domingo, 18 de fevereiro de 2024

Aquiles e Príamo: duas gerações, dois lados de uma guerra, uma só fé - Diego Galvão


Quando o chefe dos Mermídones, Aquiles, venceu e matou Heitor fora das muralhas de Troia, nada o dissuadia de ultrajar o corpo do vencido todos os dias. A morte de Pátroclo, seu fiel amigo, pelas mãos do príncipe troiano, inflamava a raiva do herói! Mas, dentro das muralhas da cidade, uma dor excruciante tomava conta do pai do falecido marido de Andrômaca: Príamo não comia, não falava e sequer tomava banho, sujo inclusive de esterco. Cada qual com seus lamentos, uma única força foi capaz de mover estas duas personagens - uma em direção à outra - e levá-los a um mútuo entendimento: a fé!

Foi Zeus quem mandou Íris a Príamo com a ordem de este ir a Aquiles levando um pagamento pelo resgate do corpo de Heitor. Ao mesmo tempo, Zeus mandou Tétis ao seu filho com a ordem de aceitar a oferta de resgate que lhe seria oferecida. Só um poder divino poderia influir na concórdia de dois corações chagados por questões opostas atribuídas ao mesmo defunto: o do executante e o do pai do executado; o do que odiava o morto e do que o amava; o do que não cessava de ultrajar os restos do príncipe troiano e o do que lhe queria prestar as honras dos ritos fúnebres.

Já na tenda de Aquiles, o rei troiano, de joelhos, apela para que o inimigo se lembre de seu próprio pai, Peleu, distante, na esperança de vê-lo retornar da guerra que já durava nove anos. A saudade do pai leva o herói às lágrimas. Seus pensamentos ora se dirigem a Peleu, ora a Pátroclo. Urra em lamento, de um lado, Aquiles de rápidos pés; urra em lamento, de outro, Príamo rei. Um acontecimento que, no fundo, só pode ser explicado pela profunda reverência que os gregos devem aos pais em virtude da religião: é esta quem lhes diz desde cedo para honrá-los e lhes explica o porquê.

Estamos diante de uma cena única, e o leitor atento percebe que ela é profundamente pagã, mas também profundamente judaica, profundamente cristã... É a fé a pedra de toque que fornece o fundamento da moral aos homens: se não há Deus, não há o Bem; se não há o Bem, não há o dever da honra, que, em sendo assim, não se distingue da desonra.

Os gregos tinham essa noção: a de que toda honra, todo amor, todo Bem está fundamentado na Transcendência; do contrário, é meramente humano, é meramente pó, é meramente nada...

A concórdia daqueles dois corações só podia ser dada pela Tendência, representada no poema pela vontade de Zeus. É assim que Príamo leva o filho e Aquiles aceita a oferta pelo resgate. A Ilíada não termina com o Cavalo e a queda de Tróia. Encerra com o funeral de Heitor, o domador de cavalos, no Canto XXIV, que constitui um dos capítulos mais emocionantes da literatura universal. Ela termina em um rito religioso, numa pausa de onze dias durante a guerra, numa clara mensagem de Homero que já dura quase três milênios: só as realidades que existem acima dos homens são capazes de estabelecer a paz entre eles.