coincidência (um raio atinge sua loja e ele perde seu negócio). O incidente incitante pode mover sua vida poderosamente para o lado positivo (ele inventa um produto novo e genial) ou negativo (uma empresa rival rouba sua invenção). O incidente incitante pode ser um acontecimento social gigantesco (sua corporação vai à falência) ou um acontecimento interno discreto (ele descobre que detesta seu emprego do fundo do coração).¹
VALORES DA ESTÓRIA
O impacto do incidente incitante muda de maneira decisiva a carga dos valores em jogo na vida da personagem. Os valores da estória são binários de cargas positivas e negativas, como vida/morte, coragem/covardia, verdade/mentira, significância/insignificância, maturidade/imaturidade, esperança/desespero, justiça/injustiça, por exemplo. Uma estória pode incorporar qualquer número, variedade e possíveis combinações de valores da estória, mas ancora seu conteúdo em um valor fundamental insubstituível.
O valor fundamental é insubstituível porque determina a natureza fundamental da estória. Muda-se o valor fundamental, muda-se o gênero. Por exemplo, se um escritor retira amor/ódio da vida de suas personagens e substitui por moralidade/imoralidade, essa mudança de valores fundamentais mudaria o gênero de uma estória de amor para uma trama de redenção.
Os valores nas cenas podem ser bastante complexos, mas, no mínimo, cada cena deve conter pelo menos um valor da estória em disputa na vida da personagem. Esse valor ou se relaciona ou é idêntico ao valor fundamental da estória. Uma cena pode começar com seu(s) valor(es) em uma carga puramente positiva, puramente negativa ou uma mistura de ambos. Através de conflitos e/ou revelações, a carga de valor da abertura muda. Pode reverter (positivo para negativo, negativo para positivo), intensificar (positivo para duplamente positivo, negativo para duplamente negativo) ou amainar (puramente positivo para levemente positivo, puramente negativo para levemente negativo). O momento preciso no qual a carga de um ou de mais valores muda é o ponto de virada da cena. Portanto, um acontecimento da estória ocorre no instante que um valor em questão na cena muda de carga.²
O COMPLEXO DO DESEJO
Todo mundo quer ter uma soberania razoável sobre sua existência. Ao deixar a vida fora de equilíbrio, o incidente incitante desperta o desejo humano natural de restaurar o equilíbrio. Em essência, portanto, todas as estórias dramatizam a luta humana para mover a vida do caos para a ordem, do desequilíbrio para o equilíbrio.
Personagens agem porque necessidades exigem ações, mas a complexidade da vida percorre um labirinto de desejos. Em última análise, a arte de contar uma estória funda e organiza várias correntes de desejo em um único fluxo de acontecimentos. O contador de estórias escolhe apenas aqueles desejos que ele quer expressar nas cenas específicas que constituem sua estória do início ao fim. Para entender esse processo, precisamos examinar os componentes do desejo e como eles impulsionam a narrativa.
Desejo é uma figura de cinco dimensões:
1. Objeto de desejo
2. Superintenção
3. Motivação
4. Intenção da cena
5. Desejos de fundo
1. Objeto de Desejo
Como resultado do incidente incitante, o protagonista desenvolve um objeto de desejo, algo que ele considera necessário para colocar sua vida nos eixos de novo. Esse objeto pode ser algo físico, como uma pilha de dinheiro; ou situacional, como a vingança por uma injustiça; ou ideal, como uma fé para guiar sua vida. Exemplo: uma humilhação no trabalho (incidente incitante) causou danos à imagem do protagonista, radicalmente perturbando o equilíbrio em sua vida, logo ele busca uma vitória no ambiente de trabalho (objeto de desejo) para restaurar o equilíbrio.
2. Superintenção
A superintenção motiva uma personagem a buscar seu objeto de desejo. Essa frase reafirma o desejo consciente do protagonista nos termos de sua necessidade mais profunda. Por exemplo, o objeto de desejo (vitória no ambiente de trabalho) retratada como superintenção se torna: ganhar paz interior através de um triunfo público.
Em outras palavras, o objeto de desejo é objetivo, enquanto a superintenção é subjetiva: o que o protagonista quer contra a fome emocional que o move. O primeiro termo dá ao escritor uma visão clara da cena crítica no fim da estória em que o protagonista vai ou não conseguir seu objeto de desejo. O segundo conecta o escritor aos sentimentos do protagonista, a necessidade interna que guia a narrativa.
Em toda estória, a superintenção do protagonista é um tanto genérica (por exemplo, conseguir justiça através da vingança, achar felicidade na intimidade do amor, viver uma vida significativa), mas o exato objeto de desejo (por exemplo, a morte do vilão, o parceiro ideal, um motivo para não cometer suicídio) dá à estória sua originalidade. Seja qual for o objeto de desejo, o protagonista o quer para satisfazer sua superintenção, seu anseio profundo por equilíbrio na vida.
3. Motivação
Não confunda objeto de desejo ou superintenção com motivação. As duas primeiras respondem as questões que começam com "O quê?": O que minha personagem quer conscientemente? O que ela precisa subconscientemente? Motivação responde "por quês": Por que uma personagem necessita o que ela acha que necessita? Por que ela quer esse objeto de desejo em particular? E se ela conseguir o que quer, isso vai, de fato, satisfazer sua necessidade?
As raízes da motivação alcançam até a infância e, por isso, são com frequência irracionais. O quanto você compreende os porquês das necessidades e desejos de sua personagem é uma decisão sua. Alguns escritores, como Tennessee Williams, são obcecados por motivação; outros, como Shakespeare, a ignoram. De qualquer forma, o que é essencial para a escrita de cenas e diálogo é compreender os desejos conscientes e inconscientes das personagens.¹
4. Intenção da Cena
Uma cena molda a luta momento-a-momento da personagem em direção à sua meta suprema de vida. Intenção de cena nomeia o que a personagem deseja imediatamente como um passo na jornada de longo prazo da superintenção. Como resultado, suas ações e as reações que recebe a deixam mais perto ou mais longe de seu objeto de desejo.
