sábado, 7 de janeiro de 2023

CONSIDERAÇÕES SOBRE UM POEMA


Fico me perguntando como alguém, sem nenhuma experiência sincera com o ramo da narrativa poética conseguiu ficar em 4° lugar na 3ª Edição do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária, Antologia - 200 Anos de Independência. Tenho plena convicção que sou melhor no que costumamos chamar de short stories do que em narrativas rimadas, mas claro, posso manifestar meus pitacos do porque eu consegui chegar nisso (talvez, o ponto mais alto de uma carreira literária totalmente amadora). O meu papel foi firmar meus pés em barcos que, em primeira mão, parecem distintos, mas que se correspondem e que se complementam: o erudito e o popular, apenas.


Primeiramente, há de se observar as intenções da publicação e o seu viés histórico. As comemorações da Independência do Brasil devem ser lembradas no sentido etimológico da palavra comemoração: trazer à memória o que aconteceu. Necessáriamente, poderia ser o evento ou seus desdobramentos lógicos, ou o acúmulo de acontecimentos ao longo desses duzentos anos. Decidi, por mim, não me alongar, fincando raízes nos personagens principais de tal acontecimento, me desdobrando sobre os três principais escritores brasileiros de então e, por fim, o arremate em uma profecia.


O cenário já estava dado: o Brasil… mas o que é o Brasil?


De fato, não podemos falar o que é o Brasil sem falar em uma tribo de índios no Xingu, de uma comunidade quilombola no Nordeste e de uma comunidade de poloneses no Sul. Nossa identidade é totalmente diferente das europeias ou asiáticas, apesar de dizerem ao contrário. Somos hoje um país em construção, mas com uma vocação muito peculiar. Fomos fundados por portugueses atlantinos (civilização ou sistema de Estado claramente associado ao desenvolvimento de territórios marítimos e à penetração consistente nos territórios oceânicos), senhores das águas e desbravadores, porém nos desenvolvemos com forte viés de telurocracia (civilização ou sistema de Estado claramente associado ao desenvolvimento de territórios terrestres e à penetração consistente nos territórios interiores).


Somos um povo novo, em uma terra nova com fronts de crescimento distintos. Nosso nome vem da palavra holandesa "hy-brazil", que significa "ilha da boa fortuna" ou simplesmente "paraíso". Diferente dos demais da América Latina, o Brasil surgiu como um estável e grande império católico, com a monarquia familiar vinda dos Bragança e Habsburgo: uma estrutura estatal europeia instalada sobre um povo negro e indio. Nessa estrutura estatal e seus representantes sempre recaiu a cultura erudita, mas é na cultura feita fora do Estado, vinda do povo e de sua sabedoria popular.


Definindo o cenário, resolvi pensar no corpo principal do enredo. Não demorei muito a delimitar que tudo ocorreria no Grito do Ipiranga, um diálogo entre as cartas dos três principais artífices da independência: Leopoldina, José Bonifácio e Dom Pedro I. Mirando o cenário de secessão, dividiu-se em três cantos principais, um para cada um. Com isso em mente, olhei para quem já tinha feito celebrações ou trabalhado com coisas similares e de autores de inteligência e trabalho superior. Do mesmo jeito que não consegui fugir de Basílio da Gama com o seu "O Uraguai", "O grito do Ipiranga" recém descoberto de Machado de Assis, Gonçalves Dias com "Canção do Tamoio" tão pouco pude ignorar Homero e sua "Ilíada" e "Os Lusíadas" de Camões. Mesmo que eles tenham definido o que é o poema de exaltação, uma narrativa marcada por aventuras e heroísmo.


Porém, todas as narrativas mencionadas acima, não são modernas, estão muito longe da nossa realidade, mesmo que haja elementos que possam ser rearranjados. Em minhas pesquisas, resolvi fazer um diálogo com um poema bastante peculiar que estudei uma vez para o vestibular. Andei com "Mensagem" de Fernando Pessoa na bolsa durante semanas. Não rasurei o livro porque não é meu estilo, mas anotei tanto quanto pude, tentando desvendar os principais elementos e revendo minhas aulas e livros de vestibular. Em algum grau, a visão de Pessoa me ajudou a equilibrar a composição de uma alegoria em um texto de características de "épico" com tons místicos católicos e pagãos, que buscasse exaltar a imagem do Brasil como um grande país.



