sábado, 27 de dezembro de 2025

ESTÓRIA, CENA, DIÁLOGO - Robert McKee


De vez em quando, experimentamos uma estória fraca que esbanja diálogos surpreendentemente bons. Todos nós já aguentamos estórias mal contadas com diálogos horríveis, mas raramente encontramos uma estória contada de modo excelente arruinada por diálogo vagabundo. E a razão é simples: narrativa de qualidade inspira diálogo de qualidade.


Como uma febre alucinante, diálogo ruim é o aviso de uma infecção apodrecida nas profundezas da estória. Mas como escritores inexperientes com frequência confundem o sintoma com a doença, eles tentam tratar as cenas reescrevendo obsessivamente o diálogo, achando que uma vez que a fala esteja correta, a narrativa será curada. Mas as enfermidades de personagem e acontecimento não podem ser curadas alterando o diálogo com paráfrases um rascunho após o outro.


Para colocar da forma mais clara possível: até que você saiba do que está falando, você não pode saber como suas personagens estão falando. A ordem na qual você cria os componentes de sua estória e como você junta todas as partes é uma decisão sua. Mas não importa quão confuso seja o processo criativo, um autor precisa ter conhecimento absoluto de forma (concepção de eventos e de elenco) e conteúdo (substância cultural, histórica e psicológica) para embasar a narrativa de cima para baixo, para criar diálogo de dentro para fora. Diálogo é o último passo, a cereja do bolo sobre camadas e camadas de subtexto.


Portanto, antes de examinar a concepção do diálogo, vamos revisar os componentes básicos do design da estória.


INCIDENTE INCITANTE

Na abertura da estória, a vida da personagem central se encontra em um estado de relativo equilíbrio. Ela tem seus altos e baixos. Quem não tem? Entretanto, o protagonista tem relativa soberania sobre sua própria existência – até que algo acontece que perturba radicalmente este equilíbrio. Chamamos esse acontecimento de incidente incitante.


Incitar significa iniciar; “incidente” significa “acontecimento”. Esse primeiro acontecimento relevante inicia a estória deixando a vida do protagonista fora do prumo. O incidente incitante pode ocorrer por uma decisão própria (ele decide largar o emprego e abrir seu próprio negócio) ou por coincidência (um raio atinge sua loja e ele perde seu negócio). O incidente incitante pode mover sua vida poderosamente para o lado positivo (ele inventa um produto novo e genial) ou negativo (uma empresa rival rouba sua invenção). O incidente incitante pode ser um acontecimento social gigantesco (sua corporação vai à falência) ou um acontecimento interno discreto (ele descobre que detesta seu emprego do fundo do coração).¹


VALORES DA ESTÓRIA

O impacto do incidente incitante muda de maneira decisiva a carga dos valores em jogo na vida da personagem. Os valores da estória são binários de cargas positivas e negativas, como vida/morte, coragem/covardia, verdade/mentira, significância/insignificância, maturidade/imaturidade, esperança/desespero, justiça/injustiça, por exemplo. Uma estória pode incorporar qualquer número, variedade e possíveis combinações de valores da estória, mas ancora seu conteúdo em um valor fundamental insubstituível.


O valor fundamental é insubstituível porque determina a natureza fundamental da estória. Muda-se o valor fundamental, muda-se o gênero. Por exemplo, se um escritor retira amor/ódio da vida de suas personagens e substitui por moralidade/imoralidade, essa mudança de valores fundamentais mudaria o gênero de uma estória de amor para uma trama de redenção.


Os valores nas cenas podem ser bastante complexos, mas, no mínimo, cada cena deve conter pelo menos um valor da estória em disputa na vida da personagem. Esse valor ou se relaciona ou é idêntico ao valor fundamental da estória. Uma cena pode começar com seu(s) valor(es) em uma carga puramente positiva, puramente negativa ou uma mistura de ambos. Através de conflitos e/ou revelações, a carga de valor da abertura muda. Pode reverter (positivo para negativo, negativo para positivo), intensificar (positivo para duplamente positivo, negativo para duplamente negativo) ou amainar (puramente positivo para levemente positivo, puramente negativo para levemente negativo). O momento preciso no qual a carga de um ou de mais valores muda é o ponto de virada da cena. Portanto, um acontecimento da estória ocorre no instante que um valor em questão na cena muda de carga.²


O COMPLEXO DO DESEJO

Todo mundo quer ter uma soberania razoável sobre sua existência. Ao deixar a vida fora de equilíbrio, o incidente incitante desperta o desejo humano natural de restaurar o equilíbrio. Em essência, portanto, todas as estórias dramatizam a luta humana para mover a vida do caos para a ordem, do desequilíbrio para o equilíbrio.


