sexta-feira, 9 de maio de 2025

Demônios e Gênios do Mundo Islâmico Medieval - Adam Ali


Em todo o mundo medieval, havia uma forte crença em seres sobrenaturais. Se você vivesse no Oriente Médio, havia dois textos medievais importantes que você poderia consultar para aprender sobre criaturas como o Ghul ou o Rei da Quinta-feira. Muitos tinham estranhos poderes e formas de pesadelo e seriam chamados de gênios, demônios ou diabos.

O principal guia para os seres sobrenaturais islâmicos chamava-se Ajaib al-Makhluqat wa Gharaib al-Mawjudat, ou Maravilhas das Coisas e Aspectos Milagrosos das Coisas Existentes. Seu autor foi Zakariyya al-Qazwini (1203-1283), e seu trabalho era muito popular no Oriente Médio medieval. Essa popularidade é atestada pelos muitos manuscritos desta obra de diferentes épocas que sobreviveram tanto no árabe original quanto nas traduções persa e turca. O livro está dividido em duas partes principais: tratando do celeste / supra-terrestre e do terrestre. Na primeira parte, o autor discute fenômenos celestiais, como o sol, a lua, os planetas, as estrelas e os habitantes do céu (ou seja, os anjos).

Na segunda parte, al-Qazwini fala sobre os quatro elementos, a Terra e sua divisão em sete climas, e descreve os mares, rios e montanhas. Ele então discute os três reinos da natureza: mineral, vegetal e animal. Em sua descrição do reino animal, o autor delineia o caráter e a anatomia do homem e no final desta seção há um capítulo sobre monstros, demônios, gênios [também conhecidos por jinns ou djinns] e diabos.

Muitos dos manuscritos sobreviventes também são amplamente ilustrados com tabelas geométricas e miniaturas que representam plantas, animais e vários monstros. A maior parte desta coluna será baseada nas informações apresentadas por al-Qazwini em seu capítulo sobre Gênios e monstros. Vou discutir o que são gênios, apresentar algumas anedotas do capítulo sobre gênio e o diabo e, finalmente, descrever certos tipos de gênios, demônios e monstros.

Na última parte deste artigo, também incluirei alguns demônios, monstros e gênios mencionados no Kitab al-Bulhan (Livro das Maravilhas ou Livro das Surpresas); um manuscrito do final do século XIV transcrito e compilado (e possivelmente ilustrado) por Abd al-Hasan al-Isfahani. O livro provavelmente foi compilado em Bagdá durante o reinado do sultão Ahmad Jalayirid (1382-1410). No entanto, a maior parte de seu conteúdo foi escrito durante o século VIII por Abu Maʿshar al-Balkhi (787-886 CE).

O códice original do Kitab al-Bulhan se desfez e algumas de suas páginas foram perdidas, e as outras se misturaram e foram encadernadas em uma ordem aleatória e incoerente. O manuscrito é composto de textos que tratam de tópicos de astrologia, astronomia e geomancia. “A seção mais interessante…” do Kitab al-Bulhan, de acordo com Stefano Carboni, é “…uma série de ilustrações extraordinárias em páginas inteiras que requerem interpretação porque a única maneira de entender o assunto – além, é claro, de ter familiaridade suficiente com sua iconografia para decifrar corretamente a cena representada na pintura – é lendo seu título colocado em letras grandes no alto da página. Não há texto (e nunca houve) associado a essas obras, o que torna esta seção intrigante, fascinante e única neste período de desenvolvimento da ilustração islâmica em livros”. A parte do livro que Carboni está descrevendo contém uma série de ilustrações retratando demônios e gênios. Além do título, não há texto e, como afirma Carboni, resta interpretar essas imagens.

Quem são os Gênios? Temos alguma familiaridade com os djinn, que são chamados de gênios na cultura ocidental, por meio de histórias folclóricas das Mil e uma Noites, como Aladdin. No entanto, a ideia de gênio e a crença neles nas sociedades islâmicas têm raízes muito mais profundas que antecedem o Islã. Os árabes pré-islâmicos acreditavam em gênios muito antes da chegada do Islã. Os gênios eram as “ninfas e sátiros” do deserto. Eles representavam a natureza e o selvagem, os domínios ainda não dominados pela humanidade e hostis aos humanos.

De acordo com a antiga crença árabe, os espíritos assombravam locais escuros e desolados no deserto e aguardavam o viajante desavisado. As pessoas precisavam se proteger desses seres. Pouco antes da chegada do Islã, alguns dos gênios se receberam status mais elevados, tornando-se vagos deuses impessoais que estavam relacionados à divindade suprema. Os habitantes de Meca do início do século VII ofereciam sacrifícios a eles e buscavam sua orientação e ajuda. Alguns estudiosos acreditam que os gênios foram inicialmente conceituados como demônios malévolos, enquanto outros argumentaram que eles foram os primeiros deuses e deusas (frequentemente associados à natureza) de povos como os sumérios e acadianos que foram suplantados por novas divindades e sistemas de crenças mais sofisticados, mas eles não foram totalmente descartados e continuaram a ocupar uma posição como seres sobrenaturais menores.

Gênios antigos
Embora as origens dos gênios pareçam estar nos desertos da Arábia, a crença neles realmente tomou forma nas aldeias e cidades do Oriente Médio. Na verdade, os nômades que percorriam os desertos temiam os gênios muito menos do que os povos sedentários das planícies e desertos remotos, que representavam o desconhecido e o perigo para eles. Por exemplo, Pazuzu era um gênio primordial, um demônio do vento que os habitantes das cidades sumérias temiam há 6.000 anos. O vento era frequentemente associado aos gênios e os povos antigos do Oriente Médio acreditavam que essas criaturas viajavam nele. De acordo com a mitologia assíria e babilônica, Pazuzu era filho de Hanpa, que era o senhor de todos os demônios, talvez um “antigo Satã”. Alguns estudiosos afirmam que Pazuzu, associado ao vento frio do nordeste, foi uma das forças elementais mais malévolas do mundo antigo. Ele limpou os desertos e carregou doenças e trouxe desolação e fome em seu rastro. Pazuzu, como os posteriores gênios do período muçulmano, foi descrito como um híbrido de humano e animal. Ele tinha cabeça de leão ou cachorro, chifres, barba, asas de pássaro, cauda de escorpião e um pênis ereto, às vezes em forma de serpente.

Outros gênios/demônios antigos incluíam Rabisu e Labaratu. O primeiro se escondeu em lugares remotos e emboscou viajantes desavisados ​​(como veremos, é assim que um dos djinns do Oriente Médio islâmico, o ghul, operava) e o último, a filha do deus do céu Anu, vivia em pântanos ou montanhas e matava crianças. Outros antigos demônios da Mesopotâmia mantinham relações sexuais com humanos. Todos esses seres antigos serviram como protótipos do djinn da Arábia e, mais tarde, do mundo muçulmano. No Hijaz, a região da Arábia Ocidental onde o Islã nasceu, uma função dos gênios era inspirar poetas e adivinhos a produzirem belos versos poéticos e potentes e também prever o futuro. Tanto poetas quanto adivinhos detinham um status especial na Arábia pré-islâmica e exerciam uma influência significativa em suas sociedades. Aqueles que eram “loucos” receberam um status de proteção especial, pois se pensava que eram majnun, que significa “possuídos por um gênio”.

De acordo com a tradição muçulmana, o gênio é um dos três seres inteligentes criados por Deus, os outros dois sendo anjos e humanos. Eles são mencionados no Alcorão e nas tradições proféticas. Al-Qazwini coloca o gênio na cosmologia muçulmana no início do processo de criação e diz que Deus criou os anjos da luz, os humanos do barro e o gênio das chamas do fogo. Ele também criou shayatin (v. Shaytan – significando diabos/demônios) a partir da fumaça do fogo. Existem várias categorias de gênios, incluindo ifrit, Shaitan, marid e djinn; esses termos geralmente se sobrepõem e as categorias não são bem definidas. Como humanos, eles têm livre arbítrio e podem ser bons ou maus, porém os shayatin estão sempre associados a Iblis, o próprio Satanás.