"Novo Mundo" foi dividido em três partes que denominei como "Flâmula", "Intérpretes" e "Quinto Império". Na primeira parte foi dividida em uma introdução que remeteria a tradução da "Ilíada" feita por Odorico Mendes e três cantos com grandes figuras monárquicas da época, iniciando com a Imperatriz Leopoldina, passando por José Bonifácio e terminando Dom Pedro I.



O canto de Leopoldina é uma oração, algo mais lírico. "Senhora Liberdade" é uma figura para representar Nossa Senhora da Glória e seu manto. A Imperatriz Leopoldina sempre foi uma mulher religiosa, católica devota a tal ponto de dar o nome da santa à sua primeira filha. Esse epíteto, claro, eu tirei de uma canção de Nei Lopes, que foi sucesso na voz de Wilson de Oliveira com o Casuarina e Zezé Motta. No canto de Leopoldina, ela pede a bênção de Nossa Senhora, que ela a de sabedoria para tomar a melhor decisão, afastando-se totalmente do sentido da canção e dos termos empregados por Nei, que fala sobre a dor de um amor não correspondido que é uma "violenta emoção". No caso, Leopoldina pede que a Senhora Liberdade abra as suas asas sobre a Nação, protegendo Dom Pedro I.


O canto de José Bonifácio é mais colérico. Voltado para a guerra, ele avisa que rios de sangue vão banhar o solo do Brasil, caso Dom Pedro I não proclame a independência. Há de se lembrar que, apesar de José Bonifácio ter dedicado sua vida inteira às ciências humanas e exatas, quando Napoleão e seu exército invadiu Portugal, foi um dos primeiros a se alistar no Batalhão Acadêmico formado em Coimbra para combater os franceses, subindo de major para tenente-coronel por sua perícia em armas e combate contra os invasores. Naturalmente, se Leopoldina invoca Nossa Senhora, Bonifácio invoca Marte (há de se lembrar também que na época criaram uma estátua do deus romano com o rosto de Napoleão [uma estátua nua e heróica do artista italiano Antonio Canova]).



Ambos os cantos são missivas, cartas que preparam para o terceiro canto da primeira parte, que é a resposta de Dom Pedro I no Ipiranga. Ele, irado com toda a situação, lida com o problema com frieza, lembrando a todos (tanto aos portugueses que queriam sua volta quanto a Leopoldina e Bonifácio que queriam que ele ficasse) que ele é herdeiro de linhagem real e tem sangue nobre. E dizendo isso, ele ergue o escudo da Senhora Liberdade (Nossa Senhora da Glória) e a lança de Marte para defender o povo brasileiro das correntes europeias: afinal, ele é o defensor perpétuo do Brasil. Ele ignora Leopoldina e Bonifácio, apesar de acolher seus pedidos e receber de bom grado as armas de Nossa Senhora da Glória e Marte. "Flâmula" vem das cores da bandeira nacional: justificando o título, faz referência ao verde da Casa de Bragança, da qual Dom Pedro I pertencia, enquanto o amarelo faz referência a Casa de Habsburgo, da qual pertencia sua esposa a Imperatriz Leopoldina.



A segunda parte chamada de "Intérpretes" foi dividida também em uma introdução e três cantos, cada um homenageando um escritor brasileiro e levando seu nome. Essa parte leva esse nome pois considero José de Alencar, Machado de Assis e Guimarães Rosa pessoas que nos traduziram a nós mesmos. Os três foram em suas épocas para a língua portuguesa verdadeiros pináculos. Em um passeio por seus principais personagens e histórias, podemos ver a experiência do que é ser brasileiro e onde nossas almas imaginativas foram plantadas.



No primeiro canto, "José de Alencar", passei por um dos maiores representantes da corrente literária indianista e foi por muito tempo o principal romancista brasileiro. Durante toda sua vida procurou tornar popular através da escrita para os livros as tradições e a vida rural e urbana do Brasil, sendo aclamado por Machado de Assis, como "o chefe da literatura nacional". Focado no "O Guarani", tentei expressar o nacionalismo romântico focando em Ceci e Peri, remetendo a principal característica da primeira geração romântica: o cultivo do nacionalismo, que exaltava a terra e o índio (o nosso cavaleiro medieval) com o retorno ao passado histórico e na criação do primeiro herói nacional.