Personagens agem porque necessidades exigem ações, mas a complexidade da vida percorre um labirinto de desejos. Em última análise, a arte de contar uma estória funda e organiza várias correntes de desejo em um único fluxo de acontecimentos. O contador de estórias escolhe apenas aqueles desejos que ele quer expressar nas cenas específicas que constituem sua estória do início ao fim. Para entender esse processo, precisamos examinar os componentes do desejo e como eles impulsionam a narrativa.


Desejo é uma figura de cinco dimensões:

1. Objeto de desejo

2. Superintenção

3. Motivação

4. Intenção da cena

5. Desejos de fundo


1. Objeto de Desejo

Como resultado do incidente incitante, o protagonista desenvolve um objeto de desejo, algo que ele considera necessário para colocar sua vida nos eixos de novo. Esse objeto pode ser algo físico, como uma pilha de dinheiro; ou situacional, como a vingança por uma injustiça; ou ideal, como uma fé para guiar sua vida. Exemplo: uma humilhação no trabalho (incidente incitante) causou danos à imagem do protagonista, radicalmente perturbando o equilíbrio em sua vida, logo ele busca uma vitória no ambiente de trabalho (objeto de desejo) para restaurar o equilíbrio.


2. Superintenção

A superintenção motiva uma personagem a buscar seu objeto de desejo. Essa frase reafirma o desejo consciente do protagonista nos termos de sua necessidade mais profunda. Por exemplo, o objeto de desejo (vitória no ambiente de trabalho) retratada como superintenção se torna: ganhar paz interior através de um triunfo público.


Em outras palavras, o objeto de desejo é objetivo, enquanto a superintenção é subjetiva: o que o protagonista quer contra a fome emocional que o move. O primeiro termo dá ao escritor uma visão clara da cena crítica no fim da estória em que o protagonista vai ou não conseguir seu objeto de desejo. O segundo conecta o escritor aos sentimentos do protagonista, a necessidade interna que guia a narrativa.


Em toda estória, a superintenção do protagonista é um tanto genérica (por exemplo, conseguir justiça através da vingança, achar felicidade na intimidade do amor, viver uma vida significativa), mas o exato objeto de desejo (por exemplo, a morte do vilão, o parceiro ideal, um motivo para não cometer suicídio) dá à estória sua originalidade. Seja qual for o objeto de desejo, o protagonista o quer para satisfazer sua superintenção, seu anseio profundo por equilíbrio na vida.


3. Motivação

Não confunda objeto de desejo ou superintenção com motivação. As duas primeiras respondem as questões que começam com "O quê?": O que minha personagem quer conscientemente? O que ela precisa subconscientemente? Motivação responde "por quês": Por que uma personagem necessita o que ela acha que necessita? Por que ela quer esse objeto de desejo em particular? E se ela conseguir o que quer, isso vai, de fato, satisfazer sua necessidade?


As raízes da motivação alcançam até a infância e, por isso, são com frequência irracionais. O quanto você compreende os porquês das necessidades e desejos de sua personagem é uma decisão sua. Alguns escritores, como Tennessee Williams, são obcecados por motivação; outros, como Shakespeare, a ignoram. De qualquer forma, o que é essencial para a escrita de cenas e diálogo é compreender os desejos conscientes e inconscientes das personagens.¹


4. Intenção da Cena

Uma cena molda a luta momento-a-momento da personagem em direção à sua meta suprema de vida. Intenção de cena nomeia o que a personagem deseja imediatamente como um passo na jornada de longo prazo da superintenção. Como resultado, suas ações e as reações que recebe a deixam mais perto ou mais longe de seu objeto de desejo.


