segunda-feira, 15 de setembro de 2025

A DESUMANIZAÇÃO DO HOMEM - Mário Ferreira dos Santos


Trecho retirado de A Revolta Vertical dos Bárbaros

Não é a primeira vez que surge na história a tendência a colocar o homem numa situação secundária, a hipovalorizá-lo, a virtualizar a sua significação, ao mesmo tempo que se valorizam as coisas. O que assistimos hoje não é algo sem paralelo na história. Assim aconteceu muitas vezes, e provocou as mesmas ênfases opositivas e as mesmas reviravoltas na maneira de o homem apreciar a si mesmo.

Desde o Renascimento nota-se que, ao lado de uma humanização pretendida na cultura, deu-se uma constante desumanização do homem, à proporção que a economia feudal passava a ser superada pela economia mercantil, industrial e financeira, em que as cifras passaram a ser o sinal timológico principal e que os valores monetários móveis passaram a significar a posse do kratos social mais elevado.* Desde então a quantidade começou a predominar sobre a qualidade, o quantitativo passou a superar o qualitativo. A maquinaria, o desenvolvimento técnico, a perda de significação econômica do artesanato, o proletariado industrial, as grandes empresas, as unidades econômicas poderosas e monopolizadoras, a perda da significação humana acompanham paralelamente, provocando as naturais reações, porque a história humana é sempre o campo de uma luta antinômica entre o positivo e o negativo, entre o quantitativo e o qualitativo, entre o sagrado e o profano, entre, em suma, os valores positivos e os opositivos, com as sedimentações viciosas intercalares entre eles. Não se quer dizer que tais acontecimentos avassalem totalmente o âmbito social, mas apenas que eles se tornam predominantes numa camada atuante da sociedade, a quem cabe um papel de orientá-la também. É inegável que as mais altas personalidades, as cerebrações mais enérgicas não pactuam com essa desumanização. Sem dúvida que os apóstolos da desumanidade são sempre os mais deficientes, mas, também, de uma atividade perigosíssima e capazes de dominar vastos setores sociais, encontrando sempre adeptos dóceis aos seus ensinamentos.

A ênfase que se deu em nossos dias aos estudos axiológicos é um sinal da reação à excessiva desumanização do homem no século dos grandes desumanizadores: Lênin, Stálin, Hitler, Mussolini e outras figuras menores, e uma sequela de intelectuais equívocos, que contribuem com o ludíbrio da sua inteligência fantasmagórica para trabalhar em favor dessa desumanização, que a técnica poderosa, a desintegração atômica, as conquistas científicas, a megatérica construção de um poderio econômico e militar, que é um Moloc a devorar vidas e a ameaçar a destruição final, cooperam para que essa desumanização cresça.

O artista, que é quase sempre um brincalhão com coisas sérias, também contribui ludicamente para a desumanização na arte, que se torna quantitativista, e também uma plêiade de pseudossábios, de mentes de inteligência postiça põem-se a cooperar pelo cibernetismo da inteligência, a ponto de se convencerem de que o homem já não precisa do homem, e pode ser um troço vivo, capaz de gozar dos estupefacientes deliciosos, que o seu falso progresso oferece.

Eis um campo bem vasto para investigar na história de todos os povos e nos dias que correm, que é algo que nos aponta sinistros sinais de um niilismo avassalador. Todos anunciam o naufrágio, esses são-joões-batistas da catástrofe... É mister denunciá-los e combatê-los.


*O autor retoma a etimologia utilizada em seções anteriores desta obra, valendo-se de kratos, na acepção de poder (A Superioridade da Força sobre o Direito), e relacionando timológico com thymos, radical de estimar, com o mesmo valor de estimativa, pois designa um tipo de mesura mais superficial do que o axiós (Exploração Viciosa do Esporte), que estaria na raiz mesma da formação dos valores (axiologia), concepção que será desenvolvida no parágrafo seguinte. (N. E.)

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Oxum é transformada de pavão em abutre - Reginaldo Prandi


Nos primeiros tempos do mundo, aconteceu uma rebelião dos Orixás contra Olodumaré. Achando que o Senhor Supremo vivia muito longe de tudo, dividindo entre eles mesmos todo o poder do axé, pensando em até mesmo destronar Olodumaré.

Quando a noticia da conspiração chegou aos ouvidos de Olorum, sua reação foi simples e imediata: retirou a chuva da terra e a prendeu no céu. Não tardou para que aiê fosse atormentado por terrível seca. com a seca veio a fome e com a fome veio a morte.

Os homens começaram a morrer. Logo o ronco das barrigas e a palidez das faces começaram a falar mais alto que o orgulho dos rebeldes e seus planos de levante. Unanimemente os Orixás decidiram ir a Olodumaré implorar por perdão, esperando que a chuva caísse de novo e que tudo o mais na Terra voltasse ao normal.

Mas eles tinham um problema: como chegar a inalcançável e distante casa do Senhor Supremo? Enviaram todas as espécies de pássaros, que voavam para o céu até o total esgotamento, sem sequer se aproximar da casa de Olodumaré. As esperanças já se diluíam em tanto fracasso. A seca e a fome devastavam a Terra e seus habitantes.

Foi quando Oxum resolveu intervir. Transformada em um belíssimo pavão ela se prontificou a ir até Olodumaré. Um tremor de gargalhadas sacudiu a Terra. Como aquela criatura pretendia voar até o inalcançável? Justamente aquela mimada, vaidosa e fútil ave! "Vais acabar te machucando, gracinha", riam os Orixás.

Mas como nada tinham a perder, aceitaram. E lá se foi Oxum-pavão seguindo em direção ao sol, voando ás alturas do Orum em busca do Palácio do Senhor. Voando mais alto e mais alto, a ave perdia as forças, mas não desanimava de sua inquebrantável determinação.

O sol foi enegrecendo suas penas, muitas se queimaram. As penas da cabeça ficaram ressequidas e quebradiças; o pavão tinha queimadura pelo corpo todo, seu estado era miserável. Mas lá ia Oxum voando em direção ao sol.

Quase morta, chegou ás portas do palácio de Olodumaré. Olodumaré se compadeceu da pobre criatura. Acolheu-a, deu-lhe água e a alimentou. Por que fizera tão impossível jornada perguntou ao pavão, que de pavão perdera toda a graça e beleza. agora era uma ave feia, careca e de penas queimadas á qual, quando ela voltou, chamaram de abutre.

Fizera o sacrifício pelas suas crianças, a humanidade, ela explicou ao Ser Supremo. Olodumaré, penalizado com a pobre ave, deu -lhe a chuva para que ela a devolvesse a Terra. E nomeou o abutre mensageiro seu, pois só ele vence a inalcançável distância em que está Olodumaré.

O abutre então voltou a Terra trazendo a chuva. Oxum-abutre trouxe a chuva de volta e com ela a fertilidade do solo e os alimentos. E graças a Oxum a humanidade não pereceu.

domingo, 31 de agosto de 2025

TROIA X ILÍADA: Como Hollywood cria consenso e MUDA obras históricas pra conduzir SUA OPINIÃO - Patrick Silva

Análise e Divisão do Texto

O texto, que trata das diferenças entre o filme Troia e a obra original, a Ilíada de Homero, pode ser dividido em parágrafos temáticos para facilitar a leitura e a compreensão partindo do vídeo de mesmo nome do canal Patrick Silva em lógica própria.

Apresentação e Tema Central

Não é de hoje que filmes que retratam algum período histórico ou se inspiram em alguma obra literária mudam algo ou tudo da fonte

 inspiradora, deixando às vezes só o nome mesmo. Um grande exemplo disso é o filme Troia.

Não é surpresa para ninguém que o roteiro do filme modificou bastante a história que o inspirou, e estamos falando da Ilíada de Homero. Porém, hoje eu vou mostrar para vocês que essas modificações são muito mais sérias do que vocês podem imaginar. E não apenas isso, essas modificações bebem muito da Revolução Francesa e de movimentos progressistas modernos como o feminismo, por exemplo. Mais do que isso, quero mostrar para vocês, usando o filme Troia como exemplo máximo, como a cultura moderna nos influencia a pensar de determinadas formas, criando consenso por meio de influência no imaginário de todos, ou pelo menos quase todos. E hoje em dia, até o fim do vídeo, você vai entender do que eu estou falando.

A importância de Homero e da Ilíada para o Ocidente

The Procession of the Trojan Horse in Troy by Giovanni Domenico Tiepolo  (1727–1804)

A primeira coisa que temos que entender é o que representava e ainda representa Homero e a obra Ilíada para todo o ocidente. Homero foi um poeta grego que nasceu em aproximadamente 928 a.C., mas de cara eu já tenho que fazer uma ponderação: acho que "poeta" não resume bem o que foi Homero. Podemos considerá-lo meio que um fundador de uma cultura, consequentemente um dos maiores influenciadores da civilização ocidental.

Para vocês terem uma ideia de quem foi Homero, Dante Alighieri, outro poeta (para muitos o maior poeta de todos os tempos), autor da Divina Comédia (que também para muitos é a maior obra de todos os tempos), ao encontrar Homero no Limbo, um dos níveis do inferno, diz o seguinte: “Com a espada na mão, olha o decano, é Homero, o poeta soberano”.

Otto Maria Carpeaux, um crítico literário, em sua obra majestosa A História da Literatura Ocidental (CARPEAUX, Otto Maria. 3. ed. -- Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. 4 v. [Edições do Senado Federal; v. 107-A], p. 46), diz o seguinte: “Nenhum autor clássico alcançou jamais fama tão indiscutida. Tornou-se um sinônimo de poeta. Essa glória é em grande parte o resultado de inúmeros esforços malogrados de imitá-lo. Será difícil enumerar as epopeias modernas que se escreveram para rivalizar com Homero, e o fracasso manifesto de todos os imitadores fortaleceu unanimemente a opinião: Homero é o maior dos poetas”.

Os gregos antigos consentiram, mas por outros motivos, porque nunca, senão nas últimas fases da decadência literária, um poeta grego pensou em imitar Homero. As epopeias homéricas eram consideradas como cânone fixo, ao qual não era lícito acrescentar outras epopeias de origem mais moderna. A Ilíada e a Odisseia eram usadas nas escolas gregas como livros didáticos, não da maneira como nós outros fazemos, ler aos meninos algumas grandes obras de poesia para educar o gosto literário, mas sim da maneira como se aprende de cor um catecismo.