Há uma antiga mesquita em Meca chamada Masjid al-djinn ou Mesquita do Gênio e, de acordo com a tradição islâmica, é dedicada aos gênios que aceitaram a mensagem do profeta Muhammad quando ele pregou para eles. Deus é frequentemente referido no Alcorão como Rab al-Alamin, que significa o Senhor dos Mundos, abrangendo todos os mundos e universos possíveis que poderiam existir, incluindo o dos humanos e o dos gênios. O Alcorão também menciona frequentemente os humanos e os gênios juntos como os dois tipos de criação que poderiam receber revelações divinas e aceitá-las ou rejeitá-las.

Al-Qazwini afirma que os gênios são imperceptíveis aos sentidos humanos. No entanto, eles podem “engrossar” suas constituições e assumir formas corporais, tendo a capacidade de mudar de forma. Ele também menciona que os gênios foram criados muito antes de Adão e os humanos e que eles habitavam a Terra antes da queda de Adão. Eles tinham reis, profetas, religiões e leis, muito parecidos com os humanos. No entanto, muitos deles se perderam e encheram a terra de corrupção.

Em resposta a essas transgressões, al-Qazwini diz que Deus enviou seus exércitos celestiais de anjos para puni-los. Depois de ferozes batalhas entre os anjos e os gênios, os últimos foram expulsos de suas casas para os cantos mais distantes do mundo, enquanto muitos outros foram feitos prisioneiros. Entre esses prisioneiros estava um jovem gênio chamado Azazel (um claro paralelo aqui com um dos líderes dos anjos caídos no livro apócrifo de Enoque). Azazel foi criado entre os anjos e alcançou seu conhecimento, aconselhou-os e viveu entre eles por um longo tempo até se tornar um de seus chefes.

Esta situação continuou até a criação de Adão. Quando Deus ordenou a todos os anjos que se prostrassem diante de sua nova criação, Azazel recusou-se por arrogância e foi após este ponto que seu nome mudou para Iblis (um dos nomes que designam Satanás na tradição islâmica) e ele se tornou o inimigo do homem e amaldiçoado por Deus. A implicação no texto é que ele também se tornou o líder de todos os demônios e gênios renegados, tornando-se a personificação do mal, da contenda e desobediência. Al-Qazwini menciona que Iblis teve cinco filhos: Birah, o senhor das catástrofes; al-A’war, o senhor do adultério, da luxúria e da sedução; Masut, o senhor das mentiras; Dasem, o senhor da contenda (especialmente entre casais); e Zalnabur, o senhor dos mercados e trapaãs no comércio.

Tipos de Gênios
Tanto al-Qazwini quanto al-Isfahani têm seções em suas obras nas quais listam vários tipos de gênios, demônios e monstros. Em uma seção de seu capítulo sobre os gênios, Al-Qazwini fornece descrições de algumas dessas criaturas. Por outro lado, o Kitab al-Bulhan tem apenas uma série de ilustrações de gênios acompanhadas de títulos. Stefano Carboni fornece algumas boas interpretações dessas imagens em seu artigo, “O ‘Livro das Surpresas’ (Kitab al-bulhan) da Biblioteca Bodleian”. Usarei o artigo de Carboni para completar as descrições e características de alguns dos demônios apresentados pelo Kitab al-Bulhan.

O ghul
Al-Qazwini afirma que al-ghul (o ghoul) é um dos mais famosos e comuns entre os gênios. O ghul foi descrito de várias maneiras. Al-Qazwini o descreve como tendo uma aparência não natural e aterrorizante. Ele diz que tem uma forma humanoide fundida com a de uma besta e o descreve como uma criatura vil com deformidades e aparência não natural. O Léxico Árabe-Inglês de E.W. Lane (essencialmente uma compilação baseada em dicionários árabes medievais) afirma que o ghul “é uma “espécie de goblin, demônio, diabo” e que é “terrível na aparência, tendo presas ou algo semelhante”. Outros relatos da Península Arábica descrevem o ghul como uma combinação de homem, pássaro e camelo. De acordo com essa descrição, ele tem uma cabeça humana com um olho de Ciclope no meio. Em vez de boca, tem bico; seu corpo é de camelo ou avestruz com asas de galinha e tem garras de avestruz ou cascos de mula em vez de pés. O ghul também é um metamorfo e pode assumir a forma de homens, gatos, cavalos, jumentos, camelos, touros, corujas e de um cão multicolorido (uma de suas formas mais frequentemente mencionadas).

O ghul é descrito como um devorador de homens e habita os desertos e terras devastadas e aparece para viajantes solitários que passam por essas áreas remotas, especialmente nas horas entre o crepúsculo e o amanhecer. Ele fica em uma emboscada, esperando o viajante desavisado entre as rochas, penhascos e cavernas e se lança sobre ele, arrasta-o para seu covil e o devora. Ele também pode assumir uma aparência semelhante a um humano, a fim de acalmar suas vítimas com uma falsa sensação de segurança para atraí-las para longe de seu caminho e para sua armadilha. Diz-se também que ghulas femininas às vezes atraem viajantes, seduzem-nos e se prostituem com eles.

Em relação à sua origem, al-Qazwini afirma que eles eram gênios que costumavam bisbilhotar ouvindo o que se passava no céu (de acordo com a tradição islâmica, esse conhecimento roubado do céu foi a inspiração que os adivinhos receberam desses demônios quando procuraram ver o futuro) e quando o fizeram, foram atingidos por meteoritos ou estrelas cadentes e queimaram e foram horrivelmente desfigurados e despencaram para a Terra para se tornarem ghuls.

Robert Lebling menciona em seu livro, Legends of the Fire Spirits, que apesar de sua propensão para o mal e para comer carne humana e carniça e sua natureza maligna, o ghul pode ser benevolente com os humanos. Nos contos e lendas, se o herói consegue se esgueirar por trás da ghula (ghul feminino) e sugar seu seio pendular, muitas vezes jogado sobre ela enquanto ela trabalhava em seu moinho manual, ele se torna seu “filho do peito” e ela se torna sua protetora, mesmo de outros ghuls. Existem fortes paralelos com as tradições pré-islâmicas e islâmicas de “relações de leite”, ou seja, dois bebês não aparentados se tornando irmãos se amamentarem da mesma mãe. Um herói inteligente também pode contar com a ajuda de um ghoul. De acordo com Lebling, essas criaturas respondem à cortesia e “em troca de um pouco de cuidado ou de um pedaço de goma de aroeira, muitas vezes estão prontas para carregar o herói para onde ele quiser”.

A Si’lah
A si’lah é uma variante do ghul. Este gênio é frequentemente referido no feminino. Ela reside em selvas e matagais e prepara uma emboscada para suas vítimas. Ela é descrita como um gênio malvado e sádico que tortura sua presa, brinca com ela e a faz dançar antes de consumi-la.

A si’luwa é uma variante do s’ilah do Iraque. Ela é um demônio da água ou espírito da água que habita os rios, córregos e canais da Mesopotâmia. Ela tem a forma de uma mulher e é coberta por cabelos longos, tem seios pendentes que vão até os joelhos e, em alguns relatos, é descrita como tendo uma cauda de peixe em vez de pernas. Ela prepara armadilhas e caça humanos para comer e também busca amantes humanos. As crenças locais afirmam que a si’luwa é o produto da mistura de humanos com demônios do rio.

Al-Qazwini menciona que o lobo caça a si’lah à noite. Quando uma si’lah é capturada por um lobo, ela grita enquanto o lobo a dilacera e implora para ser salva, oferecendo mil dinares a seu salvador. O autor afirma que as pessoas ignoram esses apelos porque sabem que é a si’lah. Na verdade, Lebling afirma que os lobos são os únicos animais que os gênios temem.

Ele diz que os gênios não podem escapar dos lobos afundando no chão, o que permite que os lobos os ataquem com seus dentes e garras. Isso parece sugerir que, de acordo com algumas lendas, o lobo tem algum tipo de efeito neutralizante em alguns dos poderes dos gênios. Lebling explica que essa aversão aos lobos é uma das razões pelas quais os gênios nunca assumem a forma de lobo quando mudam de forma. É por esta razão que os dentes do lobo e outras partes do corpo foram (e às vezes ainda são) usados ​​como talismãs protetores em partes do mundo muçulmano, como o Iraque.