Se o escritor desse de graça ao personagem sua intenção de cena, a cena iria acabar. Por exemplo, em uma cena de interrogatório policial, a Personagem A quer que a Personagem B pare de questioná-lo. A intenção de cena de A é parar o interrogatório. Se B desistisse e saísse da sala, a cena acabaria. B, por outro lado, quer que A revele um segredo. Do ponto de vista de B, sua intenção de cena é descobrir o segredo. Se A confessasse, também acabaria com a cena. A intenção de cena é o nome do desejo iminente e consciente de uma personagem – o que ela quer nesse momento.⁴


5. Desejos de Fundo

Os desejos de fundo de uma personagem limitam suas escolhas de ação. Cada um de nós está constantemente ciente do estado do relacionamento entre nós mesmos e cada pessoa e cada objeto que encontramos na vida – nosso comportamento no trânsito, em qual mesa gostaríamos de nos sentar no restaurante, nosso lugar na hierarquia do trabalho, para citar três exemplos públicos. Nós estamos profundamente cientes da natureza de nossas relações com amigos, família e amantes. Também sabemos de nosso eu interior, nosso estado relativo de bem-estar físico, mental, emocional e moral. Além disso, temos consciência do nosso lugar no fluxo do tempo, de nossas experiências no passado, da beira do abismo que é o presente e do que esperamos para o futuro. Esses relacionamentos complexos interligados criam nossos desejos de fundo.


Relacionamentos se tornam desejos da seguinte maneira: uma vez criados, os relacionamentos se tornam a fundação de nossa existência; eles criam um sistema que nos dá um senso de identidade e de segurança na vida. Nosso bem-estar depende deles. Tentamos eliminar relacionamentos de valores negativos, enquanto mantemos ou aprimoramos relacionamentos positivos. Na pior das hipóteses, queremos ter um controle razoável sobre relacionamentos de qualquer tipo.


Desejos de fundo, portanto, não apenas cimentam o status quo da vida da personagem; eles moldam seu comportamento. Desejos de fundo formam uma teia de restrições que segue cada personagem em cada cena. Esses desejos de estabilidade limitam e moderam as ações da personagem. Eles influenciam o que a personagem vai ou não vai dizer para conseguir o que quer.


Em princípio, quanto mais relacionamentos de valor positivo uma personagem acumula ao longo da vida, mais restrito, mais “civilizado” seu comportamento. O contrário também é verdade: quando uma personagem não tem nada a perder... ela é capaz de qualquer coisa.


Em algumas culturas, por causa de costumes sociais, você pode falar o que vem à mente; em outras, pela mesma razão, você deve obedecer a códigos tácitos de comportamento e não falar o que pensa. A vasta gama de culturas da humanidade cria um espectro de extremos polares que vão de culturas que são inteiramente subtextuais, com quase nada de texto, e culturas que são só texto e muito pouco subtexto. Nas ciências sociais, esses extremos polares são conhecidos como culturas de alto contexto e de baixo contexto. Na ficção, elas determinam a qualidade relativa de texto e subtexto.


Culturas de alto contexto possuem um forte senso de tradição e história. Elas mudam lentamente ao longo do tempo e, portanto, geração após geração, seus membros dividem muitas crenças e experiências em comum. Uma cultura de alto contexto será relacional, coletivista, intuitiva e contemplativa. Ela coloca relacionamentos interpessoais em alta conta dentro de uma comunidade fechada e próxima (familiares próximos, por exemplo).


Como resultado, dentro desses grupos, muitas coisas podem ficar implícitas porque seus membros fazem inferências fácil a partir de sua cultura e experiência compartilhada. A máfia italiana é um exemplo desse tipo de grupo. Em O Poderoso Chefão, quando Michael Corleone diz: "Meu pai fez uma oferta que ele não pôde recusar", um episódio inteiro de extorsão se torna violentamente claro. Michael então torna o evento explícito para Kay Adams porque ela não é parte desse grupo.


Culturas de alto contexto, como no Oriente Médio e na Ásia, possuem pouca diversidade étnica e social. Eles valorizam a comunidade sobre o indivíduo. Grupos fechados confiam em seu passado comum para explicar situações, em vez de confiar em palavras. Por consequência, diálogos dentro de culturas de alto contexto exigem economia extrema e escolhas precisas de palavra porque, dentro de tais ambientações, algumas palavras sutis podem deixar implícita uma mensagem complexa.