No segundo canto, "Machado de Assis", foi o que mais tive dificuldade para exprimir o meu pensamento central. Jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, ele foi o maior de todos, pois não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera nacional da capital do império em letra miúda, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição (mas, evidentemente, foi apenas um plagiário) - pensamento presente em sua obra corrente, mas positivado em seu "Dom Casmurro" no Capítulo IX: A Ópera. Com esse pensamento, desanquei em verso que Escobar e Capitu definem Bentinho em sua pequenez, já que, é no contraste com as duas figuras que ele se cria. Operário das letras, é considerado precursor do realismo, apesar de detestar o movimento literário do realismo por "sacrificar a verdade estética".


O terceiro canto, "Guimarães Rosa", foi composto bem antes do poema em si. Sendo franco, criei a parte dois apenas para encaixar esse poema, que escrevi depois de ler  "Sagarana" e "Primeiras Estórias". Contista, novelista, romancista, médico militar e diplomata, é inequívoco que suas experiências dentro e fora do Brasil (fosse como médico na Revolução Constitucionalista de 1932, fosse como embaixador na Alemanha Nazista) deu repertório o suficiente para dar uma interpretação mítica da realidade, mediante a ressurreição da língua brasileira (tutaméia = tuta e meia [uma coisa sem importância]), criando palavras (circuntristeza, espécie de tristeza circundante) e adicionando palavras (velvo = velvet inglês [veludo]) ao nosso vocabulário em uma revolução formal e estilística.


A terceira e última parte se chama de "Quinto Império". Indo no fluxo do último canto da segunda parte, que é mais místico por tratar de Guimarães Rosa, "Quinto Império" é uma forma de corresponder-me e ao mesmo tempo, abrir uma nova perspectiva com a terceira parte do livro "Mensagem" de Fernando Pessoa, intitulada "O encoberto". Naquela altura, o Eu Lírico de Pessoa abre duas frentes de combate: o retorno da figura lendária de Dom Sebastião e a essência mística da volta do rei representada no sebastianismo e a vinda do Quinto Império por suas mãos, criando um país idílico para os cristãos como última resistência de um mundo em pecado e que dele a fé cristã se espalharia por todo o planeta. Como o título da terceira parte sugere, resolvi atacar a segunda frente aberta por Pessoa.


O Quinto Império é uma teoria retirada do livro de Daniel, quando ele interpreta o sonho de Nabucodonosor, rei da Babilônia. A passagem diz que o rei teve um sonho que não conseguia se lembrar, e sem encontrar entre seus sábios alguém capaz, encolerizou-se a ponto de dar sentença de morte para todos os sábios da Babilônia, iniciando um verdadeiro massacre. A situação só se acalmou quando Daniel descreveu o sonho do senhor babilônico e sua interpretação, presentes no Capítulo 2, versículos 31 a 47: Nabucodonosor contemplou uma enorme estatuária com cabeça era de fino ouro, peito e braços de prata, ventre e quadris de bronze, pernas de ferro com pés metade de ferro e metade de barro, que foi triturada pelo impacto de uma pedra que foi deslocada da montanha, sem intervenção de mão alguma. Os materiais que formavam a estátua foram esmigalhados, sendo levados pelo vento enquanto uma nova montanha se erguia da pedra.


O reino de Nabucodonosor seria a cabeça de ouro, depois o de prata e bronze revelam reinos menores que o dele, mas o de bronze, porém, dominaria toda a terra. Um quarto reino (o das pernas) será tão forte como o ferro, e pulverizaria todos os outros. O reino então seria diluído, misturando a terra argilosa de mo­delar com a parte de ferro em seus pés, havendo nele algo sólido e frágil, com as duas partes se aliando por casamentos, sem porém se fundirem inteiramente, tal como o ferro que não se amalgama com o barro. No tempo desses reis, o Deus dos céus iria suscitar um Quinto Império que jamais será destruído e cuja soberania jamais passará a outro povo, desse jeito aniquilando todos os outros, subsistindo na eternamente: esse seria o significado da pedra que se desloca da montanha sem a intervenção de mão alguma e que reduz a migalhas o ferro, o bronze, o barro, a prata e o ouro (é um reinado criado pela intervenção divina).


