domingo, 6 de fevereiro de 2022

Os estranhos horrores de Robert Aickman [SPOILER ALERT]


"Minha primeira experiência foi muito mais uma provação do que qualquer coisa assim que já tenha me acontecido. Não a mais agradável, mas certamente a mais desafiadora. Tenho notado que as coisas mais estranhas acontecem aos iniciantes e, muitas vezes, acho que apenas com eles. Quando já se conhece algo, tudo se torna fácil. Até mesmo coisas desse gênero - pelo menos na maioria dos casos. Depois das primeiras seis mulheres, digamos, ou sete, ou oito, o restante é apenas mais do mesmo." - Robert Aickman

Quarenta anos após sua morte, Robert Fordyce Aickman está começando a receber a atenção que merece como um dos grandes escritores de contos do século XX. Pela primeira vez em terras nacionais, uma nova edição de sua obra foi posta em circulação em um colab entre as editoras Sebo Clepsidra e a Ex-Machina. A edição de "Repique macabro e outras histórias estranhas" acaba trazendo uma oportunidade de ouro para os leitores que apreciam o efeito perturbador único de seu trabalho.

Escritor e conservador inglês, foi co-fundador da Inland Waterways Association, grupo que buscou preservar da destruição e restaurar o sistema de canais do interior da Inglaterra. A literatura estava em seu sangue, com seu avô sendo Richard Marsh, um autor de terror best-seller em sua época no século XIX. As histórias de Aickman apareceram pela primeira vez na coleção We Are For The Dark, de 1951. Nunca se tornou um escritor em tempo integral, muito embora fosse associado de longa data à Society for Psychical Research e ao The Ghost Club.

Aickman escreveu histórias de fantasmas, mas apenas algumas podem ser consideradas exemplos tradicionais. Seu compromisso era com as ambiguidades psicológicas, o tornando mais próximo de escritores modernistas do que com escritores eduardianos como M.R. James, ao mesmo tempo em que sua ambientação o coloca na mesma prateleira de Henry James e Rudyard Kipling.


A questão sobre Aickman no Brasil agora é a escala de seu impacto na literatura sobrenatural local: como experimentar, absorver e interpretar sua obra da maneira mais satisfatória. Aickman é um escritor difícil, que foge do habitual, já que as dificuldades que apresenta não são inerentes à sua escrita, mas sim a intenção por trás dela. Ler Aickman exige um pouco mais de paciência do que muitos leitores estão dispostos a dar.

Os contos de Robert Aickman têm um apelo semelhante. Eles acontecem em um mundo comum no qual eventos bizarros e sobrenaturais se desenrolam com real originalidade. Sua narrativa é boa, sua escrita é limpa, ele é engraçado, mas discreto, e as histórias em si são impressionantes, mais próximas do surrealismo do que com horror ou fantasia.

Um dos contos presentes no livro é "As Espadas", é uma obra interessante e acessível para o leitor em geral, que quer ser iniciado adequadamente a Aickman. O autor consegue colocar camadas de desconforto social e sexual, ambientado em uma sombria cidade inglesa que possui um parque de diversões sem entusiasmo. Todo o sentido ritualístico e desconcertante das personagens transforma "As Espadas" em um clássico de medo. Começa com uma observação que explica os fundamentos psicológicos para o grotesco que está por vir, como mostrado na epígrafe do post. O objeto de desejo e desgosto do narrador é uma mulher que poderia ser descrita tanto como prostituta como um zumbi. Ela oscila entre dois modos, a vida decadente e real com o sobrenatural e o mistério — enquanto o jovem luta com uma experiência estranha, onde os fatos finalmente substituem as fantasias.

"Repique macabro", conto que dá o título ao livro e a história mais antologizada de Aickman, é provavelmente o melhor e mais popular trabalho do autor. Ele contém todos os elementos básicos que tornam a noite assustadora, a colisão entre o antigo e o moderno com uma premissa simples: um casal em lua de mel, o muito mais velho Gerald e sua esposa muito mais jovem Phrynne, se encontram no meio de um festival local pitoresco e turístico que começa com o toque incessante dos sinos da igreja. A narrativa se baseia e extrapola o tema da cidade com um segredo sombrio, adicionando uma ameaça dionisíaca e mostrando, por fim, o fracasso do amor entre idades perante uma folia profana que desperta a volúpia feminina anteriormente adormecida. O segredo novamente está presente em uma frase do conto, quando um colega inquilino da pousada diz a Gerald de forma telegrafada que eles estão literalmente “tocando os sinos para despertar os mortos”.

De limiar sem precedentes e profundidades ocultas, "Niemandswasser" (para os que pegaram o trocadilho, No Man's Water) a terceira história que quero assinalar, é situada pouco antes da Primeira Guerra Mundial. Na narrativa seguimos os transtornos de humor e os movimentos do príncipe Elmo relembra seu querido amigo Viktor (um oficial alemão) que teve seus dedos mordidos por um monstro desconhecido à espreita no Bodensee, enquanto, particularmente, após um caso de amor condenado falhado em se matar. A narrativa poderia ser simplesmente sobre um lago assombrado, ou sobre a decadência e o vazio da vida aristocrática e como o vazio da existência leva ao suicídio, mas seu significado é algo a mais. Elmo e Viktor são duas faces da mesma moeda, contrastando com a criatura que habita aquela parte do lago, que serve apenas para conduzir o desejo suicida do príncipe. A história contém um sentido geográfico muito bem definido, com uma verdadeira viagem ao longo das fronteiras durante a Europa pré-guerra. O autor preconiza a decadência e a falta de propósito que habita os vários personagens da narrativa com a decadência e a falta de propósito que ele começa a encontrar na mais alta esfera da sociedade, e que não podem ser explicados de forma simples.


Como escritor, Robert Aickman é conhecido por sua ficção sobrenatural, que descreveu como "strange stories". Se o horror, o weird e o gótico fossem ligados por uma estrada, provavelmente seria a de sua obra. Sua habilidade narrativa é adorável, com cuidado para garantir que cada palavra e frase e entre parênteses aumente a compreensão do leitor, iluminando até pensamentos e sentimentos comuns com uma nova luz. O ler é caminhar na insegurança no que tenta transmitir. Mais de uma vez eu tive que parar e reler passagens várias vezes para verificar o que exatamente estava acontecendo, para confirmar que eu estava compreendendo o que estava lendo.

Quando fecho o volume, não sei o que escrever. Me sinto em choque, como no final de A Cidade & A Cidade de Miéville. Os estranhos padrões das histórias Aickman me transformam em um pobre leitor, com o sentimento de que ele quer, lá no fundo, brincar comigo. E que isso é um verdadeiro exemplo do que é estranho.