Do outro lado, personagens em culturas de baixo contexto, como a da América do Norte, tendem a explicar as coisas em mais detalhes porque as pessoas ao seu redor vêm de uma imensa variedade de origens raciais, religiosas, sociais e nacionais. Mesmo dentro da mesma cultura essas diferenças aparecem. Compare, por exemplo, dois estereótipos americanos: um luisianense (uma cultura de alto contexto) e um nova-iorquino (uma cultura de baixo contexto). O primeiro usa poucas palavras e silêncios prolongados, enquanto o segundo fala de maneira franca e constante.


Além disso, em culturas de baixo contexto, experiências compartilhadas mudam de modo drástico o tempo inteiro, criando lacunas de comunicação entre uma geração e outra. Em sociedades de imigrantes, como a dos Estados Unidos, fica evidente que pais e filhos têm dificuldades comunicacionais que resultam em discussões longas e barulhentas. Personagens se tornam mais verborrágicas e explícitas à medida que o subtexto fica mais raso.

domingo, 7 de dezembro de 2025

Carta ao Studio Ghibli


Comunicado do Explorador

Meus queridos viajantes entre mundos,

O Explorador decidiu seguir por um caminho diferente desta vez. Ao invés de criar um novo vídeo sobre A Viagem de Chihiro, optamos por dar um passo de coragem e respeito: enviamos um pedido oficial ao Studio Ghibli, solicitando a liberação do vídeo original que fizemos com tanto cuidado, carinho e reverência.

Acreditamos profundamente que:

1. o vídeo foi feito com total respeito ao Studio Ghibli

2. todo conteúdo é educativo

3. as referências culturais japonesas foram tratadas com seriedade

4. E que a qualidade do que produzimos merece ser vista pelo público brasileiro


Carta ao Studio Ghibli

Assunto: Pedido de autorização para liberar um vídeo educativo sobre “A Viagem de Chihiro”

Studio Ghibli

À pessoa responsável,

Gostaria de expressar minha profunda reverência pelo trabalho do Studio Ghibli, que há tantos anos inspira, emociona e transforma a vida de pessoas ao redor do mundo.

Sou antropólogo, educador, e trabalho há anos com cultura, arte e ensino no Brasil. Sou também membro da Fantastic Hub Produtora & Editora, uma empresa dedicada a universos fantásticos, literatura, educação e projetos culturais sempre com absoluto respeito à integridade de obras internacionais.

Além disso, conduzo o canal do YouTube Explorando Segredos e Mistérios onde apresento análises sobre simbolismos, mitologias, narrativas e elementos culturais de obras que dialogam com a imaginação humana.

Trato a cultura japonesa com imenso respeito, e a obra de Hayao Miyazaki sempre foi uma influência profunda na minha jornada.


Sobre o Vídeo

Em 24 de novembro de 2025, publiquei o vídeo: “Segredos Ocultos em A Viagem de Chihiro — Os Mistérios Que Miyazaki Escondeu no Filme”. A intenção do vídeo é exclusivamente educativa: apresentar ao público brasileiro os significados culturais, simbólicos e espirituais presentes em A Viagem de Chihiro, honrando o trabalho do Studio Ghibli e incentivando a apreciação da cultura japonesa.


Respeito à Postura do Studio Ghibli

Compreendo, admiro e respeito profundamente:

- a proteção rigorosa da obra

- a rejeição à pirataria

- o cuidado com longos trechos do filme

- a preservação da experiência original

- a não utilização de IA em contextos que comprometam a integridade artística


Compromissos Firmados

Para assegurar total conformidade e respeito, comprometo-me a:

1. remover ou ajustar imediatamente qualquer trecho considerado inadequado

2. enviar o vídeo previamente para revisão, caso desejado

3. desativar completamente a monetização

4. adicionar links oficiais do Studio Ghibli e de produtos licenciados

5. incluir créditos formais de direitos autorais no início e no fim

6. seguir integralmente qualquer instrução adicional do estúdio

7. reforçar ainda mais o respeito à cultura japonesa e à obra original


Encerramento

Como antropólogo, educador e editor, tenho profundo respeito pela cultura japonesa, e os filmes do Studio Ghibli desempenham um papel essencial na minha vida e na formação cultural de muitos brasileiros.