O Ghaddar
Al-Qazwini menciona este gênio brevemente e afirma que seu tipo habita o Iêmen e as regiões costeiras do Egito. Ele atrai suas vítimas para si e então as ataca. O resultado dessa agressão pode ser leve ou grave. Lebling afirma que este demônio tortura suas vítimas violentamente ou apenas as aterroriza. Al-Qazwini é mais explícito, ele diz que este gênio fica satisfeito aterrorizando sua vítima até um estado de choque. Um resultado mais extremo de um encontro com o ghaddar, de acordo com al-Qazwini, é que esse monstro agride sexualmente suas vítimas e que raramente há qualquer esperança para sobreviventes de tal ataque porque o ghaddar tem um falo como um chifre de touro que pode matar um humano. Este gênio deve ter uma aparência aterrorizante, infelizmente al-Qazwini não descreve nenhuma de suas características físicas além de seu falo.

O Delhab / Delhan
O autor de ‘Ajaib al-Makhluqat afirma que este gênio vive nas ilhas dos mares. Tem a forma de um homem montado em um avestruz. Devora a carne dos náufragos e marinheiros que o mar lança nas margens das ilhas que habita. Al-Qazwini menciona um relato em que o Delhab atacou um navio. Os marinheiros tentaram lutar contra ele. No entanto, o demônio soltou um grito que os fez largar as armas e caírem de cara no chão encolhendo-se, levando todos eles.

O Shiqq
Este demônio assume a forma metade humana (podemos presumir que a outra metade é bestial ou monstruosa). Lebling diz que esta criatura tem uma forma de “meio ser humano (como um homem dividido longitudinalmente)”. O shiqq também atrapalha os viajantes. Existe uma lenda famosa que conta a história de um encontro entre um shiqq e Alqamah ibn Safwan ibn Umayyah (do clã Omíada da tribo Coraixita). Alqamah lutou quando o demônio o atacou, e a disputa entre os dois terminou quando ambos se acertaram com golpes fatais.

Os Gênios em Kitab al-Bulhan
Kitab al-Bulhan contém uma série de ilustrações de páginas inteiras retratando vários demônios e gênios. Essas ilustrações representam Iblis (Satanás), os sete reis gênios / demônios (cada um associado a um dia da semana) e, finalmente, há representações de alguns gênios associados a doenças e outras forças de ruptura na vida de alguém. Além de ser associado a um dia da semana, Carboni afirma que cada ilustração dos sete reis gênios também está conectada a um anjo, um planeta e um metal. Ele afirma que os reis são mostrados com seus apoiadores ou coortes e os símbolos talismânicos necessários para exorcizá-los estão contidos no quadro da ilustração.

Iblis
A ilustração do diabo é a primeira desta série. Seu nome, Iblis al-la’in (Iblis, o amaldiçoado), não deixa dúvidas a quem esta imagem retrata. Iblis é mostrado entronizado no centro da página, sentado de frente e de maneira majestosa. Ele é coroado com grandes chifres de carneiro e seus olhos brilham com fogo. Ele é muito maior do que os outros gênios, seus súditos, e parece mais próximo do observador do que eles.

Os Reis-Gênios da Segunda e do Domingo
Carboni afirma que os fólios contendo as ilustrações do “Rei do Ouro” do domingo e do “Rei Branco” da segunda-feira estão faltando no Kitab al-Bulhan. No entanto, eles aparecem em cópias otomanas, que dão uma indicação de seu nome e aparência.

Al-Mudhahhab (o dourado) é o rei-gênio do domingo. Ele está associado ao sol. De acordo com a tradição, este rei-gênio possui segredos do ocultismo e conhecimento da transmutação do ouro e também está associado ao brocado de seda. Ele é retratado com um halo dourado flamejante ao redor de sua cabeça e o que parece ser uma nuvem dourada ou lã ao redor de seu pescoço e ombros e está ricamente vestido com o que parece uma camisa de seda e calças de seda.

Al-Malik al-Abyad, ou o rei branco da segunda-feira (às vezes referido como o branco, pai da luz). Ele está associado à lua. O rei branco é um dos cortesãos mais próximos de Iblis. Ele é descrito como um demônio branco com chifres e olhos dourados. Sua cabeça é parcialmente a de um humano, mas mais como uma besta, com presas, orelhas caídas e camadas enrugadas de carne em suas bochechas.

O rei da terça
Al-Malik al-Ahmar, ou o rei vermelho, é o rei-gênio da segunda-feira. Ele está associado ao planeta Marte, o planeta da guerra. Como o antigo deus da guerra do Panteão Romano-Grego, Ares / Marte, este gênio é associado à guerra e descrito como um ser monstruoso cavalgando um leão, armado com uma espada e segurando uma cabeça decepada.

O rei da quarta-feira
Al-Malik al-Aswad, ou o rei negro, é o rei da quarta-feira. Ele é um poderoso rei-gênio que governa uma multidão de outros djinns. Ele está associado ao planeta Mercúrio. Carboni descreve seus ajudantes como “extraordinários e silenciosos”. Ele é negro e tem chifres, com chamas saindo de sua boca e olhos. Um poderoso feiticeiro, ele também é responsável por ensinar magia a seus seguidores.

O rei da quinta
O rei-gênio da quinta-feira é chamado de Shamhurash. Algumas fontes referem-se a ele como Abu al-Walad, que significa “o pai da criança”. Ele é, portanto, representado segurando uma criança nua. Carboni diz que não está claro se a influência deste gênio na criança é positiva ou negativa. Ele está associado a Júpiter.

O rei da sexta-feira
O gênio rei da sexta-feira é Zawba’a, o demônio de quatro cabeças. Ele é retratado sentado em uma maneira real. Duas das cabeças estão de perfil e duas voltadas para a frente. Todas elas representam algum tipo de animal, ou uma transformação de animais. Este rei-gênio, como os espíritos e demônios da antiga Mesopotâmia, está associado ao vento. O nome Zawba’a significa redemoinho. Ele está associado ao planeta Vênus.

O rei do sábado
O último dos sete reis é Maymun, que significa “macaco” em árabe e persa. Ele às vezes é referido como Maymun al-Shahabi (Maymun das nuvens), tornando-o outro demônio associado ao vento e às nuvens, porque ele as usa para voar. Ele está associado a Saturno. Este demônio também é retratado carregando uma criança ou um homem que parece estar dormindo. Isso pode significar que ele é um sequestrador de humanos adormecidos ou incautos. Ele é alado, coberto de pelos e tem o rosto de um macaco com chifres na cabeça. Ele é retratado como descendente das nuvens e seus seguidores também parecem estar habitando as nuvens, tornando-o talvez um líder entre os demônios do vento.

Outros Gênios no Kitab al-Bulhan

Além de Iblis e os sete reis demônios da semana em Kitab al-Bulhan, há também algumas páginas com ilustrações de mais gênios. Esses demônios podem estar relacionados a forças perturbadoras na vida diária, como doenças

Kabus
Um desses gênios perturbadores é Kabus, ou “o pesadelo”. Kabus pode atrapalhar a vida noturna de sua vítima, causando pesadelos e sono agitado. Essa interrupção do sono pode se traduzir em uma vida diária, que é afetada pela fadiga de um sono agitado e sem poder descansar. Na ilustração, Kabus visita sua vítima indefesa enquanto ela está dormindo em seu quarto. Ele desce sobre ela do alto como uma figura escura e ameaçadora pronta para envolvê-lo totalmente, com pouca esperança de escapar de sua influência.

Tabi’a
A gênio fêmea, Tabi’a, é retratada segurando uma criança. Carboni afirma que a presença deste gênio é interessante porque suas origens remetem à Cabala. Ela representa a deusa demoníaca Lilith, que busca controlar e enfraquecer os bebês. Ele também argumenta que ela pode ser ligada à demonologia cristã como o personagem da rainha das bruxas. Carboni diz que “esta imagem adquire um significado extraordinário ligando as tradições hebraica, cristã e islâmica”.

Humma
Humma é o último dos gênios ilustrados no Kitab al-Bulhan. Humma é “a febre” e, portanto, um portador e propagador de doenças. Na imagem, ele tem três cabeças e está sentado frontalmente com os braços abertos, como se fosse abraçar sua próxima vítima e fazê-la adoecer.