De acordo com as interpretações mais correntes, os quatro impérios em ordem foram o Império da Babilônia, seguida pela união dos Impérios Medos e Persas que resultou no Império Medo-Persa, seguida pela Grécia Macedônia de Alexandre, o Grande e, por fim, o Império Romano. Foi da divisão da antiga Roma que surgiram as primeiras monarquias europeias na sua parte Ocidental. Daniel adverte quem, os reinos divididos jamais iriam se juntar novamente, apesar de grandes esforços sanguíneos (as elites monárquicas tem certo grau de parentesco pois foram ligadas por casamentos: vide a Primeira Guerra, onde o kaiser Guilherme II e o czar Nicolau  II  eram primos do rei britânico George V) e de conquista (Carlos Magno, Carlos V do Sacro Império Romano-Germânico, Luís XIV de França, Napoleão Bonaparte, Guilherme II da Alemanha e Adolf Hitler).



Várias teorias foram criadas para dizer e descrever o que era o Quinto Império, o governo universal de Deus. Em Portugal e na literatura portuguesa podemos encontrar entre seus difusores principais o profeta Gonçalo Annes Bandarra, o padre Antônio Vieira e o poeta Fernando Pessoa, onde eles abraçam a crença que afirma que Portugal se tornaria o quinto e último império do mundo, responsável por levar a fé cristã para outras partes do planeta. Obviamente, essa tarefa iria caber a Dom Sebastião que desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir combatendo por Cristo, e que em seu regresso, transformaria a "noite" em "dia claro". Poeticamente, em "Mensagem", ele afirma: "E assim, passados os quatro / Tempos do ser que sonhou, / A terra será teatro / Do dia claro, que no atro / Da erma noite começou.". Como Portugal foi referência obrigatória em descobertas e conhecimento de novos mundos, para Pessoa sempre se acreditou na perpetuidade dessa missão, buscando atestar o mito da grandeza e do valor simbólico do Quinto Império na civilização Ocidental, expressando sua visão messiânica da história e se investido no papel de arauto desse Quinto Império, que não precisa ser material, mas sim espiritual.


Mas discordo de Pessoa, pelo menos em partes.


Afirmar que Portugal é o Quinto Império é um equívoco. Acredito que ele seja o Brasil. Como já expliquei, nosso nome significa "paraíso" em Holandês mas, como diria Darcy Ribeiro em seu "O Povo Brasileiro" nos lembra que em velhas 
cartas e 
lendas 
do 
mar 
oceano 
traziam 
registros de
 uma
 ilha
 Brasil
 referida
 provavelmente
 por
 pescadores
 ibéricos
 que andavam
 à
 cata
 de
 bacalhau
, apesar de tentativas infrutíferas do então governo de desvincular à
 nova
 terra a esse nome.


Mas não é apenas o nome que me faz pensar assim. Trazendo o raciocínio racial de Darcy para a organização estatal, do mesmo jeito que etnicamente houve povos que foram transplantados para o continente americano, o Governo Português, durante as Guerras Napoleônicas foi transplantado para cá. O Rio de Janeiro em 1808, virou a sede de todo o império português, com a atropelada fuga da monarquia de Lisboa para o trópico, saindo as ordens de comando para Portugal, na Europa; Angola e Moçambique, na África; Goa, na Índia; Timor, no Sudeste Asiático; e Macau, na China.


A transferência do governo de Portugal para o Brasil foi providencial. Com uma só viagem, a capital ficou mais perto das regiões do Império, aumentou o fluxo comercial entre todas as colônias e modernizou a administração do governo português. O projeto buscava não só a instalação provisória da família imperial, mas a instalação definitiva. Toda a movimentação no Período Joanino com a construção de toda uma infraestrutura cultural, econômica, científica e militar (a Biblioteca Real, a Casa da Moeda, o Banco do Brasil, o Jardim Botânico e a Academia Real Militar [que mais tarde virou Academia Militar das Agulhas Negras, tendo como patrono o próprio Dom João VI]). Além disso, a administração joanina promoveu o Brasil ao status de Reino Unido, acabando efetivamente com o nosso status colonial.


Com isso em mente, terminei a terceira parte que contém um poema apenas como uma resposta a esse pensamento, com esse espírito. Toda a sua construção diz que o Quinto Império nada mais é do que a volta a sua origem etimológica da palavra Brasil, a sua missão natural: ser o paraíso, o estágio principal do bem, da bondade e da verdade, destinado a ser o maior império de todos. Um leitor mais atento pode dizer que eu tirei a salvação do mundo do eurocentrismo e trouxe para a América Latina: uma interpretação muito razoável (mesmo que eu não tenha pensado nessa interpretação originalmente).