Se houver qualquer inadequação nesta solicitação, apresento minhas sinceras desculpas. Agradeço profundamente pela atenção dedicada, especialmente diante das responsabilidades que recaem sobre uma obra tão admirada mundialmente.


Com respeito e gratidão,

Explorador

Brasil

Antropólogo / Educador / Escritor

sábado, 29 de novembro de 2025

O AFRICANO E O POETA - Narcisa Amália


           Ao Dr. Celso Magalhães


                                              Les esclaves... est-ce qu'ils ont des dieux?

                                              Est-ce qu'ils ont des fils, eux qui n'ont point d'aieux?

                                                                                                           Lamartine


No canto tristonho

Do pobre cativo

Que elevo furtivo,

Da lua ao clarão;

Na lágrima ardente

Que escalda-me o rosto,

De imenso desgosto

Silente expressão;


Quem pensa? — p poeta

Que os carmes sentidos

Concerta aos gemidos

De seu coração.


— Deixei bem criança

Meu pátrio valado,

Meu ninho embalado

da Líbia no ardor:

Mas esta saudade

Que em meu túmido ansdio

Lacera-me o seio

Sulcado de dor,


Quem sente? — o poeta

Que o elísio descerrrqa;

Que vive na terra

De místico amor!


— Roubaram-me feros

A férvidos braços;

Em rígidos laços

Sulquei vasto mar;

Mas este quexume

Do triste mendigo,

Sem pai, sem abrigo,

Quem quer escutar?...


— Quem quer? — o poeta

Que os térreos mistérios

Aos paços sidérios

Deseja elevar.


— Mais tarde entre as brenhas

Reguei mil searas

Co'as bagas amaras

Do pronto revel;

Das matas caíram

Cem troncos, mil galhos;

Mas esses trabalhos

Do braço novel,


Quem vê? — o poeta

Que expira em harpejos

Aos lúgubres beijos

Da fome cruel!


— Depois o castigo

Cruento, maldito,

Caiu no proscrito

Que o simum crestou;

Coberto de chagas,

Sem lar, sem amigos,

Só tendo inimigos...

Quem há como eu sou?!...


— Quem há?... o poeta

Que a chama divina

Que o orbe ilumina

Na fronte encerrou!


— Meu Deus! ao prec ito

Sem crenças na vida,

Sem pátria queridam

Só resta tombar!

Mas... quem uma prece

No campo do escravo

Que outrora foi bravo

Triste há de rezar?!...


— Quem há-de?... o poeta

Que a lousa obscura

Uma lágrima pura

Vai sempre orvalhar!?

sábado, 22 de novembro de 2025

Heitor Villa-Lobos – Cantilena: Um canto que saiu das senzalas

O Rei mandou me chamá
O Rei mandou me chamá,
P'ra casar com sua fia
Só de dóte ele me dava
Só de dóte ele me dava
Óró pa França Baia 
Me alembrei do meu ranchinho,
Da róça do meu feijão
O Rei mandou me chamá
Ai! Seu Rei não quero não.
Ai! Seu Rei não quero não.

O Rei mandou me chamar,
pra casar com sua filha.
Só de dote ele me dava,
Europa, França e Bahia.

Me lembrei do meu ranchinho,
da roça, do meu feijão.
O Rei mandou me chamar.
Ó seu Rei, não quero não.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

O CRUCIFIXO - Manuel Bandeira

É um crucifixo de marfim
Ligeiramente amarelado,
Pátina do tempo escoado.
Sempre o vi patinado assim.

Mãe, irmã, pai meus estreitado
Tiveram-no ao chegar o fim.
Hoje, em meu quarto colocado,
Ei-lo velando sobre mim.

E quando se cumprir aquele
Instante, que tardando vai,
De eu deixar esta vida, quero

Morrer agarrado com ele.
Talvez me salve. Como — espero —
Minha mãe, minha irmã, meu pai.

Teresópolis, março de 1966

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Explorando Segredos & Mistérios - A RESSACA DA GUERRA


No fim de toda batalha, não é o sangue no chão que mais pesa.

É o silêncio depois do grito.


A ressaca da guerra chega como um frio que atravessa a armadura,

um vazio que raspa por dentro

e sussurra que alguma parte de você ficou no campo. Caída, esquecida, morta.