Isso conclui a visão geral dos gênios em Ajaib al-Makhluqat wa Gharaib al-Mawjudat e Kitab al-Bulhan. Estes livros fornecem uma visão geral de alguns dos gênios, mas há um grande número deles não discutidos ou descritos em detalhes nestes textos. Há uma pequena anedota em Ajaib al-Makhluqat que ilustra esse ponto. Nesta história, o profeta e rei Suleiman (Rei Salomão), recebeu domínio sobre o gênio e o shayatin. Eles foram comandados por Gabriel para aparecer diante de Salomão e eles vieram em hordas das cavernas, montanhas, pântanos, desertos, planícies, vales, florestas, ilhas, rios e mares para servir seu novo mestre. Al-Qazwini afirma que eles foram conduzidos a ele, quase como gado pelos anjos e reunidos diante dele. Ele diz que 420 grupos de gênios foram reunidos sob seu domínio. Não está claro se esses grupos foram posteriormente subdivididos em clãs e tribos menores.

A fonte então diz que Salomão olhou para eles e viu que havia multidões dessas criaturas com formas estranhas e assustadoras e também vinham em várias cores, incluindo preto, branco, amarelo, vermelho, azul, e algumas eram multicoloridas e malhadas. Eles assumiram formas humanoides e animais e às vezes transformavam-se nos dois. Eles tinham garras, cascos, chifres, asas, caudas, focinhos, bicos, troncos, presas, penas e peles peludas e se assemelhavam a rebanhos, aves de rapina e animais selvagens tanto predadores quanto herbívoros. Alguns deles caminhavam sobre duas pernas, outros sobre quatro. Tão aterrorizante era a visão que Salomão se prostrou a Deus e pediu-lhe força e poder para contemplar e comandar essas criaturas.

O relato continua e afirma que uma vez que sua oração foi respondida, Salomão começou a questionar os gênios sobre suas origens, pátrias, religiões e atos. Ajaib al-Makhluqat apresenta alguns exemplos dos diálogos que Salomão teve com seus servos djinn. Um deles, um certo Mihr ibn Hafan, era metade cachorro e metade gato com uma tromba. Quando questionado sobre o que ele fazia, Mihr afirmou que ele produzia intoxicantes e tentou os filhos de Adão para o seu consumo. Outro gênio, al-Hilhal ibn Mahlul, era um monstro tenebroso com aparência semelhante à de um cachorro. Ele estava coberto de pele preta e sangue escorria de todos os pelos de seu corpo. Ele foi um causador de derramamento de sangue entre os homens.

Salomão então definiu todos os gênios para várias tarefas. Por exemplo, um grupo, o marada (plural de maarid), foi colocado para trabalhar como ferreiro, pedreiro e carpinteiro e receberam a ordem de construir fortificações. As mulheres também foram colocadas para trabalhar como tecelãs de seda e algodão e encarregadas de produzir tapetes e almofadas. Outros gênios receberam ordens para construir potes, caldeirões, jarros e vasos. Outros grupos e tribos foram postos para trabalhar como açougueiros, cavadores de poços, mergulhadores de águas profundas (para extrair pérolas e tesouros afundados), cavadores de canais, mineiros e domadores de cavalos. Al-Qazwini afirma que o Rei Slomão comandou os vários grupos e espécies de gênios para realizar todas as tarefas mais difíceis, a fim de mantê-los ocupados e impedi-los de espalhar seu mal e corrupção na Terra. Esta anedota exemplifica o quão variados os tipos de gênios são na tradição e folclore islâmicos.

Não diferentemente das bruxas, trolls, goblins e fadas da Europa, essas criaturas fazem aparições no folclore, histórias, lendas e tradições do mundo muçulmano. Em algumas partes, as pessoas ainda atribuem ocorrências diárias à sua influência, intromissão ou assombração. Um dos mais famosos conjuntos de histórias em que os gênios desempenham um grande papel são os contos familiares das Mil e uma Noites, onde eles fazem várias aparições tanto como ajudantes benevolentes quanto como antagonistas do mal aos humanos com quem interagem. A história de Aladim e a Lâmpada Mágica é provavelmente um dos contos mais conhecidos (graças à sua recontagem na forma de um filme) com um djinn (ou um gênio) figurando com destaque como um distribuidor de desejos para seu mestre.

Para ampliar:

Carboni, Stefano, “The ‘Book of Surprises’ (Kitab al-bulhan) of the Bodleian Library,” La Trobe Journal, 91 (2013), 22-34.

Lebling, Robert. Legends of the Fire Spirits: Jinn and Genies from Arabia to Zanzibar. London: I.B. Taurus, 2010.

Fonte:_historiaislamica.com/pt/demonios-e-genios-do-mundo-islamico-medieval medievalists.net

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Na noite terrível - Álvaro de Campos


Na noite terrível, substância natural de todas as noites,

Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites, Relembro, velando em modorra incómoda,

Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.

Relembro, e uma angústia

Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.

O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!

Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.

Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.

Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,

Na ilusão do espaço e do tempo,

Na falsidade do decorrer.


Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;

O que só agora vejo que deveria ter feito,

O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —

Isso é que é morto para além de todos os Deuses,

Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver...


Se em certa altura

Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;

Se em certo momento

Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;

Se em certa conversa

Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —

Se tudo isso tivesse sido assim,

Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro

Seria insensivelmente levado a ser outro também.


Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,

Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;

Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;

Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,

Claras, inevitáveis, naturais,

A conversa fechada concludentemente,

A matéria toda resolvida...

Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.


O que falhei deveras não tem esperança nenhuma

Em sistema metafísico nenhum.

Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.

Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?

Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.

Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos.

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca

Como uma verdade de que não partilho,

E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p’ra mim.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Genocídio Intelectual - Olhos D'Água de Conceição Evaristo


Lembro-me de que, em um excelente texto publicado após a VII Fantasticon de São Paulo, no longínquo ano de 2013, Bráulio Tavares fez menção à frase de Cortázar de que um romance é como uma luta de boxe vencida por pontos, enquanto o conto é uma luta decidida por nocaute. Tavares complementa essa ideia ao afirmar que o romance é uma maratona, enquanto o conto é uma corrida de cem metros rasos. Se nos restringirmos ao universo dos contos, podemos dizer que, quando uma coletânea ou antologia é devidamente organizada, sua estrutura pode simbolizar modelos de destinos prováveis, reunidos em um apanhado de episódios.

Em Olhos D'Água, de Conceição Evaristo (Editora Pallas, 2014), livro de relativo e surpreendente sucesso, as vidas das personagens correm paralelamente em um país que, em todos os sentidos, deu errado, resultando na submissão quase inevitável a comportamentos tribais e, em alguns casos, a formas de jagunçagem ainda mais violentas que as do período lampiônico. Toda a unidade central do volume nos conduz a uma compreensão mais profunda e nos oferece, enfim, uma linguagem robusta para expressar a truculência de ser brasileiro nas grandes capitais.

Não é de hoje que a vaca da nação foi para o brejo. A revista IstoÉ Dinheiro publicou uma matéria na qual a World Population Review, empresa privada e independente especializada na análise e produção de dados demográficos, revelou que, ao longo das últimas quatro décadas, o QI (quociente intelectual) do brasileiro vem caindo a passos largos, atingindo 83,38 pontos — o pior nível desde o início da medição. Para efeito de comparação, a média global é de 85,33 pontos, enquanto o QI médio considerado normal é de 100.

Isso representa um desastre social e econômico de difícil conserto no curto prazo, com impactos negativos que persistirão por muitos anos. Essa métrica possui forte poder preditivo sobre o crescimento do PIB e o bem-estar de uma sociedade. Os números catastróficos obtidos pelo Brasil no campo da educação, como os resultados do teste PISA-2022, mostram que os jovens brasileiros não apenas estão entre os que apresentam os piores desempenhos nas três dimensões avaliadas (matemática, leitura e ciências), mas também que seus resultados continuam piorando. Trata-se de um verdadeiro genocídio intelectual.

Segundo o portal UOL, o Brasil lidera o ranking mundial de homicídios, conforme estudo da ONU, registrando 10,4% do total de homicídios do mundo por ano (com referência ao ano de 2021). Em homicídios per capita, o país ocupa a 11ª posição, com 22,38 mortes a cada 100 mil habitantes — quase quatro vezes mais do que a média global. O país também lidera em números absolutos, de acordo com dados do Estudo Global sobre Homicídios, publicados em 2023. Em uma pesquisa rápida, podemos encontrar, até mesmo em materiais educacionais para vestibular, indicadores alarmantes: em 2015, o Brasil registrou 59.080 assassinatos, segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade do governo federal.