Para os antigos, Homero não era uma obra literária, leitura obrigatória dos estudantes e objeto de discussão crítica entre os homens de letras na antiguidade. Também, assim como nos tempos modernos, Homero era indiscutido. Não mais como uma epopeia, e sim como a Bíblia. Era um código. Versos de Homero serviam para apoiar opiniões literárias, teses filosóficas, sentimentos religiosos, sentenças de tribunais, moções políticas. Versos de Homero citaram-se nos discursos dos advogados e estadistas como argumentos irrefutáveis. Homero, isso significava tradição no sentido em que a igreja romana emprega a palavra como norma de interpretação da doutrina e da vida.

A importância de Homero para toda a cultura grega não pode ser descrita. É como se tentássemos descrever a importância do sol para o pôr do sol. Não é que ele é importante, ele é a base de tudo o que vemos ali naquele cenário.

Os poemas de Homero são tão bem elaborados, com tamanha complexidade, seja por causa do tamanho somado à harmonia, seja por causa das personalidades complexas (pelo menos para a época) e opostas de seus personagens, que não são poucos em nenhum dos poemas, que durante muito tempo houve um questionamento enorme se aqueles poemas formam mesmo uma só obra e se tinham sido escritos pela mesma pessoa. O maior contestador de todos foi Friedrich August Wolf. Ele apontou determinadas contradições entre Ilíada e Odisseia, principalmente por causa do estilo. Alguns concordam com ele, outros apoiam a unidade da obra de Homero. Esse problema não está completamente resolvido até hoje.

Mas quando foram encontradas as ruínas da cidade de Troia na Ásia menor, e quando indícios de uma civilização pré-helênica surgiram em Micenas e Creta, a ideia de uma unidade da obra de Homero ganhou muita força, e para a maioria dos estudiosos, essa é a versão que prevalece.

Werner Jaeger, um historiador que possui várias obras sobre a cultura grega antiga, ressalta em seu livro Paidéia como as obras de Homero foram importantes exemplos pedagógicos de virtude, heroísmo e sabedoria para todos os gregos. Ele fez uma análise de Homero como educador. E para isso ele invoca Platão.

Conta Platão que era opinião geral no seu tempo ter sido Homero o educador de toda a Grécia. Desde então, a sua influência estendeu-se muito além das fronteiras da Hélade. Nem a apaixonada crítica filosófica de Platão conseguiu abalar o seu domínio quando buscou limitar o influxo e o valor pedagógico de toda a poesia. Verner nos mostra como Platão, mesmo com críticas enormes à poesia de Homero e suas consequências para a formação dos gregos, reconheceu que o "poeta soberano" foi educador de todo um povo, sendo sua influência até difícil de mensurar. Influência essa que para Platão ora era boa, mas em maior parte era ruim.

E uma curiosidade: Homero escreveu essas obras de tanta relevância e, pelo que se sabe, morreu aos 30 anos de idade.

Por essa pequena amostra, já deu para entender e perceber o peso que Homero teve e como uma simples modificação em sua obra faria uma enorme diferença no significado dela, na mensagem a ser transmitida. E aqui entramos no filme Troia.

O Filme: Troia

Cavalo de Troia usado no filme Troia - Próximo ao Hotel Akol - Çanakkale

O filme foi dirigido por Wolfgang Petersen, roteirizado por David Benioff, com um elenco estrelado contando com Brad Pitt, Eric Bana, Orlando Bloom, Diane Kruger, Brian Cox, Sean Bean, entre outros. Contou com um orçamento exorbitante para a época, que teve uma bilheteria razoável, pagando os custos do filme, mas sem grandes lucros. No IMDb, a nota dele é 7,3 e no Rotten Tomatoes, a crítica foi bem dividida.

Muitos críticos reclamaram das adaptações feitas na história original, afirmando em muitos casos que as motivações dos personagens e o desenrolar da história não foram convincentes. E nesse ponto, temos a primeira grande diferença da obra de Homero para o filme: no poema, o papel dos deuses gregos não é somente importante, ele é providencial. Em vários momentos, a trama anda por causa das ações diretas dos deuses gregos. E quando isso foi transposto para o roteiro do filme, essas ações não eram compatíveis com as motivações dos personagens.

Para exemplificar, vamos por partes. O filme começa com uma cena de batalha. Basicamente, existe ali uma trama para nos mostrar a personalidade e as habilidades de Aquiles, e já para trabalhar a desavença que existe entre ele e Agamenon. Só que essa cena não existe no livro. O livro, na verdade, começa muito mais para a frente, no cerco que os gregos fizeram em Troia, que a essa altura já durava mais de nove anos.

No filme, após esta batalha que apresenta Aquiles e sua habilidade de luta, já corta para uma comemoração de acordo de paz entre Troia e Esparta, onde Páris acaba se envolvendo com Helena. Helena abandona Troia e Menelau, seu marido, para fugir com Páris. Isto, no filme. No livro, Helena não abandona apenas o seu marido, ela também tem uma filha. Ela abandona sua família para fugir com Páris.

E aqui começamos a perceber um posicionamento nítido que o roteirista e diretor têm com relação à antiguidade: eles amenizam o erro de Helena, não só removendo a filha da história, mas colocando Menelau como um homem muito mais velho e com, digamos, um capital estético nada atrativo. O que é completamente contraditório à história do poema. No início do poema, naquela cena da batalha à frente das muralhas, que no filme está mais para frente, na frente de Troia, Príamo olha para o exército grego e descreve vários guerreiros que chamam sua atenção. Ao descrever Ulisses ou Odisseu, ressaltando suas qualidades físicas, eles o comparam a Menelau, considerando-os muito parecidos, sendo um de pé mais imponente e o outro quando sentado o superando.

Agora vejam a descrição que Príamo faz de Agamenon, o rei da Grécia e irmão de Menelau:

Vem revelar-me quem seja aquele homem de aspecto imponente;

como se chama esse Acaio tão belo e de tal corpulência?

Outros heróis é evidente mais altos do que ele percebo;

mas os meus olhos jamais admiraram tão belo conspecto

nem majestade tão grande; assemelha-se é facto a um monarca.

E Helena responde:

Sinto por ti caro sogro respeito e vergonha a um só tempo.

Bem melhor fora se a Morte terrível me houvesse levado

antes de haver consentido em seguir o teu filho deixando

o lar e o esposo minha única filha e as gentis companheiras.

Mas não devia assim ser; essa a causa de todo o meu choro.

Ora te vou responder a respeito do que perguntaste.

Esse é Agamémnon rei poderoso de Atreu descendente

tão grande rei chefe de homens quão forte e notável guerreiro.

Foi meu cunhado se o foi algum dia com minha cegueira!

Agora fica a dúvida: por que modificaram tanto a aparência dos reis e amenizaram tanto os erros de Helena?

A Influência de Ideologias Modernas na Representação dos Personagens

Bom, é aqui que entrelaçamos nessa conversa o feminismo e a Revolução Francesa. Para não estender demais, porque só esse tema com certeza dá uma série de vídeos, a Revolução Francesa, em resumo, concentrou quase todo o seu esforço em destruir a imagem de um bom monarca. A ideia antiga de um monarca virtuoso que todos consideram digno do trono e por isso mesmo ele governa de forma única, foi bombardeada nessa época. Vários reis foram condenados à morte, e desde então, um grande espectro da nossa sociedade considera a Revolução Francesa uma das melhores coisas que já aconteceram na história da humanidade.

Trabalhar culturalmente um rei sendo uma figura preguiçosa, exploradora, tirana, desumana, se tornou praticamente normal. Pensa comigo: com qual frequência você vê filmes que representam reis como uma figura positiva? Qual foi a última vez que você viu um Aragorn na tela? Isso é muito raro. O que mais nós vemos são reis sempre sendo tratados com características extremamente negativas. Não estou dizendo que eles não existiram. Tivemos sim muitos reis péssimos, verdadeiros tiranos ao longo da história, mas a verdade é que o reinado dos tiranos normalmente era muito curto.

Pensa comigo novamente: se a maioria da população odiasse um rei, o que acontece com os tiranos? Havia muita dificuldade para chegar até ele? Claro que não. O poder bélico de um rei, principalmente na antiguidade, era de espadas e escudos, uma guarda real de algumas dezenas de homens, no máximo centenas. Isso não chega nem perto da diferença de armamento que um cidadão comum tem acesso e um governante tem acesso nos dias de hoje. Mesmo em países que as armas são vendidas com muita facilidade, o governo possui armas nucleares, possui tanques, mísseis, todo o aparato militar pronto para obedecer e conter qualquer revolta popular mais rápido do que ela poderia crescer. E eu nem vou falar do caso do Brasil, onde ter uma arma é uma jornada quase que impossível ou inviável financeiramente. O poder do estado de repressão hoje é infinitamente maior do que esses reis tinham na antiguidade. E sem contar o poder de fiscalizar e punir alguém por meio de tecnologia, meios repressivos que nem os maiores tiranos da história sonhariam em ter.

Então, como foi possível na nossa história ter a monarquia como a forma de governo mais comum durante mais tempo? Como o monarca fazia para que as pessoas obedecessem? O que fazia com que um rei pudesse governar? É que a maioria da população o considerava o mais apto para o cargo. Monarcas na maioria das vezes eram elevados a esse cargo pela própria população ou mesmo treinados em suas famílias para desenvolver as virtudes necessárias para tamanha responsabilidade na sociedade. E quando dava errado, já sabemos o fim. Nero, por exemplo, teve um reinado de 12 anos, morreu aos 30 anos de idade. Júlio César tinha discordância dos seus adversários políticos e foi assassinado com pouco mais de cinco anos de governo. Calígula, outro imperador romano considerado mais cruel de todos, não passou dos 30 anos.

E veja bem, não estou dizendo que não houve tiranos que conseguiram ficar por mais tempo no comando, mas percebam que nos últimos séculos, justamente por causa do avanço bélico e tecnológico, os tiranos conseguiram passar muito mais tempo em seus postos, se protegendo de forma muito mais eficiente e atingindo uma quantidade muito maior de pessoas com a sua crueldade. E também não estou aqui fazendo nenhum tipo de apologia à monarquia. Eu não faço apologia de sistema de governo nenhum. Todos têm lados bons e lados ruins.