Mas o que mais dilacera não é perder algo.

É perder a ilusão.

Aquela mentira doce que você embalou como verdade,

a esperança que você aqueceu no peito

como se fosse fogo real.


Porque quando a guerra vai embora, você sente falta da luta.

Mas quando a ilusão cai, você sente falta de você mesmo.


É um luto mais profundo, mais cruel.

É a morte de uma história que nunca existiu,

mas que você viveu com toda força.


E é por isso que dói tanto agora.

Porque a guerra que você travou não foi contra monstros de ferro,

nem contra exércitos inimigos.

Foi contra as sombras dentro do seu próprio peito.


E sobreviver a isso… mais um dia.

é a vitória mais amarga de todas.


Mas também é a única vitória que realmente te liberta.


domingo, 26 de outubro de 2025

O Brasil (descrição física e política) - Millôr Fernandes

O Brasil é um país maior do que os menores e menor do que os maiores. É um país grande, porque, medida sua extensão, verifica-se que não é pequeno. Divide-se em três zonas climatéricas absolutamente distintas: a primeira, a segunda e a terceira. Sendo que a segunda fica entre a primeira e a terceira. Há muitas diferenças entre as várias regiões geográficas do país, mas a mais importante é a principal. Na agricultura faz-se exclusivamente o cultivo de produtos vegetais, enquanto a pecuária especializa-se na criação de gado. A população é toda baseada no elemento humano, sendo que as pessoas não nascidas no país são, sem exceção, estrangeiras. Tão privilegiada é hoje, enfim, a situação do país que os cientistas procuram apenas descobrir o que não está descoberto, deixando para a indústria tudo o que já foi aprovado como industrializável e para o comércio tudo o que é vendável. É, enfim, o país do futuro, e este se aproxima a cada dia que passa. 

terça-feira, 7 de outubro de 2025

A Árvore Envenenada - William Blake

Sentia raiva de um companheiro
Confessei o ódio, o ódio se foi inteiro
Sentia raiva de um inimigo
Fiquei calado, o ódio vi crescido.

E o reguei de alma sombria
Com meu pranto noite e dia
E escondido sob sorrisos gentis
E com corteses, enganosos ardis.

E cresceu noite e manhã
Até florescer luzente maçã
Ao ver o brilho que ela tinha
O inimigo sabia que era minha

E foi ao meu jardim roubar
Quando a noite velou o pomar
Bem cedo vi, com agrado
O inimigo sob a árvore estirado

domingo, 28 de setembro de 2025

Odisseia de Homero: canto 9 em que o herói Odisseu se denomina "Ninguém" - Trajano Vieira

"Odisseu na caverna de Polifemo", pintura do artista flamengo Jacob Jordaens, feita por volta de 1635

Uma questão interessante sobre os heróis gregos diz respeito ao perfil de Odisseu. Melhor dizendo, por que Homero imagina um único herói com esse perfil caracterizado sobretudo pela astúcia? Esta é uma questão que me parece interessante. Poderíamos imaginar alguns outros heróis, não é, eh dotados eh desta capacidade eh de improvisar, de eh superar os os percalços por uma uma inteligência astuciosa.

No entanto, nós temos um personagem e esse personagem é o Odisseu. É, os demais, todos eles, de um modo ou de outro, se qualificam pela bravura, como vocês sabem, pelo destemor, pelo respeito ao código militar de maneira inflexível. E o exemplo evidente maior disso é Aquiles.

A questão é interessante porque ela nos abre a possibilidade de imaginarmos esse personagem como um personagem que coloca questões culturais e de fundamento até filosófico que tem a ver com eh aspectos que eh terão grandes consequências ao longo da tradição grega. É um herói problemático pelo que ele tem de inventivo. A invenção é um traço de Odisseu e a invenção sem limite.

Ele se coloca diante das situações justamente para testar a sua capacidade de reimaginar e de se reimaginar em cada uma daquelas cenas, não é, que nós conhecemos. E a uma das mais importantes para a caracterização do herói me parece ser justamente o encontro dele com Polifemo, a cena em que ele se denomina justamente ninguém. Ao se chamar de ninguém, ele efetivamente eh abre uma possibilidade de imaginarmos este personagem como uma catálise do anonimato, o sentido da não da não denominação.