Ou seja, mais de 160 pessoas são mortas por dia no país, vítimas de homicídios dolosos (com intenção de matar), latrocínios (roubos seguidos de morte) e lesões corporais seguidas de morte. Para se ter noção da gravidade, em 2015, o número de assassinatos no Brasil foi 15 vezes maior do que o total de mortes causadas pelos 559 atentados terroristas registrados no mesmo ano, que vitimaram 3.830 pessoas, segundo a organização Peacetech Lab. Se analisarmos os dados entre 2011 e 2015, foram assassinadas no país mais de 270 mil pessoas — um número equivalente ao total de mortos na Guerra da Síria no mesmo período. Outro genocídio.

Essa situação humana é catastrófica, e a cultura não está alheia a isso, significando que ela está mais afundada que R'lyeh. Se a realidade descrita acima é verdadeira, então não há vocabulário suficiente, não há imaginação suficiente para abarcar esse dois genocídios — pelo menos até agoraAcredito que quem nos tirou do coma moderno foi a autora e este pequeno volume. Nota-se que seus personagens são exatamente aqueles descritos nas pesquisas citadas ou, caso não o sejam, vivem em um meio tão corrompido por esses dois genocídios que acabam se rendendo completamente — seja como vítimas, seja como aqueles que se aproveitam desse contexto.

As histórias se desenrolam dentro de um recorte racial específico, em quinze contos que abordam o cotidiano de personagens negras. Ainda que haja diversidade nas narrativas (as duas últimas são mais esperançosas do que eu poderia imaginar), a violência e os problemas educacionais, somados à falta de cognição, preenchem boa parte deste pequeno volume. Tudo é cru.

Se Adriana Ferreira, do site Raízes, afirma que o início, meio e fim das vivências periféricas são quase sempre trágicos e não poupam ninguém (homens, mulheres, crianças), podemos dizer que essa realidade não se limita às periferias, mas ao Brasil como um todo.

Para me fazer entender melhor, tomarei como exemplo a história "Maria".

O primeiro parágrafo serve como introdução ao leitor. A apresentação da personagem-título ocorre em um parágrafo de qualificação praticamente tirado do Código Civil, no qual são informados seu nome, profissão, domicílio e filhos. Aqui, são definidas as pessoas e os elementos que compõem seu cotidiano. Quem determina as partes que irão compor a narrativa é sempre o autor, que tem o poder de individualizar os elementos e evitar equívocos, sem recorrer a subterfúgios ou a uma redação deliberadamente vaga, imprecisa ou genéricaSegue o texto:

Maria estava parada há mais de meia hora no ponto do ônibus. Estava cansada de esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com a caminhada. O preço da passagem estava aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso, a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos iriam gostar de melão? (EVARISTO, 2016, p. 41)

Estabelecendo, então, que Conceição Evaristo não tangencia em nenhum momento do livro o tema proposto, mas o enfrenta diretamente, o eixo narrativo se desvia para um encontro súbito: Maria reencontra o pai de seu filho, a quem não vê há muito tempo. Ele é descrito como bonito e imponente, porém, seus olhos estão perdidos e assustados.

Ao entrar, um homem levantou lá de trás, do último banco, fazendo um sinal para o trocador. Passou em silêncio, pagando a passagem dele e de Maria. Ela reconheceu o homem. Quando tempo, que saudades! Como era difícil continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem assentou-se ao lado dela. Ela se lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros enjoos. Da barriga enorme que todos diziam gêmeos, e da alegria dele. Que bom! Nasceu! Era um menino! E haveria de se tornar um homem. Maria viu, sem olhar, que era o pai do seu filho. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, o olhar assustado não se fixando em nada e em ninguém. (EVARISTO, 2016, p. 42)

Túlio Romualdo Magalhães erra ao interpretar a cena sob uma perspectiva patriarcal. Em seu artigo sobre Maria, ele afirma:

"Evaristo, dessa forma, confere, na narrativa, uma complexa humanização para esse sujeito que, ao mesmo tempo que possui seus privilégios por ser homem, sofre em demasia numa sociedade racista e classista, na qual ele é constantemente subalternizado."

No entanto, o ex-homem de Maria não está nervoso por sofrer em uma sociedade racista e classista, mas sim pelo que está prestes a fazer na presença da personagem. A narrativa transcorre com uma breve conversa sussurrada entre ambos. A viagem tranquila é abruptamente interrompida, ganhando contornos angustiantes, quando Maria o testemunha armado, assaltando os passageiros da condução. O final é catártico: mesmo vendo tudo diante dos próprios olhos, Maria não percebe que seu ex é o assaltante. Isso fica evidente na seguinte passagem:

Alguém gritou que aquela puta safada lá da frente conhecia os assaltantes. Maria se assustou. Ela não conhecia assaltante algum. Conhecia o pai de seu primeiro filho. Conhecia o homem que tinha sido dela e que ela ainda amava tanto. (EVARISTO, 2016, p. 43)

Para Maria, toda aquela cena não chega à sua consciência – ela não compreende por que está sendo agredida, linchada e morta. Ela foi vista conversando aos sussurros com o assaltante, mas pensa consigo mesma: Não conhecia assaltante algum. Para ela, a figura do pai de seu primeiro filho e a do homem que cometeu o crime aos olhos vistos, ou pior, aos seus olhos não se sobrepõem. Há uma incapacidade de compreensão da realidade – e só isso já daria um livro inteiro. Se os personagens machadianos, que inundaram nossa literatura, negam a realidade por meio da dissimulação (como vemos em O Enfermeiro, A Cartomante e A Causa Secreta), a personagem evaristiana é incapaz de dissimular, pois não compreende onde está inserida.

Ódio, raiva e rancor, sentimentos que permeiam vastas obras da literatura nacional e que muitas vezes partem da mesquinhez, inveja e ciúme, ganham em Conceição Evaristo outra perspectiva. A autora parte do pressuposto de que a realidade é incompreensível para algumas pessoas e isso as define. A clareza da situação fere Maria, pois ela não possui os meios necessários para interpretá-la, enquanto essa mesma clareza move seus agressores, que a lincham por acreditarem que ela estava mancomunada com os assaltantes. Essa ignorância sobre o que é real compõe sua identidade, a ponto de ela sequer se defender, pois também não entende por que está sendo agredida.

Tudo foi tão rápido, tão breve, Maria tinha saudades de seu ex-homem. Por que estavam fazendo isto com ela? (EVARISTO, 2016, p. 44)

Segundo a Rede de Observatórios de Segurança:

"Linchamentos são respostas da sociedade que desacredita do sistema de justiça e resolve os problemas com as próprias mãos em um ato bárbaro."

A população lincha Maria não apenas por racismo, mas por raiva e pela certeza de que não terão seus bens devolvidos, assassinando-a enquanto exclamam todo tipo de impropério. Está claro, por tudo o que vemos, que os problemas vão além de raça, sexo e classe. Existe hoje um problema profundo na cultura brasileira, uma lógica genocida que extermina a todos, calando qualquer manifestação de vocalização de ideias e, se não as ideias, a existência material de seus possíveis porta-vozes.


Trabalhos Citados

BRASIL lidera ranking de homicídios no mundo, mostra estudo da ONU. UOL, 8 dez. 2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2023/12/08/brasil-lidera-ranking-de-homicidios-no-mundo-mostra-estudo-da-onu.htm. Acesso em: 3 jul. 2024.

CASOS de linchamentos crescem 61% em apenas seis meses no Piauí, aponta levantamento. G1, 6 out. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2022/10/06/casos-de-linchamentos-crescem-61percent-em-apenas-seis-meses-no-piaui-aponta-levantamento.ghtml. Acesso em: 3 jul. 2024.

DRAMÁTICA, Gi Pausa. [Resenha] Olhos D’água. Sem Serifa, 11 set. 2020. Disponível em: https://blogsemserifa.com/2020/09/11/resenha-olhos-dagua/. Acesso em: 3 jul. 2024.

FERREIRA, Adriana. Resenha do livro: Olhos D’água, de Conceição Evaristo. Raízes Blog Literário, 13 jul. 2023. Disponível em: https://www.conteudoraizes.com/post/resenha-do-livro-olhos-d-agua-de-conceicao-evaristo. Acesso em: 3 jul. 2024.