Para vocês terem uma ideia de como era ter um trono nessa época da Grécia antiga, em seu outro livro, Odisseia, Homero descreve a jornada heróica que Odisseu, ou Ulisses, rei de Ítaca, fez para voltar para casa. Mas ao chegar em Ítaca, como já havia 20 anos de sua partida, já haviam vários pretendentes a marido de sua esposa, Penélope. E não bastou somente chegar e dar uma ordem para todo mundo ir embora. Se fizesse isso, eles o matariam. Odisseu teve que planejar cuidadosamente escondido e ainda exterminar todos. As coisas não funcionavam como o filme tenta mostrar. Reis não são obedecidos automaticamente e servilmente no cenário da Hélade. Ou o rei conquista o trono sendo merecedor dele, ou o tiram de lá. Agora, para Menelau e Agamenon do filme, quantos homens precisam para tirar os dois de seus tronos? Chega a ser uma piada. Isso é só olhar.

E temos um segundo ponto de análise: por que amenizar tanto o erro de Helena? Por que criar esse cenário em que nós quase concordamos com ela ao trair, enganar o marido e fugir com um amante? Aí entra um problema da nossa cultura moderna. Da mesma forma como temos dificuldade em ver homens sendo representados com virtudes, líderes e solucionadores de problemas, é muito difícil ver uma mulher como vilã.

O filme trabalha uma ideia que hoje ela é quase unânime: que as mulheres de algum tempo atrás quase sempre se casavam obrigadas, com homens repulsivos, muito mais velhos que elas, e viviam infelizes por incapacidade de escolher. Claro, isso existia. Agora, observa o que temos hoje: mulheres possuem tanta liberdade de poder trabalhar e conquistar sua liberdade financeira quanto a liberdade para escolher seus cônjuges. No entanto, a cada ano que passa, batemos recorde de divórcio, quase sempre iniciado por mulheres. "Mas, Patrick, elas estão fazendo isso justamente para não precisarem mais ficar em um casamento forçado, dependendo do marido para buscarem a felicidade". Então, nós temos que concordar que não está dando certo. Na mesma proporção em que cresce o número de divórcio, cresce o número de mulheres com ansiedade e depressão.

E aqui mais uma adendo: eu não estou dizendo que o divórcio é a causa da ansiedade e da depressão, estou apenas constatando um fato: nunca houve tanto divórcio e as mulheres nunca tiveram tanta liberdade de escolha, e nós nunca tivemos tanto caso de depressão e ansiedade entre mulheres.

O que mais temos na história do cinema são filmes famosíssimos que abordam esse tema do casamento forçado. E eu acho que o assunto é muito mais complexo do que isso.

Voltando ao filme, há trechos e diálogos explícitos de como ela era infeliz em Esparta, de como ela passou a ter vida somente com Páris: “Antes de você vir a Esparta, eu era um fantasma. Eu andava, comia e nadava no mar, mas era só um fantasma. Esparta nunca foi a minha casa. Meus pais me mandaram para lá quando eu tinha 16 anos para me casar com Menelau, mas nunca foi minha casa”. E o livro trata de forma bem diferente. Veja esse trecho do canto três:

Na alma as palavras da deusa infundiram-lhe doce saudade

do seu primeiro marido dos pais e da pátria grandiosa.

Ei-la que o rosto recobre com o nítido véu apressada

e a derramar ternas lágrimas sai do aposento luxuoso

Helena no poema sente saudade do marido, reconhecendo isso várias vezes. A questão é que no livro a ida dela pra Troia é tratada como uma mescla entre sequestro e sedução de Páris, mas auxiliado por Afrodite, deusa do amor, da beleza e do desejo.

A Ausência dos Deuses e a Deturpação da Visão Antiga

E aqui nós entramos num dos maiores motivos da dificuldade de adaptação da obra: tanto o roteirista como o diretor queriam remover todo esse peso que a religiosidade grega tinha no poema. Várias vezes os deuses interferem diretamente nos acontecimentos, e eles tiveram que fazer adaptações nas motivações, tentando fazer com que as coisas fizessem sentido, mas nem sempre eles conseguiram. Páris, por exemplo, na luta contra Menelau, ele não foge, ele é resgatado por Afrodite, que o leva direto pro seu quarto em segurança. Outro exemplo é na luta entre Heitor e Aquiles. Heitor estava fugindo de Aquiles no livro, correndo ao redor da cidade. A deusa Atena disfarçada engana Heitor e diz que vai ajudá-lo a enfrentar Aquiles. Só assim ele aceita o desafio, tendo o mesmo desfecho do filme. Essa luta, aliás, é bem mais épica e marcante no filme do que no livro. Nós temos aqui que concordar, né?

A verdade é que eles não só removeram a parte religiosa da Ilíada, eles a ridicularizaram. Sempre que os troianos precisavam tomar decisões, quando as decisões não eram pautadas por sinais recebidos dos deuses, eles tomavam as decisões erradas. Outra coisa bem marcante é que eles ridicularizavam a velhice, tratando os sacerdotes como antiquados e supersticiosos. É claro que essa não é a visão de Homero. Na verdade, essa não é a visão de nenhum dos grandes nomes da Grécia. Tanto Platão como Aristóteles tratavam a juventude normalmente ligada com imprudência e impulsividade, e ligavam sempre a maturidade e idade avançada como sabedoria e prudência, salvas exceções, e eu sei que elas existem, é bem difícil discordar de Platão e Aristóteles para quase tudo.

Outra mudança brusca de perspectiva do livro e filme foi a motivação de Agamenon para a guerra. O filme ressalta todo o tempo que Páris ter levado Helena com ele foi apenas um pretexto. É colocada com muita frequência a visão de que o que provocou a guerra foi a ambição de Agamenon. Para vocês terem uma ideia de como isso difere do filme, o acordo feito entre Menelau e Páris para o duelo (a disputa de Helena) encerraria de fato a guerra. E isso não é inexplicável. No livro, o cerco de Troia já durava mais de nove anos. Já haviam tido reuniões entre os gregos e o próprio Agamenon já tinha proposto voltar para casa e desistir de dominar Troia. Ao se propor o duelo, os dois concordaram com isso e afirmaram que isso encerraria de fato a contenda ali mesmo. Mas a interferência de Afrodite, salvando Páris, desemboca numa batalha que dura dias e resulta na morte de vários personagens importantes como Pátroclo, Heitor e Aquiles.

Outras Mudanças de Personagens e Enredo

E por falar em Pátroclo, está aí um personagem completamente diferente entre as duas obras. Ele, que era amigo de Aquiles e não primo como diz o filme, no filme é quase um adolescente iniciante ainda nas batalhas. No livro, ele é um exímio guerreiro, faz um estrago no exército troiano e só é vencido por Heitor porque Apolo intervém e ajuda a superar Pátroclo.

Heitor foi outro personagem bastante modificado no filme. Se tornou praticamente perfeito moralmente e intelectualmente. No livro, Ele é bem mais sanguinário, impiedoso e muito menos honrado. Além disso, ele é muito mais revoltado com o irmão por tudo o que ele causou ali naquela guerra. E por falar nele, esse é o personagem que praticamente não mudou tanto no livro quanto no filme: que foi o Páris. Ele é igualmente inconsequente e frouxo no filme e no livro.

A Ilíada se encerra com os funerais de Heitor e Pátroclo. O que acontece a partir daí não está no livro. Todo o desfecho da história são relatos diretos ou deduções presentes na Odisseia e não na Ilíada. E muitas coisas no desfecho são diferentes também: Menelau não morre, ele deseja tanto a sua esposa e a amava tanto que eles voltam para casa e vivem juntos quando Odisseu e seu filho passam lá durante a Odisseia, mais um indício da diferença de personalidade de Menelau do livro e do filme. Agamenon morre sim, mas não por Briseida como é no filme, e sim por uma conspiração entre sua esposa e seu amante. Isso acontece quando ele está voltando pra casa.

A queda de Troia realmente acontece, mas não é narrada em nenhum livro. Outro fato que não é narrado em nenhum livro é como Aquiles morreu. Ele apenas aparece no Hades, o mundo dos mortos, quando Odisseu desce lá buscando o caminho de casa.

Outra coisa que eu queria ressaltar é a diferença que existe entre a versão que foi para o cinema e a versão do diretor. Nitidamente, a versão do diretor é bem mais sanguinária, vários cortes das batalhas foram tirados, mas na versão do diretor eles estão explícitos. É com certeza muito mais sangue, muito mais matança. Esta questão que eu disse também sobre eles ridicularizarem a fé dos gregos e também tratar a maturidade como uma superstição e uma coisa meio de idiotas, praticamente, é bem mais saltada na versão do diretor do que a versão que foi para o cinema.

No geral, alguns detalhes foram modificados da versão do cinema para a versão do diretor e vice-versa, mas eu acho que ambas são interessantes. Eu particularmente gosto desse filme. Parece estranho falar isso aqui agora, mas eu gosto. Eu acho que tem muito a ver com o carisma do Brad Pitt, porque é um ator que eu gosto muito. Eu gosto de quase todos os filmes que ele fez, e quase todos os personagens ele combinou muito. Com o personagem do Aquiles, que é um semideus nos livros, apesar de ele já ter dito que não gostou muito de ter feito o filme, mas eu gostei. Sei que o filme tem problemas, mas até que me agrada.

Outra coisa que fica muito clara é que o Aquiles ali é tratado como um protagonista. Isso é muito comum em filmes, porque é mais fácil conduzir um filme tendo um personagem principal e desenvolvendo suas características, seus dilemas e sua transformação. No livro, não existe basicamente um personagem principal como é o caso da Odisseia. A Ilíada tem vários personagens, e praticamente nenhum é aprofundado mais do que o outro. Cada um tem o seu momento ali de aparecer. E para falar a verdade, Aquiles aparece muito pouco. Por ele ser um filho de uma deusa, ele tem habilidades muito diferentes dos outros, então eu creio que se colocasse Aquiles nas batalhas desde o início do livro, a coisa meio que perderia a graça, porque quando ele entra é um negócio meio absurdo mesmo. Então tratar o filme com uma ênfase nele é totalmente compreensível, ainda mais quando você tem um ator do calibre do Brad Pitt, do carisma que ele tem, né? Isso com toda a certeza arrasta o filme e arrasta o público também para assistir. Vocês veem que o próprio banner do filme tem sim uma ênfase muito grande no elenco, mas ainda mais em Aquiles, que é o Brad Pitt, na verdade.