E eu leio apenas esses breves versos da Odisseia para que vocês entendam o que eu quero dizer. Eu me refiro ao encontro eh famoso, encontro de Odisseu com Polifemo no canto em que ele justamente para se manter incógnito se denomina ninguém. E ele diz o seguinte, os versos mais ou menos 367 seguintes do canto nono:

Ninguém me denomino,

minha mãe, meu pai, sócios.

Não há quem não me chame de ninguém.

Realmente é prodigioso se vocês fizerem uma uma análise, digamos, de caráter psicanalítico, o sentido de alguém se denominar, não alguém. Eh, e toda essa questão também filosófica e implicada neste neste tema, não é, da rasura do sujeito de vocês, eh, construírem uma persona incógnita diante da ação. É evidente que toda uma temática, toda uma tradição de pensamento ocidental se constrói a partir de cenas como esta que vocês têm no canto nono da Odisseia.

sábado, 20 de setembro de 2025

A Chegada, filme baseado na obra de Ted Chiang - por João Carvalho


Eu gosto do conto (História da Sua Vida), na verdade, acho que ele é infinitamente melhor que o filme.

O filme é aquela coisa, como todo filme hollywoodiano, que precisa se tornar mais palatável no final. Eles acabam "embrutecendo" um conto que é muito melhor do que o filme foi feito. Mas, apesar disso, eu gosto muito de "A Chegada", o conto, e considero o filme uma adaptação tolerável da beleza da história original.

A ideia central do conto é trabalhar com as últimas consequências do determinismo linguístico. O ponto é que, uma vez que você aprende aquela "língua alienígena", você consegue entender todo o caminho de uma vida inteira.

Dando um spoiler de um filme de 250 anos atrás, e de um conto ainda mais antigo, o conto de "A Chegada" começa com a morte da filha da mulher que traduziu a língua. Em seguida, a história recompõe toda a vida dela. No final, descobrimos que, ao aprender a língua, ela soube que teria uma filha, que o casamento não daria certo e que a filha morreria cedo. Mesmo assim, ela achou que tudo valia a pena, que as experiências vividas eram importantes.

Então, é esse o determinismo linguístico que o conto explora. É uma das correntes da linguística que pensa: "Até que ponto somos moldados pela língua que falamos? Ou até que ponto a língua pode ser uma barreira para o nosso pensamento?". Há toda uma corrente que defende que, no momento em que eu falo uma determinada língua, fico preso a certos padrões ou concepções de pensamento.

Vou dar um exemplo: no grego antigo, havia um modo verbal inteiro, com todos os seus tempos, só para a narrativa. Os gregos gostavam de contar histórias porque eles tinham o aoristo, ou eles criaram o aoristo porque gostavam de contar histórias? Existe uma corrente na linguística que diz que o aoristo surge e, a partir desse momento, os gregos se tornam um povo de contadores de histórias, de aedos e de rapsodos.

"A Chegada" brinca muito com essa questão do determinismo linguístico. É um conto maravilhosamente bem escrito, exatamente pela forma como ele se desenvolve. Não tem "água com açúcar" no final. Não tem aquele momento em que sete pessoas no mesmo lugar do mundo conversam sobre o mesmo tema. O conto tem quase que uma viagem temporal, com a protagonista sabendo o que vai acontecer. E aí você pensa: "Mas dois minutos atrás ela sabia a porcaria da língua, e agora ela não sabe o que está fazendo?".

Esse final hollywoodiano do filme é brutalmente desnecessário. Apesar disso, é um conto muito bom. E por que estamos falando sobre isso? Porque eu lancei recentemente um vídeo no canal onde eu falo de exobiologia e de genolinguística e estipulo algumas coisas, porque eu gosto muito de ficção científica. No início desse vídeo, eu me peguei pensando: "Onde ele está chegando? Não tem lógica isso aqui". Mas tem uma lógica. Quando você começa a falar de pressão, a pessoa se pergunta: "Imagine você num planeta que a pressão é tal...". Eu não consigo imaginar, João. E é exatamente isso! Aquilo tudo era para chegar, no final, à impossibilidade do desejo pela penetração anal de um alienígena de uma zona não temperada de planetas. Se ele for um alienígena de uma zona de proximidade solar ou polar maior do que a nossa, a tendência é que ele não tenha desejo por penetração anal para viajar o cosmo atrás de "comer um fazendeiro do Kansas", que foi a pergunta que me fizeram.