MAGALHÃES, Túlio Romualdo. Maria: reflexões sobre gênero, raça e classe no conto de Conceição Evaristo - Literatura Afro-Brasileira. Literafro - Universidade Federal de Minas Gerais, 7 jan. 2022. Disponível em: https://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-criticos/1629-conceicao-evaristo-maria-reflexoes-sobre-genero-raca-e-classe-no-conto-de-conceicao-evaristo. Acesso em: 3 jul. 2024.

SILVEIRA, VanDyck. QI nacional regride. E o ensino também. IstoÉ Dinheiro, 22 dez. 2023. Disponível em: https://istoe-dinheiro.com.br/qi-nacional-regride-e-o-ensino-tambem/. Acesso em: 3 jul. 2024.

VIOLÊNCIA: o Brasil é líder de homicídios no mundo | Curso Enem Play. Guia do Estudante, 2020. Disponível em: https://guiadoestudante.abril.com.br/curso-enem/violencia-o-brasil-e-lider-de-homicidios-no-mundo. Acesso em: 3 jul. 2024.


Nonada em inglês? A saga de uma década para traduzir o 'intraduzível' 'Grande Sertão: Veredas' - via BBC News Brasil


Grande Sertão: Veredas
é o Monte Everest do mundo da tradução. Como verter para outro idioma um romance experimental de 600 páginas sem divisão por capítulos, narrado por um jagunço que conta uma epopeia no sertão de Minas Gerais com neologismos, onomatopeias, paranomásias, aliterações e assonâncias?

Foi essa a pergunta que a australiana Alison Entrekin se fez em 2014, quando aceitou tocar um projeto para traduzir o clássico de Guimarães Rosa para o inglês.

Ela sabia que o trabalho seria hercúleo, mas não imaginou que duraria uma década.

No fim de 2023, entregou uma primeira versão a seu agente literário, encarregado de apresentá-la ao mercado editorial. O livro foi arrematado em um leilão pela editora americana Simon & Schuster em meados de 2024 e tem publicação prevista para 2026.

Promete ser um acontecimento: a outra única edição em inglês de Grande Sertão, lançada em 1963, não passou da primeira tiragem e ficou conhecida como uma versão desidratada que não está à altura do original.

O próprio Guimarães Rosa chegou a se queixar, em trocas de cartas com seu tradutor para o alemão, de que o texto não capturava a singularidade de sua obra.

Se um dos problemas apontados para o fracasso daquela época foi o conhecimento limitado do português da tradutora americana Harriet de Onís, que acabou largando o trabalho no meio do caminho, desta vez a situação não podia ser mais distinta.

Entrekin vive no Brasil desde 1996, quando, vindo de Perth, na costa australiana, desembarcou em Santos (SP), a cidade-natal do marido.

Na época em que aceitou a proposta de preparar uma versão em inglês de Grande Sertão, que chegou pela agência que representava os herdeiros do escritor, já tinha traduzido Budapeste, de Chico Buarque, e trabalhava em uma obra de Daniel Galera.

Em uma década, foi completamente absorvida pelo universo roseano. A discussão que teve recentemente com a editora que arrematou a tradução para definir o título dá uma ideia: foram quatro longos meses de chamadas de vídeo, reuniões e e-mails para chegar a Vastlands: The Crossing.

"Você não imagina quanto tempo a gente gastou debatendo esses dois pontos no título", conta Entrekin à reportagem da BBC News Brasil em um café em São Paulo.

Inicialmente, os editores argumentaram que os dois pontos causariam estranhamento. Mas a ideia era justamente essa, rebateu a tradutora.

"Quando o livro saiu em português, também tinha esse estranhamento. Hoje não tem mais porque os leitores tiveram sete décadas pra se acostumar com os dois pontos."

Ela também reparou que, nas trocas de cartas entre o escritor e a tradutora americana da primeira versão, no meio de um grande vai e vem de sugestões de combinações para o título, a única constante eram os dois pontos. Guimarães Rosa provavelmente era apegado aos dois pontos, pensou ela. Melhor deixar.

Dez anos traduzindo um livro

As correspondências do autor foram parte do arsenal de fontes que Entrekin usou em sua "travessia", como ela chama, pegando emprestada a última palavra de Grande Sertão.

Trabalhos como O Léxico de Guimarães Rosa, que reúne praticamente todos os neologismos de sua obra, Universo e Vocabulário do Grande Sertão e Para Ler Grande Sertão: Veredas ajudaram-na a navegar, além de dezenas de dicionários, glossários e pesquisas de mestrado e de doutorado.

A "fortuna crítica" ainda não existia na época de Harriet de Onís, razão pela qual ela releva as críticas mais cruéis ao trabalho da tradutora e de James Taylor, a quem coube concluir a tradução no início dos anos 1960.

Para Entrekin, foi um instrumento fundamental na busca por soluções para os neologismos que singularizam a obra de Guimarães Rosa, que a ajudou a desvendar as ferramentas que o autor usava em seu constante exercício de recriação da linguagem.

Uma delas eram as "palavras-valise", a junção de duas palavras conhecidas para dar à luz uma terceira (como "turbulindo", por exemplo, que vem de "turbilhão" e "bulir"; ou "constragar", da união de "constringir" e "tragar").

Rosa também gostava de usar a sufixação, como em "prostitutriz", combinação de prostituta com o sufixo "-triz", de "atriz", "meretriz".

Recorria com frequência às onomatopeias ("burumdum", que remete ao barulho de um corpo caindo no chão, ou "delém", do cantar dos sinos) e criava neologismos por analogia, com uma palavra nova que lembra outra que já existe ("demorão", que vem de "temporão"; "sofreúdo", criado a partir da "manteúdo", ou "pormiúdo", em analogia a "pormenor").

A partir desse mapa, ela criou então o próprio laboratório literário, desmembrando, por exemplo, palavras-valise para entender suas "árvores genealógicas", e, na sequência, experimentando com sufixos, sinônimos e versões arcaicas de palavras em inglês até encontrar uma combinação que "pegasse".

"É brincar de Frankenstein", ela descreveu em uma palestra no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB - USP).

Foi assim que "turbulindo" virou "awhirmoil", uma palavra-valise que une "whir" (zumbir), "awhirl" (girando) e "turmoil" (turbilhão, agitação, tumulto), "prostitutriz" foi traduzida como "prostitutress" ("prostitute" com o sufixo "ress") e "uivando lobúm" se transformou em "howling woliferously" (analogia com "vociferously", vociferantemente, a partir da palavra "wolf", lobo).

Todo esse processo de excisões, enxertos e suturas significava, claro, que o trabalho ficava mais lento.

Profissionais traduzem, em média, algo entre 1,5 mil e 2 mil vocábulos por dia. "Eu ficava feliz quando fazia 500", ela conta.

Nessa rotina, dezenas de palavras iam ficando pelo caminho. Nomes do Diabo (em uma sequência famosa o protagonista Riobaldo enumera 23), descrições de flora e fauna e topônimos (lugares geográficos), por exemplo, ela deixava em português no meio do texto como uma marcação para voltar depois.

"E essas palavras esdrúxulas que o Ribaldo fala e que não têm significado, não são dicionarizadas e na verdade são marcas de oralidade", acrescenta.

A estratégia era olhar para a obra de forma sistêmica, para dar mais fluidez ao trabalho. Caso contrário, ia ficar tropeçando nas expressões menos óbvias.

Muitas dessas palavras estão anotadas em um calendário de aniversário que está pendurado na parede em frente à escrivaninha da tradutora, que também virou repositório de uma lista de inspirações, termos em inglês que lhe ocorriam nas mais diversas ocasiões e que ela achava que poderiam ser úteis em algum momento da travessia.

"Eu tenho uma lista de 'conjunções esdrúxulas', por exemplo, outra de palavras arcaicas… Vasculhava dicionários de palavras arcaicas em inglês para ver se tinha alguma gracinha ali que merecia ser lembrada depois", ela conta.

Travessia

Por dez anos, de segunda a sexta, a australiana acordou cedo, levou a filha para a escola, voltou para casa e sentou na frente do computador para reconstruir em inglês o sertão de Minas Gerais.

A ideia inicial era fazer o trabalho caber em três anos, que era o período que o Itaú Cultural, que entrou como apoiador do projeto, concordou em pagar-lhe um salário.

O prazo acabou sendo dilatado, e Entrekin ficou mergulhada nessa rotina de reinvenção da linguagem até a pandemia, em 2020, quando o prazo colocado pelos incentivadores se esgotou.