Conclusão: A Formação do Imaginário e a Importância da Cultura

Bom, fica bem claro que mudanças foram feitas na obra original e é totalmente normal que isso aconteça. O que eu questiono aqui é por que as mudanças levam à representação dos tempos antigos sempre com a recorrência de um padrão? Algumas visões são tão comuns nos filmes de hoje, principalmente com relação a reis, deuses, feminilidade, masculinidade, que já são quase um consenso. E aí fica a pergunta: por que achamos que esse tipo de visão, como os reis serem todos tiranos, deuses ou deuses serem sempre superstições, mulheres nunca terem tido direito de escolha alguma, são tão comuns que já falamos como se isso fosse fato inquestionável?

E é aí que voltamos à importância da formação do imaginário e ainda mais à importância de ver os vários lados da história para buscar a verdade. Quando buscamos o conhecimento, mesmo se virmos uma sentença que faça sentido, nós não vamos julgar aquilo verdadeiro se não estiver no nosso campo de possibilidades que já imaginamos ser possíveis. Em outras palavras, a verdade pode estar diante de nossos olhos, se nós não acharmos aquilo crível, palpável, vamos ignorar, porque a nossa imaginação não consegue abarcar esse pensamento como viável, como palpável.

A imaginação nos é importante para absolutamente tudo. Em cada decisão, nós usamos o que já vimos, ouvimos e sentimos como base para o que pode ou não ser real, o que pode ou não ser uma possibilidade. São Tomás de Aquino já dizia que todas as regras morais, como por exemplo os 10 mandamentos, são universais, mas as situações humanas são individuais e particulares. Isso quer dizer que várias das situações que nós vivemos em nossas vidas não têm uma regra moral específica, nem mesmo para aquelas que tenham nos 10 mandamentos ou qualquer outra regra moral.

"Tirar a vida de alguém é errado em quase todas as culturas." Mas e quando esse alguém entra na sua casa, não escuta seus alertas, prosseguindo na invasão e ameaçando a sua vida e de sua família? Tirar uma vida continua sendo errado? "Mentira é uma coisa desprezível." Mas e quando alguém se esconde na sua casa morrendo de medo, implorando para que você o ajude a fugir, e na sequência aparece alguém armado perguntando onde aquela pessoa está? Mentir continua sendo uma coisa desprezível?

Nesses dilemas morais, como podemos fazer para converter as regras ou leis morais gerais em decisões tomadas nas nossas situações do dia a dia? São Tomás de Aquino também nos deu a resposta: imaginação. É usando a imaginação que conseguimos pensar em soluções possíveis, convertendo o que é geral ao aplicável na nossa circunstância do momento. Mas isso não é tão simples como parece. É preciso enriquecer a imaginação com o máximo de situações possíveis para que, quando algum dilema moral se apresentar a você, a sua gama de possibilidades seja tão vasta que alguma opção já vista por você se encaixe, ou pelo menos se aproxime, e você consiga resolver.

E como podemos fazer para ampliar nosso imaginário? “Nada está na nossa imaginação que não tenha passado antes pelos sentidos.” Essa frase foi dita por Aristóteles. Ele acreditava que todos os conhecimentos que temos começam pelos sentidos e depois são formulados como pensamentos para serem utilizados quando julgarmos necessário. Ou seja, tudo que você assiste, ouve, presencia, lê, vê, começa a fazer parte do seu repertório de situações possíveis. Dessa forma, quanto mais acesso à cultura você tem, maior será seu imaginário.

Mas então, qualquer cultura vale para aumentar o imaginário? Sim. "Qualquer cultura tem o mesmo valor?" Não. Qualquer pessoa é capaz de perceber que uma tribo que realiza sacrifícios humanos tem valor moral mais baixo do que a nossa sociedade de hoje. Qualquer pessoa consegue perceber que existe uma diferença de qualidade entre uma escultura de Michelangelo e uma obra de arte moderna. Qualquer pessoa percebe que há uma diferença sim entre a Quinta Sinfonia de Beethoven e o hit "Caneta Azul".

O que eu quero dizer com isso: não tem problema ver filmes ruins ou medíocres, mas veja os clássicos renomados do cinema. Não tem problema ouvir as músicas de hoje, mas pelo menos para conhecer, ouça música clássica. Não tem problema ler os livros mais vendidos do último ano, mas não deixe de ler clássicos como Ilíada, Odisseia, Divina Comédia, Crime e Castigo, Rei Lear, Guerra e Paz, A República, As Confissões, e por aí vai.

Se você não fizer isto, filmes como Troia, historicamente e sociologicamente tendenciosos, serão a única base de fonte histórica que você terá. Existe um lado, mas por que não ver o outro lado? Leiam Ilíada e Odisseia. Vale muito a pena. Até hoje.

Para ver mais: TROIA X ILÍADA: Hollywood - Patrick Silva

sábado, 19 de julho de 2025

Curacanga - via Museu Histórico e Artístico-MA (@museuhistoricoeartistico)



A Cumacanga ou Curacanga é uma lenda do folclore paraense e maranhense, cuja história faz menção a uma mulher amaldiçoada por se envolver com um padre ou que talvez seja a sétima filha de uma família do mesmo pai e mesma mãe.

Alguns relatos dizem que nas noites de sexta-feira de lua cheia ou à meia noite de uma sexta-feira qualquer a cabeça da mulher desprende-se do seu corpo e sai flutuando ardendo em chamas, assustando a todos que a encontram pela frente e ao primeiro cantar do galo, sua cabeça retorna ao seu corpo.

Como modo de evitar que sua sétima filha seja amaldiçoada, o correto é tornar a sexta filha a madrinha da sétima e para descobrir a portadora da maldição, basta oferecer-lhe uma agulha virgem no momento em que se encontrar com a Curacanga, quando ela voltar em sua forma humana no outro dia, ela virá buscar a agulha.

Folcloristas acreditam que a lenda da Cumacanga surgiu com base no avistamento de fogo-fátuos que é um fenômeno natural decorrente da queima de gases como fosfina e metano provenientes de cadáveres em decomposição que surge no corpo de animais pela floresta e se manifesta nas superfícies com a queima desses gases de alta inflamação.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

A Temida Guarda Negra da Redentora - via brazil_imperial


Criada após a Lei Áurea, a Guarda Negra da Redentora era um grupo político de militantes monarquistas, formado em sua maioria por negros livres dos centros urbanos, capoeiras, jornalistas, policiais e profissionais liberais, que combatiam violentamente o crescente Movimento Republicano nas Cidades do então Império do Brasil, sob a liderança do chefe capoeira Clarindo de Almeida, e o jornalista José do Patrocínio.

Segundo o Historiador Michael R. Trochim, a Guarda era uma espécie de "Maçonaria Negra" com código de juramento e reuniões secretas, tinha o apoio velado de importantes líderes póliticos do Partido Conservador, como o Conselheiro João Alfredo Correia de Oliveira.

Líderes Republicanos como Rui Barbosa, Silva Jardim, e Rangel Pestana, que foram agredidos por militantes da Guarda Negra nas ruas, acusavam os monarquistas e o Estado Imperial de estimularem uma "Guerra Racial" no Brasil

O Jornal "A Cidade do Rio" e a própria figura de José Patrocínio, passaram a ser identificados pela opinião pública como defensores violentos de uma monarquia em crise.

A Guarda Negra iniciou um verdadeiro culto à princesa Isabel, o chamado isabelismo e se reuniram em torno do Partido Conservador por sua gratidão a Princesa Isabel e o gabinete João Alfredo. Os estatutos da Guarda Negra ordenavam que os negros só trabalhassem em fazendas cujos proprietários não fossem hostis a Isabel e apoiassem o terceiro reinado.

Patrocínio passou a liderar a barreira de proteção à Regente, aparando todas as ofensas e ameaças contra ela.

Patrocínio, que antes condenava a Monarquia como o sustentáculo do Regime Escravocrata, passou a apoiar publicamente a Princesa Isabel, após a assinatura da Lei Áurea em Maio de 1888. Prometeu lealdade e solidariedade a redentora dos escravos como o seguinte juramento de seu grupo militante, a Guarda Negra: " Pelo sangue de minhas veias, pela felicidade dos meus filhos, pela honra de minha mãe e a pureza de minhas irmãs, e, sobretudo, por este Cristo, que tem séculos, juro defender o trono"



sábado, 5 de julho de 2025

Agar - Delminda Silveira de Sousa

Agar e Ismael no deserto (Hagar and Ishmael in the Wilderness) Francesco Cozza (painter)

Sobre o pálido azul do Oriente desdobrava a aurora o seu manto de púrpura e ouro; brilhante véu de luz escondera as estrelas do firmamento.

Além, além, pela solidão do deserto, caminhava Agar, — a escrava sem lar, sem amor.

Dormia-lhe Ismael nos braços e de seus ombros delicados pendia-lhe uma cabaça com água e um alforje com pão.

Seus olhos tristes dirigiam-se ao Céu resplandecente, enquanto dos lábios vermelhos como a silvestre flor que vem de desabrochar, voavam-lhe suavíssimas preces envoltas nos suspiros da Natureza.

“Oh! Deus! — exclama — não pereça Ismael, meu filho caro, por meu seio, de cansado, negar-lhe o doce alimento. Antes que o sol desapareça nesta soledade, dá que meus olhos avistem os verdores de um oásis em que possam repousar meus fastigados membros, e onde minha boca sequiosa encontre o veio de alguma cristalina fonte.”

E ela estendia a vista pela imensidade cujas areias brilhavam aos raios do sol ardente, como poeira de diamantes.

Ismael acorda.

“Mãe, água!” — debilmente balbucia com voz suave e meiga como o balido da ovelha terna.

Agar olha derredor...

Só o areal, que fulgia como uma poeira de diamantes!

Deixando o filhinho sobre o chão abrasador, ela afastou-se febril, em lágrimas, murmurando:

“Ao menos não o verei morrer!”

“Agar, Agar!” — uma voz suavíssima, do alto, disse.

E um anjo formoso, em alvíssima nuvem brilhante, tocava-lhe o ombro, como se a despertasse.

Agar fitava-o, pasma.

— Toma água dessa fonte, bebe, e dá de beber a teu filho. Deus é convosco; caminha; Ismael será o chefe de uma poderosa nação.”