Se o escritor desse de graça ao personagem sua intenção de cena, a cena iria acabar. Por exemplo, em uma cena de interrogatório policial, a Personagem A quer que a Personagem B pare de questioná-lo. A intenção de cena de A é parar o interrogatório. Se B desistisse e saísse da sala, a cena acabaria. B, por outro lado, quer que A revele um segredo. Do ponto de vista de B, sua intenção de cena é descobrir o segredo. Se A confessasse, também acabaria com a cena. A intenção de cena é o nome do desejo iminente e consciente de uma personagem – o que ela quer nesse momento.⁴
5. Desejos de Fundo
Os desejos de fundo de uma personagem limitam suas escolhas de ação. Cada um de nós está constantemente ciente do estado do relacionamento entre nós mesmos e cada pessoa e cada objeto que encontramos na vida – nosso comportamento no trânsito, em qual mesa gostaríamos de nos sentar no restaurante, nosso lugar na hierarquia do trabalho, para citar três exemplos públicos. Nós estamos profundamente cientes da natureza de nossas relações com amigos, família e amantes. Também sabemos de nosso eu interior, nosso estado relativo de bem-estar físico, mental, emocional e moral. Além disso, temos consciência do nosso lugar no fluxo do tempo, de nossas experiências no passado, da beira do abismo que é o presente e do que esperamos para o futuro. Esses relacionamentos complexos interligados criam nossos desejos de fundo.
Relacionamentos se tornam desejos da seguinte maneira: uma vez criados, os relacionamentos se tornam a fundação de nossa existência; eles criam um sistema que nos dá um senso de identidade e de segurança na vida. Nosso bem-estar depende deles. Tentamos eliminar relacionamentos de valores negativos, enquanto mantemos ou aprimoramos relacionamentos positivos. Na pior das hipóteses, queremos ter um controle razoável sobre relacionamentos de qualquer tipo.
Desejos de fundo, portanto, não apenas cimentam o status quo da vida da personagem; eles moldam seu comportamento. Desejos de fundo formam uma teia de restrições que segue cada personagem em cada cena. Esses desejos de estabilidade limitam e moderam as ações da personagem. Eles influenciam o que a personagem vai ou não vai dizer para conseguir o que quer.
Em princípio, quanto mais relacionamentos de valor positivo uma personagem acumula ao longo da vida, mais restrito, mais “civilizado” seu comportamento. O contrário também é verdade: quando uma personagem não tem nada a perder... ela é capaz de qualquer coisa.
Em algumas culturas, por causa de costumes sociais, você pode falar o que vem à mente; em outras, pela mesma razão, você deve obedecer a códigos tácitos de comportamento e não falar o que pensa. A vasta gama de culturas da humanidade cria um espectro de extremos polares que vão de culturas que são inteiramente subtextuais, com quase nada de texto, e culturas que são só texto e muito pouco subtexto. Nas ciências sociais, esses extremos polares são conhecidos como culturas de alto contexto e de baixo contexto. Na ficção, elas determinam a qualidade relativa de texto e subtexto.
Culturas de alto contexto possuem um forte senso de tradição e história. Elas mudam lentamente ao longo do tempo e, portanto, geração após geração, seus membros dividem muitas crenças e experiências em comum. Uma cultura de alto contexto será relacional, coletivista, intuitiva e contemplativa. Ela coloca relacionamentos interpessoais em alta conta dentro de uma comunidade fechada e próxima (familiares próximos, por exemplo).
Como resultado, dentro desses grupos, muitas coisas podem ficar implícitas porque seus membros fazem inferências fácil a partir de sua cultura e experiência compartilhada. A máfia italiana é um exemplo desse tipo de grupo. Em O Poderoso Chefão, quando Michael Corleone diz: "Meu pai fez uma oferta que ele não pôde recusar", um episódio inteiro de extorsão se torna violentamente claro. Michael então torna o evento explícito para Kay Adams porque ela não é parte desse grupo.
Culturas de alto contexto, como no Oriente Médio e na Ásia, possuem pouca diversidade étnica e social. Eles valorizam a comunidade sobre o indivíduo. Grupos fechados confiam em seu passado comum para explicar situações, em vez de confiar em palavras. Por consequência, diálogos dentro de culturas de alto contexto exigem economia extrema e escolhas precisas de palavra porque, dentro de tais ambientações, algumas palavras sutis podem deixar implícita uma mensagem complexa.
Do outro lado, personagens em culturas de baixo contexto, como a da América do Norte, tendem a explicar as coisas em mais detalhes porque as pessoas ao seu redor vêm de uma imensa variedade de origens raciais, religiosas, sociais e nacionais. Mesmo dentro da mesma cultura essas diferenças aparecem. Compare, por exemplo, dois estereótipos americanos: um luisianense (uma cultura de alto contexto) e um nova-iorquino (uma cultura de baixo contexto). O primeiro usa poucas palavras e silêncios prolongados, enquanto o segundo fala de maneira franca e constante.
Além disso, em culturas de baixo contexto, experiências compartilhadas mudam de modo drástico o tempo inteiro, criando lacunas de comunicação entre uma geração e outra. Em sociedades de imigrantes, como a dos Estados Unidos, fica evidente que pais e filhos têm dificuldades comunicacionais que resultam em discussões longas e barulhentas. Personagens se tornam mais verborrágicas e explícitas à medida que o subtexto fica mais raso.