Mas ainda havia um terço da obra a ser traduzida, e a australiana decidiu então trabalhar por conta própria: "Não concebia largar naquele momento, já tendo feito tanta coisa."

E tinha sido muito. Em vez, por exemplo, de transpor a história de Riobaldo e Diadorim para um universo mais próximo do outback australiano ou do sul dos Estados Unidos, em um processo conhecido na tradução como "domesticação", Entrekin tentou "levar o leitor para o mundo do livro", a chamada "estrangeirização".

Para fazer jus à "energia poética" da obra, por vezes ela também intercambiou as ferramentas roseanas, traduzindo um neologismo que em português era uma palavra-valise, por exemplo, usando uma sufixação.

"Um neologismo pode ser traduzido de várias maneiras, é uma questão de criatividade. Fiquei experimentando até chegar num resultado que me agradasse, mas outra pessoa poderia fazer outra coisa", ela diz à BBC News Brasil.

No fim, criou uma nova língua, um inglês a partir do português, como ela define.

Em uma maratona de aulas que ministrou como convidada e webinars no fim de 2024, chegou a ser parabenizada por traduzir um livro "intraduzível".

Não é assim que ela enxerga Grande Sertão: "Acho um livro altamente 'traduzível'", diz, dando risada. "É trabalhoso, mas não é intraduzível."

O fato de Guimarães Rosa brincar com as palavras dá liberdade ao tradutor de fazer o mesmo, ela reflete, desde que "dentro das regras do jogo".

Isso de certa forma aparece nas cartas que o autor trocou com o primeiro tradutor para o italiano, Edoardo Bizzarri. Em uma nota de agradecimento pela tradução de Duelo, um dos contos de Sagarana, ele chama o texto de "nosso".

"Ele viu que o italiano entendeu a brincadeira, que podia dar mais liberdade para ele ir fundo na recriação da obra dele", comenta.

Ela também pegou gosto. Quer agora traduzir Corpo de Baile, lançado no mesmo ano de Grande Sertão: Veredas, o único livro de Guimarães Rosa ainda não vertido para o inglês.

No momento, a tradutora está na revisão final de Vastlands: The Crossing.

"E essa revisão vai até quando, até arrancarem o livro da sua mão?", pergunta a reportagem, agarrando um livro imaginário na frente da tradutora.

"Mais uma menos isso", responde, fazendo então uma brincadeira com a palavra possivelmente mais desafiadora da obra: "Deixa eu só rever 'Nonada'!", diz, dando risada, enquanto puxa o livro imaginário de volta em sua direção.

Em uma década, ela foi e voltou várias vezes nela, uma aglutinação de "non" e "nada", que remete a uma versão de "não é nada" da oralidade sertaneja, que abre Grande Sertão: Veredas e que é um símbolo para qualquer leitor de Guimarães Rosa.

Nos últimos meses, por onde Alison Entrekin passou para falar sobre sua travessia, alguém perguntou como "Nonada" tinha ficado em inglês.

"É surpresa", ela rebate. Vai ficar para quando sair o livro.

terça-feira, 18 de março de 2025

"Agora o inverno de nosso desgosto" - Monológo de Abertura de Ricardo III - William Shakespeare


Agora o inverno de nosso desgosto

Fez-se verão glorioso ao sol de York;

[...]

E eu, sem jeito para o jogo erótico,

Nem para cortejar o próprio espelho;

Que sou rude, e a quem falta a majestade

Do amor para mostrar-me a uma ninfa;

Eu, que não tenho belas proporções,

Malfeito de feições pela malícia

Da vida, inacabado, vindo ao mundo

Antes do tempo, quase pelo meio,

E tão fora de moda, meio coxo,

Que os cães ladram se deles me aproximo;

Eu, que nesses fraquíssimos momentos

De paz não tenho um doce passatempo

Senão ver minha própria sombra ao Sol

E cantar minha própria enfermidade:

Já que não sirvo como doce amante,

Para entreter esses felizes dias, 

Determinei tornar-me um malfeitor

E odiar os prazeres destes tempos.

Armei conspirações, graves perigos,

Profecias de bêbados, libelos,

Para pôr meu irmão Clarence e o rei

Dentro de ódio mortal, um contra o outro.

E se o Rei Eduardo for tão firme

Quanto eu sou falso, sutil e traiçoeiro,

Inda este dia Clarence será preso,

Pois uma profecia diz que "G"

Será o algoz dos filhos de Eduardo.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Sobre Tolkien e Atlântida - via Projeto Tolkien


Nunca li Howard, mas achei interessantíssima essa colocação, pois me lembrou muito da própria mitologia de Tolkien.

Nem todos sabem, mas a história de Númenor foi, assumidamente, a versão de Tolkien do mito de Atlântida. Aliás, a própria Númenor, após a sua queda, passou a ser chamada de Atalantë ("a decaída"), que o próprio Tolkien disse ter sido uma feliz coincidência ser tão parecido com "Atlantis". E milênios mais tarde chegamos à época de Aragorn, que vemos lá no Senhor dos Anéis, sendo ele um descendente direto do povo de Atalantë.

"É um acaso curioso que o radical √talat usado em Quenya [Alto-élfico] para 'escorregar, deslizar, cair', do qual atalantë é uma formação substantiva normal (em Quenya), pareça-se tanto com Atlântida." (Carta 257)

"Númenor é minha alteração pessoal do mito e/ou tradição de Atlântida e ajuste desta à minha mitologia geral." (Carta 276)

Outra coisa que nem todos sabem é que o mundo da Terra-média é o nosso próprio mundo, num passado longínquo. O próprio Tolkien, tentando racionalizar um pouco, disse que nós estaríamos hoje, provavelmente, na Sétima Era (lembrando que a Primeira Era é focada nas Silmarils; a Segunda, na Queda de Númenor; e a Terceira, na Guerra do Anel).

"Imagino que a lacuna [entre o fim de O Senhor dos Anéis e os dias atuais] seja de cerca de 6000 anos: isto é, estamos agora no fim da Quinta Era, se as Eras forem da mesma duração da S.E. e T.E.. Porém, creio que elas tenham acelerado, e imagino que na verdade estamos no final da Sexta Era, ou na Sétima." (Carta 211)

E o Dagor Dagorath?

A Dagor Dagorath (Batalha das Batalhas) nunca aconteceu. Ela é apenas a “Segunda Profecia de Mandos” sobre algo que um dia viria a acontecer. Tudo o que temos sobre ela é menos de uma página e não sabemos quando ou em qual Era essa profecia se realizará. Ou seja, a Dagor Dagorath ainda está em nosso próprio futuro.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

O CORVO, DE EDGAR ALLAN POE, COMPLETA HOJE 180 ANOS - via Revista Oeste



COM UMA NARRATIVA DE SUSPENSE QUE EXPLORA O MISTÉRIO E O MACABRO, A OBRA É TAMBÉM UM POEMA ROMÂNTICO

Há 180 anos o mundo conhecia O Corvo (The Raven), poema escrito por EDGAR ALLAN POE que ganharia status de clássico da literatura gótica. O texto original de Poe foi publicado pela primeira vez em 29 de janeiro de 1845, nas páginas do jornal New York Evening Mirror. A obra foi um marco na carreira do autor, que, naquele momento, atravessava um momento de crise — sobretudo financeira —, mesmo depois de tantos outros livros, contos e poemas já publicados desde os anos de 1830. No entanto, com sua narrativa de suspense que explorava o mistério e o macabro, O Corvo rapidamente conquistou o público. Ainda que o texto contenha os principais elementos do terror e do sobrenatural, Edgar Allan Poe faz parte do movimento romântico, e O Corvo não esconde sua verdadeira proposta.

O poema é apresentado por um narrador angustiado que experimenta o luto pela morte da amada, Lenore. Dias e noites intermináveis só aumentam o desespero daquele homem, quase à beira da loucura, quando um corvo bate à sua porta. “Nevermore” (ou “Nunca mais”, numa tradução literal) é a enigmática e melancólica palavra repetida pelo corvo e que vai pontuar o simbolismo de todos os sentimentos do narrador.

O CORVO, POR MACHADO DE ASSIS E FERNANDO PESSOA

Um dos escritores mais celebrados da literatura norte-americana, Edgar Allan Poe influenciou grandes autores pelo mundo. O Corvo, em especial, foi objeto de estudo e apreciação, ganhando inúmeras traduções inclusive no Brasil. Machado de Assis e Fernando Pessoa são apenas dois (dos maiores) que se debruçaram na obra. A tradução feita pelo brasileiro Machado de Assis foi publicada em 1883, na Gazeta de Notícias; já o português Fernando Pessoa traduziu O Corvo em 1924.