E a visão desapareceu.

Como um espelho de cristal, uma fonte d’água puríssima e fresca se estendia ali, no areal do deserto inclemente.

Agar tomou seu filho e, naquela maravilhosa fonte, com ele, desalterou o peito enfebrecido.

Ismael veio a ser o pai de um grande povo.

sábado, 28 de junho de 2025

The Tale Of The Ronin And The Bride - Blue Eye Samurai (S01E05) - via tvtropes

"No one man can defeat an army, but one creature can. How does such a creature come to be?" — Tayū

The episode opens with a puppet stage performance (in what appears to be a variation of Bunraku puppet theater), before what seems to be a high ranking and important audience. The narrator of the show says that no one man can defeat an army, but a creature can, and proposes to tell the audience how such a creature can come to be. The narrator then begins a story where in ancient times the master of a Rōnin was slaughtered by a rival clan whose crest was the phoenix, and how it caused "a storm to rise in his soul" as he swore vengeance. As the narrator says this, we get quick flash cuts between the ronin in the show and Mizu, who is facing down the Thousand Claws. As she looks at the Claws and Madam Kaji's murdered assistant, a hateful glare comes to Mizu's face.

Mizu cuts down the first few members of the Claws, causing some of the others to give each other nervous looks. That buys Mizu and the others time to retreat into the brothel and barricade the formidable door. Madam Kaji, Akemi, and the other girls retreat to a basement, Mizu sends Ringo to look after them and gives him a knife to use to defend himself and protect them. The girls shut themselves inside a room, with Ringo standing outside as a last line of defense. After a few moments, Akemi joins him, holding a tiny dagger, and declares the Claws will have to get through them both.

Upstairs, Mizu thinks about her childhood, remembering some tender moments with her mother, her mother's increasingly harsh admonishments against being seen, and forcefully shaving Mizu's head and telling her that she must always appear to be a boy, since the "bad men" are looking for a blue eyed girl. She then remembers her home burning down, the apparent death of her mother in the fire, and swearing to get revenge by killing the white men.

Her reverie is broken when the Claws finally manage to break down the door and enter the room. With most of the interior in darkness, they go to one of the few places with any light, and Mizu promptly ambushes them from the darkness, easily cutting them down without them even seeing her. After some time passes, a second small group comes inside, and Mizu manages to kill several more with the same tactic, but the leader of this bunch manages to fight back effectively, parrying her blade, grabbing ahold of Mizu, pinning her against the wall, and then stabbing her in the side with his claws.

The narrator from the puppet show tells of the ronin's vow to kill everyone who wears the phoenix crest and destroy their entire clan forever, but notes that the ronin would find the demon's path of revenge to be a difficult one. Mizu's flashbacks show her own difficulties in her early attempts to try to find the white men, as she is stabbed in the side by a group of opium dealers she tried to question. Badly wounded, Mizu staggered away from their hideout, weakly searching for help. Meanwhile in the performance, the ronin's violent quest for revenge has early success, but takes a toll on both the ronin's health and mind. The ronin becomes sick, and it seems likely he will die of disease without fulfilling his vow. Both the ronin and Mizu find unexpected salvation; Mizu comes across a group of prostitutes on a bridge and realizes one of them is her mother, who is surprised to see Mizu. After Mizu collapses, she takes Mizu to her home and treats her there. Meanwhile, the ailing ronin crosses paths with a woman who takes pity on him and brings him to her home and tends to him, allowing him to rest and recover.

Mizu breaks free of the Claw who wounded her and overcomes him, then staggers deeper into the brothel, alternating between fighting the Claws and retreating long enough to grab a quick rest. A pair of the Claws find the basement, and boast to Akemi and Ringo that the samurai is cornered upstairs. Ringo and Akemi manage to defend themselves and Akemi, fearing that Mizu cannot defeat the Claws alone, goes upstairs to see if she can help. Mizu continues racking up a formidable body count with the Claws, but the same one who wounded Mizu earlier manages to catch her by surprise, starts strangling her, and seems to be on the edge of killing Mizu when Akemi stabs him in the back. Hearing the sound of more Claws approaching, Akemi desperately tries to wake an unconscious Mizu.

In Mizu's past, she recovers from her wound but the money she had is soon taken by her mother to feed the older woman's opium addiction. Her mother claims to have a solution to their problems; a marriage to a disgraced samurai and horse tamer/trainer living in the mountains, who needs a wife to aid him around his house. Mizu is very opposed to the idea, but is emotionally blackmailed into accepting. Mizu meets and marries Mikio, and as time passes, the two slowly begin warming to each other, and despite some rough spots, it turns into genuine affection and eventually love.

In the performance the ronin initially intends to leave the woman after recovering his health, but the woman tries to convince him to stay, and the two fall in love, causing the ronin to set his vow of vengeance aside.

Mizu wakes up just in time to save Akemi from several of the Claws, then distracts the rest into chasing after her while Akemi flees back into the basement. Mizu draws them outside, but there are still more members of the Claws there, and they gang up on her. Unless she can find a way to change the tide of the fight (and quickly), things are looking grim for Mizu as the Claws attempt to finish her off.

In her past, Mizu opens up to Mikio. He seems intrigued when she says that the main thing she did during her childhood and adolescence was study swordsmanship as part of her quest for revenge, and asks her to have a sparring bout with him. Mizu becomes very... enthusiastic during the fight and insists on escalating things, unsheathing her sword, then mocking Mikio when he shows reluctance to do the same. Eventually she begins to trounce him, and the fight ends when (after a period of dodging all his strikes) she throws him to the ground, shoves a blade against his neck, and then forcefully kisses him. Mikio, however, does not react to this well, pushing her away and saying that Mizu really is a monster.

In the puppet theater, the ronin has been living happily with the woman and their child, but he learns a startling fact about his bride; that she is a member of the same clan with the phoenix crest that he swore to destroy. The bride pleads with him, saying that she exiled herself from her father's evil clan, and tries to win over the ronin, but a fit of rage comes over the samurai. Before the eyes of his horrified wife, he draws his sword and kills their child, then kills her as well. Rage and hatred takes over the wife's spirit, causing her to rise from death as an onryō, and she promptly slaughters him, before causing natural disasters to ravage the world around them due to her fury not being satisfied by just the ronin's death.

Mizu plans to make amends with Mikio, but learns from her mother (who is smoking opium again), that Mikio has left to deliver the horses he has tamed to his lord... including a particularly impressive specimen named Kai that Mizu helped Mikio tame and which Mikio had said would be Mizu's horse, rather than giving her to the lord. While Mikio is away, a group of armed men ride up, looking for Mizu, and reference the bounty on her. Mikio comes riding by on his horse, raising Mizu's hopes that he will aid her in fight off the attackers, but instead he rides away, leaving her to her fate. Heartbroken and enraged, Mizu lashes out at the men who came to kill her with all of her characteristic fury and skill, tearing them with apart with Mikio's naginata.

Shortly after Mizu finishes off her attackers, Mikio comes back, claiming that he had a moment of cowardice but decided to return and help Mizu. Mizu doesn't believe him, accusing him of having told the men where to find her. Mikio instead tries to put the blame on Mizu's mother, pointing out how she's been smoking opium again lately, and says that she got the money from informing on Mizu. The older woman claims that she had simply been prostituting herself again on the bridge. Mikio and Mizu's mother fight until he stabs her with a knife in his anger. He tries approaching Mizu again, but she cuts him short by killing him with a throwing dagger. With her heart poisoned by the terrible pain of betrayal and heartbreak, Mizu decides to resume her quest for vengeance against the white men.

In the present, Mizu breaks free of the Claws, then in between fighting them off, she takes off the weights on her arms and legs, connecting them to each other and her sword to turn it into a makeshift naginata. The Claws, who were already at a disadvantage thanks to the longer reach of Mizu's sword, have absolutely no chance to touch her now thanks to the added reach of her blade. She kills the remaining Claws until they're down to a few survivors who flee in terror. She then grabs boss Hamata and brings him to Madam Kaji so Kaji and her girls can get their own revenge on him.

An exhausted Mizu can barely keep from collapsing when the sound of approaching horses can be heard. It turns out that the horsemen are samurai in service to Lord Daichi (Akemi's father) who have come to find Akemi bring her home. Akemi tries to defy them, asking Mizu to fight on her behalf, but Mizu refuses and allows the samurai to take Akemi. Ringo is aghast at Mizu for not helping Akemi and tells Mizu off, complete with taking off the bell Mizu tied around him when he became her apprentice. Mizu, for her part, simply begins to slowly limp away, moving on to the next stage of her attempt to reach Fowler.

At the puppet performance, the narrator concludes the show, and it is revealed that the performance was done for the shogun and his guests. The shogun then asks Akemi what she thinks of the entertainment in Edo. Akemi replies that there is one thing in the show that she believes was inaccurate: She says she met an onryō once, and searched the creature's eyes for any sign of love, mercy, or goodness, and found none. As Akemi speaks, we get a close up of her face, showing her teeth have been blackened, indicating that her engagement to the shogun's younger son has gone forward.

sábado, 24 de maio de 2025

A miscigenação na história e no DNA do brasileiro - por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala,


Vencedores no sentido militar e técnico sobre as populações indígenas; dominadores absolutos dos negros importados da África para o duro trabalho da bagaceira, os europeus e seus descendentes tiveram entretanto de transigir com índios e africanos quanto às relações genéticas e sociais. A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações - as dos brancos com as mulheres de cor - de "superiores" com "inferiores" e, no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituírem família dentro dessas circunstâncias e sobre essa base.

A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação.

A índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até esposas legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido de democratização social no Brasil. Entre os filhos mestiços, legítimos e mesmo ilegítimos, havidos delas pelos senhores brancos, subdividiu-se parte considerável das grandes propriedades, quebrando-se assim a força das sesmarias feudais e dos latifúndios do tamanho de reinos.

Tal trecho corrige as imprecisões sociológicas expostas na matéria linkada.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Innsmouth e os Mitos de Cthulhu de H.P. Lovecraft


A Editora Clock Tower foi incentivada durante muito tempo a lançar um edital para publicação de novos autores, mas como estávamos no começo, não tínhamos ainda experiência para tal desafio. Sempre pensamos que se um projeto desse tipo fosse realizado, deveria abordar a criação que acreditamos ser a mais impactante da obra de H.P. Lovecraft: a mitologia própria de Innsmouth, a cidade portuária assombrada e atormentada por forças malignas e obscuras.