Então, eu pensei: "Isso aqui é um canal de ciência, vamos estudar isso aqui para a gente chegar à conclusão". Ironicamente, quando vemos "A Chegada", estamos falando de seres de simetria radial. Não sei se vocês notaram isso nos alienígenas, o Abbott e o Costello. Eles são seres de simetria radial, e maiores do que a gente. Isso é muito controverso. Até que ponto seres com um exoesqueleto tão duro, que se alimentam de forma tão lenta — ou seja, têm uma abertura no exoesqueleto para se alimentar —, teriam a capacidade de ter um tamanho tão grande? Eles deveriam ser menores por causa da pressão do planeta deles. Esse tipo de bobagem não tem no conto.

Eu fico bravo com essas coisas. Mas, apesar disso, "A Chegada" é uma adaptação tolerável. É tolerável. É uma porcaria falar "tolerável"? Não, mas é porque o conto é muito melhor.

Qualquer livro que você lê vai ser melhor? Não, nem sempre. Vou dar um exemplo de outro filme hollywoodiano que não é exatamente de ficção científica, "Perdido em Marte", com o Matt Damon. Qual a grande diferença do livro para o filme? Uma cena, a cena final dele dando aula na faculdade, aquela cena "esses garotos, esses jovens", que é 100% desnecessária e não existe no livro. O livro termina com ele sendo salvo, fedendo, a galera mandando ele tomar um banho e é isso. Ninguém sabe o que acontece depois. É um final muito mais justo para tudo que ele passou.

O que o Cuarón faz em "Gravidade", por exemplo? Só ela cair na Terra, colocar a mão na terra, conseguir chegar e pronto. O filme acaba ali.

Então, eu gosto mais quando isso não acontece. Às vezes, a galera tem essa necessidade. Quando o roteirista se resume a fazer isso só no fim, eu ainda tolero. Mas quando ele começa a desmontar a estrutura narrativa do conto, que era toda baseada no determinismo, e a graça estava nisso, para colocar outras coisas e, no final, ter um momento de resolução tão "burro" que você não consegue lembrar se a pessoa sabe ou não o que ela sabe... aí para mim é doloroso.
A minha relação com "A Chegada" é o oposto da minha com "Death Note", que eu acho a adaptação muito melhor que aquele mangá chato para caramba.

Mas isso é uma questão. Eu não vejo problema em adaptar uma obra ignorando o original. Não sou purista ao ponto de dizer que você deve adaptar a obra exatamente como é o original. Você tem todo o direito de ter a liberdade de adaptação, desde que ela faça sentido lógico para uma criança de seis anos. Esse é o meu ponto.

No caso de "Perdido em Marte", ele optou por ser fiel e, no final, resolveu fazer aquela cena, e estragou. Estragou porque escolheu fazer aquilo no final. Mas eu nem acho que estragou tanto, porque é óbvio que ele não conseguiria recontar o livro inteiro. Ele teria que optar por um momento em detrimento do outro, passar mais rápido por algo que no livro era maior. Faz sentido. No final, algum executivo chegou e falou: "Sabe o que seria massa?". É uma necessidade hollywoodiana de finalizar.

Para mim, quando o filme termina e o cara bota essa cena depois, pelo menos eu aprendi em aula de roteiro que a história do cara termina quando ele é resgatado. O que você conta depois é chamado de coda, que é só para "fazer um carinho" no fã: "Olha como a vida dele continua, ele vira um professor de faculdade". Mas isso nem me incomoda tanto. Me incomoda muito mais quando os caras tentam ser mais inteligentes que o autor e falham miseravelmente.

Porque existe uma lógica de pensar nesse "Perdido em Marte", por exemplo. É uma coisa bem estadunidense de mostrar o sucesso, o mérito, a família. Inclusive, o próximo livro dele, "Projeto Hail Mary", está para ser adaptado no próximo ano, e o livro é espetacular. Eles não vão conseguir colocar uma coisa bonita no final.