Ao longo de quase dois séculos, no entanto, O Corvo tem repetidamente influenciado a cultura pop como um todo, servindo de inspiração para a literatura, a música e o cinema. H.P. Lovecraft, Stephen King e Neil Gaiman são alguns exemplos de autores que jamais esconderam sua reverência não apenas à literatura de horror gótica de Edgar Allan Poe, mas sobretudo à construção de atmosferas sombrias encontradas em O Corvo.

A MÚSICA E O CINEMA SE RENDERAM A EDGAR ALLAN POE 

Também na música, seja o pop, o rock progressivo e até o metal, prestaram homenagem ao icônico poema de Poe. The Raven é o nome do álbum produzido pelo cantor e compositor Lou Reed, lançado em 2003. A banda britânica The Alan Parsons Project, grupo de rock progressivo formado no final dos anos de 1970 por Alan Parsons e Eric Woolfson, ficou famosa com Tales of Mystery and Imagination (1976), álbum que traz faixas inspiradas em diversas obras de Poe, incluindo O Corvo. E o Iron Maiden, banda inglesa de heavy metal criada pelo baixista e compositor Steve Harris, em 1975, igualmente se inspirou no autor de O Corvo para compor suas letras com elementos sombrios, incorporando essas referências até mesmo na cenografia dos shows.

Mas foi o cinema o grande responsável por dar vida — literalmente — ao universo de terror angustiante de Poe. Em 1935, Boris Karloff e Béla Lugosi, dois dos atores considerados maiores ícones do gênero, estrelaram o filme O Corvo. Mais tarde, em 1994, Brandon Lee estrelou O Corvo, adaptação para o cinema de uma HQ homônima criada por James O’Barr que, por sua vez, utiliza o poema de Edgar Allan Poe como inspiração para sua atmosfera sombria e sua narrativa de vingança. Brandon, filho do ator e mestre das artes marciais Bruce Lee, tornou-se um importante personagem não somente da obra cinematográfica, mas também de uma história de final trágico.

No dia 31 de março de 1993, Brandon Lee, aos 28 anos de idade, estava no set em Wilmington, Carolina do Norte, para fazer O Corvo. A poucos dias do final dos trabalhos, durante as filmagens de uma sequência de ação, deixaram que uma arma carregada fosse utilizada. Brandon foi baleado no estômago e morreu 12 horas depois do acidente. Até hoje o caso não foi devidamente explicado. Mas, levando-se em conta todo o imaginário de mistério surreal da obra de Poe, é fato que as mais diversas teorias (conspiratórias, até) foram cogitadas. Para o bem ou para o mal, é justamente essa atmosfera que faz de Edgar Allan Poe e sua obra tão importante e ainda influente.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

A Força da Obsessão: O Caminho de Quem Decide Ser Diferente - via @dr.lucasmedeiro

Nem todos nascem com talento natural, mas todos têm a capacidade de superar limites. Enquanto o talento pode abrir portas, é a obsessão que mantém você lá dentro. Obsessão não é apenas um desejo ardente; é um compromisso inabalável em ser melhor, em desafiar o que parece impossível, em resistir ao comum e construir algo único.

Para quem não tem talento, a obsessão é a arma mais poderosa. É ela que transforma fraquezas em habilidades e erros em aprendizado. Ser obcecado não significa agir sem propósito, mas sim canalizar toda energia, tempo e esforço para se destacar, para ser diferente em um mundo saturado de mesmices.

Muitos olham para a obsessão com desconfiança, confundindo-a com desequilíbrio. Mas é preciso lembrar: é na obsessão que mora o diferencial. É ela que faz alguém estudar até tarde quando o corpo pede descanso, que leva à prática incessante quando a vontade de desistir aparece. Quem é obcecado por uma visão cria sua própria sorte e conquista o respeito que o talento sozinho jamais conseguiria.

No final, a obsessão se torna o talento de quem teve coragem de acreditar no impossível. E a diferença? Ela não nasce do dom, mas do esforço de quem decidiu não ser como os outros.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Caveira idolatrada - Dom Francisco de Aquino Corrêa


À memória de minha mãe


Eu a vi! Do coveiro aos pés jazia,

Onde nem uma flor a coloria,

     Nua, ignorada a vi!

A tarde semimorta o extremo raio

Enviava a beijá-la, de soslaio,

     Desde os céus de rubi.


A música era mesta. O bosque arfava…

O povo que, em silêncio, me cercava,

     Nem notou o meu penar!

Fitei os olhos na caveira branca,

E, em meio à turba, o coração me arranca

     Tristíssimo cismar…


Há doze anos que aí a sepultaram…

Bem me lembro! Era em maio; me acordaram,

     E ela era morta já.

A manhã cor-de-rosa além nascia,

E minha mãe, sem cor, lívida, se ia…

     Morta a vejo inda lá!


Tinha um frio palor… Desfeito o laço,

Os cabelos castanhos, no regaço,

     Vinham caracolar.

O roxo cílio os olhos clausurara,

E na boca o sorriso lhe murchara,

     Para não mais brotar!


De roxo e negro minha mãe vestiram…

E à mesa da varanda a conduziram,

     Deitada no caixão.

Meu pai e meu irmão e irmãs sem fala,

As crioulas, em pranto, iam beijá-la,

     No rosto e na alva mão.


Meu pai me ergueu nas mãos hirtas de gelo;

Os seus prantos molharam-me o cabelo,

     E o que senti nem sei!

Mas me inclinei por sobre a face fria:

Na escumilha violete que a cobria,

     Soluçando, a beijei!


Era o último adeus! Ela partia!

Toda a casa ululava! O meio-dia

     Começava a cair…

Fui ao jardim de grades encarnadas;

No caminho sombrio de ramadas,

     Vi o enterro sumir.


À hora quente ermara-se a campina…

Só as copas em flor, rara bonina

     Jogavam no caixão.

Perfumavam o esquife as mesmas flores,

A cuja sombra, de infantis verdores,

     Passei minha estação.


Fugiu-me assim a meninice pura,

Sem beijos, sem carícias, sem doçura,

     Ó minha mãe, sem ti!

A adolescência, como em doidas valsas,

Arrebatou-me! De alegrias falsas

     Fundo cálix sorvi!


Hoje beijo essa lúrida caveira!

E busco, em vão, teu vulto, a cabeleira,

     A face, a boca, o olhar…

Assim ai! A inocência em vão buscaras,

Que em meus olhos e lábios tu beijaras,

     Minha mãe, a cantar!


Lá fora a mocidade baila e grita:

“Rosas, flori! Na abóbada infinita,

     Astros! mundos! parai!

Quero boiar no azul das harmonias,

Rolar, morto, ao tumulto das orgias,

     Onde a sorrir se cai!”


Rajada vespertina traz-me o harpejo,

E eu palpito, deliro, ardo, louquejo,

     Desgarrado de mim!...

Mas nesse crânio a ilusão se esmaga,

Qual sobre escolhos, a irisada vaga,

     No oceano sem fim!


Ah! rasgue-se a cruel filosofia,

Que do órfão triste nessa ossada fria

     A esperança contém!

O crânio é um livro e a pálida caveira

Duma mãe, é qual santa e verdadeira

     Bíblia do eterno além!


Sim, tu, só tu, ó Religião materna,

Dominas nos sepulcros! Firme e eterna,

     Quebras o arcano horror!

Aqui, só tu, com a minha alma casas:

Subo contigo nas cerúleas asas,

     Mostras-me o meu amor.


Vejo-te, ó mãe! Num arrebol celeste,

Aquela, cujo nome em vida houveste,

     Rogas, meiga, por mim.

Sim! Pede por teu filho! É mau o mundo,

Simula beijos por morder mais fundo,

     Tem serpes no jardim.


Sou inda moço; minha alma suspira,

Que nem as cordas de encantada lira,

     À menor ilusão!

Que Ela cuide de mim, qual tu cuidavas;

E onde reina o ermo e o amor, sem vozes pravas,

     Fale-me ao coração.


Ora descansa! Possa ir um dia,

Em paz com Deus, à tua campa fria,

     Meu cadáver também…