A cidade portuária de Innsmouth faz parte dos escritos de horror cósmico, conhecido como Mitos de Cthulhu, do norte-americano H.P. Lovecraft (1890-1937). Em Innsmouth se instalou um culto de nome Ordem Esotérica de Dagon, trazendo riqueza e peixes aos ribeirinhos, só que isso teve um preço alto: sacrifícios humanos e a hibridização dos habitantes, que começaram aos poucos a se transformar em seres marinhos.

Estão no projeto em uma participação especial de Robilam C. Junior que propôs o edital,  Alexandre Callari, editor e escritor, e o "Explorador", criador do canal Explorando Segredos & Mistérios no YouTube, cada um com um conto. O projeto contará como meta estendida a tradução de 3 contos inéditos em língua portuguesa que influenciaram grandemente Lovecraft para criar essa mitologia:

— Fishhead, de Irvin S. Cobb.

— The Harbor-Master, de Robert W. Chambers (autor de "O Rei de Amarelo").

— In the Abyss, de H.G. Wells.

Além disso, uma tradução amplamente revisada da novela "A Sombra sobre Innsmouth", parte da coletânea "O Mundo Fantástico de H.P. Lovecraft" e "Dagon", ambas feitas pelo tradutor Allan Morares. O volume também conta com a introdução "Mistérios não revelados de Innsmouth", onde discorremos sobre as inspirações de Lovecraft para essa parte essencial de sua obra e com um mapa definitivo de Innsmouth baseado nos trabalhos de J.F. Morales criador do site Cthulhu Files, considerado simplesmente o melhor e mais fiel mapa dessa decadente cidade.

Para saber mais veja o link https://www.catarse.me/nasruinas

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Demônios e Gênios do Mundo Islâmico Medieval - Adam Ali


Em todo o mundo medieval, havia uma forte crença em seres sobrenaturais. Se você vivesse no Oriente Médio, havia dois textos medievais importantes que você poderia consultar para aprender sobre criaturas como o Ghul ou o Rei da Quinta-feira. Muitos tinham estranhos poderes e formas de pesadelo e seriam chamados de gênios, demônios ou diabos.

O principal guia para os seres sobrenaturais islâmicos chamava-se Ajaib al-Makhluqat wa Gharaib al-Mawjudat, ou Maravilhas das Coisas e Aspectos Milagrosos das Coisas Existentes. Seu autor foi Zakariyya al-Qazwini (1203-1283), e seu trabalho era muito popular no Oriente Médio medieval. Essa popularidade é atestada pelos muitos manuscritos desta obra de diferentes épocas que sobreviveram tanto no árabe original quanto nas traduções persa e turca. O livro está dividido em duas partes principais: tratando do celeste / supra-terrestre e do terrestre. Na primeira parte, o autor discute fenômenos celestiais, como o sol, a lua, os planetas, as estrelas e os habitantes do céu (ou seja, os anjos).

Na segunda parte, al-Qazwini fala sobre os quatro elementos, a Terra e sua divisão em sete climas, e descreve os mares, rios e montanhas. Ele então discute os três reinos da natureza: mineral, vegetal e animal. Em sua descrição do reino animal, o autor delineia o caráter e a anatomia do homem e no final desta seção há um capítulo sobre monstros, demônios, gênios [também conhecidos por jinns ou djinns] e diabos.

Muitos dos manuscritos sobreviventes também são amplamente ilustrados com tabelas geométricas e miniaturas que representam plantas, animais e vários monstros. A maior parte desta coluna será baseada nas informações apresentadas por al-Qazwini em seu capítulo sobre Gênios e monstros. Vou discutir o que são gênios, apresentar algumas anedotas do capítulo sobre gênio e o diabo e, finalmente, descrever certos tipos de gênios, demônios e monstros.

Na última parte deste artigo, também incluirei alguns demônios, monstros e gênios mencionados no Kitab al-Bulhan (Livro das Maravilhas ou Livro das Surpresas); um manuscrito do final do século XIV transcrito e compilado (e possivelmente ilustrado) por Abd al-Hasan al-Isfahani. O livro provavelmente foi compilado em Bagdá durante o reinado do sultão Ahmad Jalayirid (1382-1410). No entanto, a maior parte de seu conteúdo foi escrito durante o século VIII por Abu Maʿshar al-Balkhi (787-886 CE).

O códice original do Kitab al-Bulhan se desfez e algumas de suas páginas foram perdidas, e as outras se misturaram e foram encadernadas em uma ordem aleatória e incoerente. O manuscrito é composto de textos que tratam de tópicos de astrologia, astronomia e geomancia. “A seção mais interessante…” do Kitab al-Bulhan, de acordo com Stefano Carboni, é “…uma série de ilustrações extraordinárias em páginas inteiras que requerem interpretação porque a única maneira de entender o assunto – além, é claro, de ter familiaridade suficiente com sua iconografia para decifrar corretamente a cena representada na pintura – é lendo seu título colocado em letras grandes no alto da página. Não há texto (e nunca houve) associado a essas obras, o que torna esta seção intrigante, fascinante e única neste período de desenvolvimento da ilustração islâmica em livros”. A parte do livro que Carboni está descrevendo contém uma série de ilustrações retratando demônios e gênios. Além do título, não há texto e, como afirma Carboni, resta interpretar essas imagens.

Quem são os Gênios?

Temos alguma familiaridade com os djinn, que são chamados de gênios na cultura ocidental, por meio de histórias folclóricas das Mil e uma Noites, como Aladdin. No entanto, a ideia de gênio e a crença neles nas sociedades islâmicas têm raízes muito mais profundas que antecedem o Islã. Os árabes pré-islâmicos acreditavam em gênios muito antes da chegada do Islã. Os gênios eram as “ninfas e sátiros” do deserto. Eles representavam a natureza e o selvagem, os domínios ainda não dominados pela humanidade e hostis aos humanos.

De acordo com a antiga crença árabe, os espíritos assombravam locais escuros e desolados no deserto e aguardavam o viajante desavisado. As pessoas precisavam se proteger desses seres. Pouco antes da chegada do Islã, alguns dos gênios se receberam status mais elevados, tornando-se vagos deuses impessoais que estavam relacionados à divindade suprema. Os habitantes de Meca do início do século VII ofereciam sacrifícios a eles e buscavam sua orientação e ajuda. Alguns estudiosos acreditam que os gênios foram inicialmente conceituados como demônios malévolos, enquanto outros argumentaram que eles foram os primeiros deuses e deusas (frequentemente associados à natureza) de povos como os sumérios e acadianos que foram suplantados por novas divindades e sistemas de crenças mais sofisticados, mas eles não foram totalmente descartados e continuaram a ocupar uma posição como seres sobrenaturais menores.

Gênios antigos
Embora as origens dos gênios pareçam estar nos desertos da Arábia, a crença neles realmente tomou forma nas aldeias e cidades do Oriente Médio. Na verdade, os nômades que percorriam os desertos temiam os gênios muito menos do que os povos sedentários das planícies e desertos remotos, que representavam o desconhecido e o perigo para eles. Por exemplo, Pazuzu era um gênio primordial, um demônio do vento que os habitantes das cidades sumérias temiam há 6.000 anos. O vento era frequentemente associado aos gênios e os povos antigos do Oriente Médio acreditavam que essas criaturas viajavam nele. De acordo com a mitologia assíria e babilônica, Pazuzu era filho de Hanpa, que era o senhor de todos os demônios, talvez um “antigo Satã”. Alguns estudiosos afirmam que Pazuzu, associado ao vento frio do nordeste, foi uma das forças elementais mais malévolas do mundo antigo. Ele limpou os desertos e carregou doenças e trouxe desolação e fome em seu rastro. Pazuzu, como os posteriores gênios do período muçulmano, foi descrito como um híbrido de humano e animal. Ele tinha cabeça de leão ou cachorro, chifres, barba, asas de pássaro, cauda de escorpião e um pênis ereto, às vezes em forma de serpente.

Outros gênios/demônios antigos incluíam Rabisu e Labaratu. O primeiro se escondeu em lugares remotos e emboscou viajantes desavisados ​​(como veremos, é assim que um dos djinns do Oriente Médio islâmico, o ghul, operava) e o último, a filha do deus do céu Anu, vivia em pântanos ou montanhas e matava crianças. Outros antigos demônios da Mesopotâmia mantinham relações sexuais com humanos. Todos esses seres antigos serviram como protótipos do djinn da Arábia e, mais tarde, do mundo muçulmano. No Hijaz, a região da Arábia Ocidental onde o Islã nasceu, uma função dos gênios era inspirar poetas e adivinhos a produzirem belos versos poéticos e potentes e também prever o futuro. Tanto poetas quanto adivinhos detinham um status especial na Arábia pré-islâmica e exerciam uma influência significativa em suas sociedades. Aqueles que eram “loucos” receberam um status de proteção especial, pois se pensava que eram majnun, que significa “possuídos por um gênio”.

De acordo com a tradição muçulmana, o gênio é um dos três seres inteligentes criados por Deus, os outros dois sendo anjos e humanos. Eles são mencionados no Alcorão e nas tradições proféticas. Al-Qazwini coloca o gênio na cosmologia muçulmana no início do processo de criação e diz que Deus criou os anjos da luz, os humanos do barro e o gênio das chamas do fogo. Ele também criou shayatin (v. Shaytan – significando diabos/demônios) a partir da fumaça do fogo. Existem várias categorias de gênios, incluindo ifrit, Shaitan, marid e djinn; esses termos geralmente se sobrepõem e as categorias não são bem definidas. Como humanos, eles têm livre arbítrio e podem ser bons ou maus, porém os shayatin estão sempre associados a Iblis, o próprio Satanás.

Há uma antiga mesquita em Meca chamada Masjid al-djinn ou Mesquita do Gênio e, de acordo com a tradição islâmica, é dedicada aos gênios que aceitaram a mensagem do profeta Muhammad quando ele pregou para eles. Deus é frequentemente referido no Alcorão como Rab al-Alamin, que significa o Senhor dos Mundos, abrangendo todos os mundos e universos possíveis que poderiam existir, incluindo o dos humanos e o dos gênios. O Alcorão também menciona frequentemente os humanos e os gênios juntos como os dois tipos de criação que poderiam receber revelações divinas e aceitá-las ou rejeitá-las.

Al-Qazwini afirma que os gênios são imperceptíveis aos sentidos humanos. No entanto, eles podem “engrossar” suas constituições e assumir formas corporais, tendo a capacidade de mudar de forma. Ele também menciona que os gênios foram criados muito antes de Adão e os humanos e que eles habitavam a Terra antes da queda de Adão. Eles tinham reis, profetas, religiões e leis, muito parecidos com os humanos. No entanto, muitos deles se perderam e encheram a terra de corrupção.

Em resposta a essas transgressões, al-Qazwini diz que Deus enviou seus exércitos celestiais de anjos para puni-los. Depois de ferozes batalhas entre os anjos e os gênios, os últimos foram expulsos de suas casas para os cantos mais distantes do mundo, enquanto muitos outros foram feitos prisioneiros. Entre esses prisioneiros estava um jovem gênio chamado Azazel (um claro paralelo aqui com um dos líderes dos anjos caídos no livro apócrifo de Enoque). Azazel foi criado entre os anjos e alcançou seu conhecimento, aconselhou-os e viveu entre eles por um longo tempo até se tornar um de seus chefes.

Esta situação continuou até a criação de Adão. Quando Deus ordenou a todos os anjos que se prostrassem diante de sua nova criação, Azazel recusou-se por arrogância e foi após este ponto que seu nome mudou para Iblis (um dos nomes que designam Satanás na tradição islâmica) e ele se tornou o inimigo do homem e amaldiçoado por Deus. A implicação no texto é que ele também se tornou o líder de todos os demônios e gênios renegados, tornando-se a personificação do mal, da contenda e desobediência. Al-Qazwini menciona que Iblis teve cinco filhos: Birah, o senhor das catástrofes; al-A’war, o senhor do adultério, da luxúria e da sedução; Masut, o senhor das mentiras; Dasem, o senhor da contenda (especialmente entre casais); e Zalnabur, o senhor dos mercados e trapaãs no comércio.

Tipos de Gênios
Tanto al-Qazwini quanto al-Isfahani têm seções em suas obras nas quais listam vários tipos de gênios, demônios e monstros. Em uma seção de seu capítulo sobre os gênios, Al-Qazwini fornece descrições de algumas dessas criaturas. Por outro lado, o Kitab al-Bulhan tem apenas uma série de ilustrações de gênios acompanhadas de títulos. Stefano Carboni fornece algumas boas interpretações dessas imagens em seu artigo, “O ‘Livro das Surpresas’ (Kitab al-bulhan) da Biblioteca Bodleian”. Usarei o artigo de Carboni para completar as descrições e características de alguns dos demônios apresentados pelo Kitab al-Bulhan.

O ghul
Al-Qazwini afirma que al-ghul (o ghoul) é um dos mais famosos e comuns entre os gênios. O ghul foi descrito de várias maneiras. Al-Qazwini o descreve como tendo uma aparência não natural e aterrorizante. Ele diz que tem uma forma humanoide fundida com a de uma besta e o descreve como uma criatura vil com deformidades e aparência não natural. O Léxico Árabe-Inglês de E.W. Lane (essencialmente uma compilação baseada em dicionários árabes medievais) afirma que o ghul “é uma “espécie de goblin, demônio, diabo” e que é “terrível na aparência, tendo presas ou algo semelhante”. Outros relatos da Península Arábica descrevem o ghul como uma combinação de homem, pássaro e camelo. De acordo com essa descrição, ele tem uma cabeça humana com um olho de Ciclope no meio. Em vez de boca, tem bico; seu corpo é de camelo ou avestruz com asas de galinha e tem garras de avestruz ou cascos de mula em vez de pés. O ghul também é um metamorfo e pode assumir a forma de homens, gatos, cavalos, jumentos, camelos, touros, corujas e de um cão multicolorido (uma de suas formas mais frequentemente mencionadas).

O ghul é descrito como um devorador de homens e habita os desertos e terras devastadas e aparece para viajantes solitários que passam por essas áreas remotas, especialmente nas horas entre o crepúsculo e o amanhecer. Ele fica em uma emboscada, esperando o viajante desavisado entre as rochas, penhascos e cavernas e se lança sobre ele, arrasta-o para seu covil e o devora. Ele também pode assumir uma aparência semelhante a um humano, a fim de acalmar suas vítimas com uma falsa sensação de segurança para atraí-las para longe de seu caminho e para sua armadilha. Diz-se também que ghulas femininas às vezes atraem viajantes, seduzem-nos e se prostituem com eles.

Em relação à sua origem, al-Qazwini afirma que eles eram gênios que costumavam bisbilhotar ouvindo o que se passava no céu (de acordo com a tradição islâmica, esse conhecimento roubado do céu foi a inspiração que os adivinhos receberam desses demônios quando procuraram ver o futuro) e quando o fizeram, foram atingidos por meteoritos ou estrelas cadentes e queimaram e foram horrivelmente desfigurados e despencaram para a Terra para se tornarem ghuls.

Robert Lebling menciona em seu livro, Legends of the Fire Spirits, que apesar de sua propensão para o mal e para comer carne humana e carniça e sua natureza maligna, o ghul pode ser benevolente com os humanos. Nos contos e lendas, se o herói consegue se esgueirar por trás da ghula (ghul feminino) e sugar seu seio pendular, muitas vezes jogado sobre ela enquanto ela trabalhava em seu moinho manual, ele se torna seu “filho do peito” e ela se torna sua protetora, mesmo de outros ghuls. Existem fortes paralelos com as tradições pré-islâmicas e islâmicas de “relações de leite”, ou seja, dois bebês não aparentados se tornando irmãos se amamentarem da mesma mãe. Um herói inteligente também pode contar com a ajuda de um ghoul. De acordo com Lebling, essas criaturas respondem à cortesia e “em troca de um pouco de cuidado ou de um pedaço de goma de aroeira, muitas vezes estão prontas para carregar o herói para onde ele quiser”.

A Si’lah
A si’lah é uma variante do ghul. Este gênio é frequentemente referido no feminino. Ela reside em selvas e matagais e prepara uma emboscada para suas vítimas. Ela é descrita como um gênio malvado e sádico que tortura sua presa, brinca com ela e a faz dançar antes de consumi-la.

A si’luwa é uma variante do s’ilah do Iraque. Ela é um demônio da água ou espírito da água que habita os rios, córregos e canais da Mesopotâmia. Ela tem a forma de uma mulher e é coberta por cabelos longos, tem seios pendentes que vão até os joelhos e, em alguns relatos, é descrita como tendo uma cauda de peixe em vez de pernas. Ela prepara armadilhas e caça humanos para comer e também busca amantes humanos. As crenças locais afirmam que a si’luwa é o produto da mistura de humanos com demônios do rio.

Al-Qazwini menciona que o lobo caça a si’lah à noite. Quando uma si’lah é capturada por um lobo, ela grita enquanto o lobo a dilacera e implora para ser salva, oferecendo mil dinares a seu salvador. O autor afirma que as pessoas ignoram esses apelos porque sabem que é a si’lah. Na verdade, Lebling afirma que os lobos são os únicos animais que os gênios temem.

Ele diz que os gênios não podem escapar dos lobos afundando no chão, o que permite que os lobos os ataquem com seus dentes e garras. Isso parece sugerir que, de acordo com algumas lendas, o lobo tem algum tipo de efeito neutralizante em alguns dos poderes dos gênios. Lebling explica que essa aversão aos lobos é uma das razões pelas quais os gênios nunca assumem a forma de lobo quando mudam de forma. É por esta razão que os dentes do lobo e outras partes do corpo foram (e às vezes ainda são) usados ​​como talismãs protetores em partes do mundo muçulmano, como o Iraque.

O Ghaddar
Al-Qazwini menciona este gênio brevemente e afirma que seu tipo habita o Iêmen e as regiões costeiras do Egito. Ele atrai suas vítimas para si e então as ataca. O resultado dessa agressão pode ser leve ou grave. Lebling afirma que este demônio tortura suas vítimas violentamente ou apenas as aterroriza. Al-Qazwini é mais explícito, ele diz que este gênio fica satisfeito aterrorizando sua vítima até um estado de choque. Um resultado mais extremo de um encontro com o ghaddar, de acordo com al-Qazwini, é que esse monstro agride sexualmente suas vítimas e que raramente há qualquer esperança para sobreviventes de tal ataque porque o ghaddar tem um falo como um chifre de touro que pode matar um humano. Este gênio deve ter uma aparência aterrorizante, infelizmente al-Qazwini não descreve nenhuma de suas características físicas além de seu falo.

O Delhab / Delhan
O autor de ‘Ajaib al-Makhluqat afirma que este gênio vive nas ilhas dos mares. Tem a forma de um homem montado em um avestruz. Devora a carne dos náufragos e marinheiros que o mar lança nas margens das ilhas que habita. Al-Qazwini menciona um relato em que o Delhab atacou um navio. Os marinheiros tentaram lutar contra ele. No entanto, o demônio soltou um grito que os fez largar as armas e caírem de cara no chão encolhendo-se, levando todos eles.

O Shiqq
Este demônio assume a forma metade humana (podemos presumir que a outra metade é bestial ou monstruosa). Lebling diz que esta criatura tem uma forma de “meio ser humano (como um homem dividido longitudinalmente)”. O shiqq também atrapalha os viajantes. Existe uma lenda famosa que conta a história de um encontro entre um shiqq e Alqamah ibn Safwan ibn Umayyah (do clã Omíada da tribo Coraixita). Alqamah lutou quando o demônio o atacou, e a disputa entre os dois terminou quando ambos se acertaram com golpes fatais.

Os Gênios em Kitab al-Bulhan
Kitab al-Bulhan contém uma série de ilustrações de páginas inteiras retratando vários demônios e gênios. Essas ilustrações representam Iblis (Satanás), os sete reis gênios / demônios (cada um associado a um dia da semana) e, finalmente, há representações de alguns gênios associados a doenças e outras forças de ruptura na vida de alguém. Além de ser associado a um dia da semana, Carboni afirma que cada ilustração dos sete reis gênios também está conectada a um anjo, um planeta e um metal. Ele afirma que os reis são mostrados com seus apoiadores ou coortes e os símbolos talismânicos necessários para exorcizá-los estão contidos no quadro da ilustração.

Iblis
A ilustração do diabo é a primeira desta série. Seu nome, Iblis al-la’in (Iblis, o amaldiçoado), não deixa dúvidas a quem esta imagem retrata. Iblis é mostrado entronizado no centro da página, sentado de frente e de maneira majestosa. Ele é coroado com grandes chifres de carneiro e seus olhos brilham com fogo. Ele é muito maior do que os outros gênios, seus súditos, e parece mais próximo do observador do que eles.

Os Reis-Gênios da Segunda e do Domingo
Carboni afirma que os fólios contendo as ilustrações do “Rei do Ouro” do domingo e do “Rei Branco” da segunda-feira estão faltando no Kitab al-Bulhan. No entanto, eles aparecem em cópias otomanas, que dão uma indicação de seu nome e aparência.

Al-Mudhahhab (o dourado) é o rei-gênio do domingo. Ele está associado ao sol. De acordo com a tradição, este rei-gênio possui segredos do ocultismo e conhecimento da transmutação do ouro e também está associado ao brocado de seda. Ele é retratado com um halo dourado flamejante ao redor de sua cabeça e o que parece ser uma nuvem dourada ou lã ao redor de seu pescoço e ombros e está ricamente vestido com o que parece uma camisa de seda e calças de seda.

Al-Malik al-Abyad, ou o rei branco da segunda-feira (às vezes referido como o branco, pai da luz). Ele está associado à lua. O rei branco é um dos cortesãos mais próximos de Iblis. Ele é descrito como um demônio branco com chifres e olhos dourados. Sua cabeça é parcialmente a de um humano, mas mais como uma besta, com presas, orelhas caídas e camadas enrugadas de carne em suas bochechas.

O rei da terça
Al-Malik al-Ahmar, ou o rei vermelho, é o rei-gênio da segunda-feira. Ele está associado ao planeta Marte, o planeta da guerra. Como o antigo deus da guerra do Panteão Romano-Grego, Ares / Marte, este gênio é associado à guerra e descrito como um ser monstruoso cavalgando um leão, armado com uma espada e segurando uma cabeça decepada.

O rei da quarta-feira
Al-Malik al-Aswad, ou o rei negro, é o rei da quarta-feira. Ele é um poderoso rei-gênio que governa uma multidão de outros djinns. Ele está associado ao planeta Mercúrio. Carboni descreve seus ajudantes como “extraordinários e silenciosos”. Ele é negro e tem chifres, com chamas saindo de sua boca e olhos. Um poderoso feiticeiro, ele também é responsável por ensinar magia a seus seguidores.

O rei da quinta
O rei-gênio da quinta-feira é chamado de Shamhurash. Algumas fontes referem-se a ele como Abu al-Walad, que significa “o pai da criança”. Ele é, portanto, representado segurando uma criança nua. Carboni diz que não está claro se a influência deste gênio na criança é positiva ou negativa. Ele está associado a Júpiter.

O rei da sexta-feira
O gênio rei da sexta-feira é Zawba’a, o demônio de quatro cabeças. Ele é retratado sentado em uma maneira real. Duas das cabeças estão de perfil e duas voltadas para a frente. Todas elas representam algum tipo de animal, ou uma transformação de animais. Este rei-gênio, como os espíritos e demônios da antiga Mesopotâmia, está associado ao vento. O nome Zawba’a significa redemoinho. Ele está associado ao planeta Vênus.

O rei do sábado
O último dos sete reis é Maymun, que significa “macaco” em árabe e persa. Ele às vezes é referido como Maymun al-Shahabi (Maymun das nuvens), tornando-o outro demônio associado ao vento e às nuvens, porque ele as usa para voar. Ele está associado a Saturno. Este demônio também é retratado carregando uma criança ou um homem que parece estar dormindo. Isso pode significar que ele é um sequestrador de humanos adormecidos ou incautos. Ele é alado, coberto de pelos e tem o rosto de um macaco com chifres na cabeça. Ele é retratado como descendente das nuvens e seus seguidores também parecem estar habitando as nuvens, tornando-o talvez um líder entre os demônios do vento.

Outros Gênios no Kitab al-Bulhan

Além de Iblis e os sete reis demônios da semana em Kitab al-Bulhan, há também algumas páginas com ilustrações de mais gênios. Esses demônios podem estar relacionados a forças perturbadoras na vida diária, como doenças

Kabus
Um desses gênios perturbadores é Kabus, ou “o pesadelo”. Kabus pode atrapalhar a vida noturna de sua vítima, causando pesadelos e sono agitado. Essa interrupção do sono pode se traduzir em uma vida diária, que é afetada pela fadiga de um sono agitado e sem poder descansar. Na ilustração, Kabus visita sua vítima indefesa enquanto ela está dormindo em seu quarto. Ele desce sobre ela do alto como uma figura escura e ameaçadora pronta para envolvê-lo totalmente, com pouca esperança de escapar de sua influência.

Tabi’a
A gênio fêmea, Tabi’a, é retratada segurando uma criança. Carboni afirma que a presença deste gênio é interessante porque suas origens remetem à Cabala. Ela representa a deusa demoníaca Lilith, que busca controlar e enfraquecer os bebês. Ele também argumenta que ela pode ser ligada à demonologia cristã como o personagem da rainha das bruxas. Carboni diz que “esta imagem adquire um significado extraordinário ligando as tradições hebraica, cristã e islâmica”.

Humma
Humma é o último dos gênios ilustrados no Kitab al-Bulhan. Humma é “a febre” e, portanto, um portador e propagador de doenças. Na imagem, ele tem três cabeças e está sentado frontalmente com os braços abertos, como se fosse abraçar sua próxima vítima e fazê-la adoecer.

Isso conclui a visão geral dos gênios em Ajaib al-Makhluqat wa Gharaib al-Mawjudat e Kitab al-Bulhan. Estes livros fornecem uma visão geral de alguns dos gênios, mas há um grande número deles não discutidos ou descritos em detalhes nestes textos. Há uma pequena anedota em Ajaib al-Makhluqat que ilustra esse ponto. Nesta história, o profeta e rei Suleiman (Rei Salomão), recebeu domínio sobre o gênio e o shayatin. Eles foram comandados por Gabriel para aparecer diante de Salomão e eles vieram em hordas das cavernas, montanhas, pântanos, desertos, planícies, vales, florestas, ilhas, rios e mares para servir seu novo mestre. Al-Qazwini afirma que eles foram conduzidos a ele, quase como gado pelos anjos e reunidos diante dele. Ele diz que 420 grupos de gênios foram reunidos sob seu domínio. Não está claro se esses grupos foram posteriormente subdivididos em clãs e tribos menores.

A fonte então diz que Salomão olhou para eles e viu que havia multidões dessas criaturas com formas estranhas e assustadoras e também vinham em várias cores, incluindo preto, branco, amarelo, vermelho, azul, e algumas eram multicoloridas e malhadas. Eles assumiram formas humanoides e animais e às vezes transformavam-se nos dois. Eles tinham garras, cascos, chifres, asas, caudas, focinhos, bicos, troncos, presas, penas e peles peludas e se assemelhavam a rebanhos, aves de rapina e animais selvagens tanto predadores quanto herbívoros. Alguns deles caminhavam sobre duas pernas, outros sobre quatro. Tão aterrorizante era a visão que Salomão se prostrou a Deus e pediu-lhe força e poder para contemplar e comandar essas criaturas.

O relato continua e afirma que uma vez que sua oração foi respondida, Salomão começou a questionar os gênios sobre suas origens, pátrias, religiões e atos. Ajaib al-Makhluqat apresenta alguns exemplos dos diálogos que Salomão teve com seus servos djinn. Um deles, um certo Mihr ibn Hafan, era metade cachorro e metade gato com uma tromba. Quando questionado sobre o que ele fazia, Mihr afirmou que ele produzia intoxicantes e tentou os filhos de Adão para o seu consumo. Outro gênio, al-Hilhal ibn Mahlul, era um monstro tenebroso com aparência semelhante à de um cachorro. Ele estava coberto de pele preta e sangue escorria de todos os pelos de seu corpo. Ele foi um causador de derramamento de sangue entre os homens.

Salomão então definiu todos os gênios para várias tarefas. Por exemplo, um grupo, o marada (plural de maarid), foi colocado para trabalhar como ferreiro, pedreiro e carpinteiro e receberam a ordem de construir fortificações. As mulheres também foram colocadas para trabalhar como tecelãs de seda e algodão e encarregadas de produzir tapetes e almofadas. Outros gênios receberam ordens para construir potes, caldeirões, jarros e vasos. Outros grupos e tribos foram postos para trabalhar como açougueiros, cavadores de poços, mergulhadores de águas profundas (para extrair pérolas e tesouros afundados), cavadores de canais, mineiros e domadores de cavalos. Al-Qazwini afirma que o Rei Slomão comandou os vários grupos e espécies de gênios para realizar todas as tarefas mais difíceis, a fim de mantê-los ocupados e impedi-los de espalhar seu mal e corrupção na Terra. Esta anedota exemplifica o quão variados os tipos de gênios são na tradição e folclore islâmicos.

Não diferentemente das bruxas, trolls, goblins e fadas da Europa, essas criaturas fazem aparições no folclore, histórias, lendas e tradições do mundo muçulmano. Em algumas partes, as pessoas ainda atribuem ocorrências diárias à sua influência, intromissão ou assombração. Um dos mais famosos conjuntos de histórias em que os gênios desempenham um grande papel são os contos familiares das Mil e uma Noites, onde eles fazem várias aparições tanto como ajudantes benevolentes quanto como antagonistas do mal aos humanos com quem interagem. A história de Aladim e a Lâmpada Mágica é provavelmente um dos contos mais conhecidos (graças à sua recontagem na forma de um filme) com um djinn (ou um gênio) figurando com destaque como um distribuidor de desejos para seu mestre.

Para ampliar:

Carboni, Stefano, “The ‘Book of Surprises’ (Kitab al-bulhan) of the Bodleian Library,” La Trobe Journal, 91 (2013), 22-34.

Lebling, Robert. Legends of the Fire Spirits: Jinn and Genies from Arabia to Zanzibar. London: I.B. Taurus, 2010.

Fonte:_historiaislamica.com/pt/demonios-e-genios-do-mundo-islamico-medieval medievalists.net