quinta-feira, 23 de setembro de 2021

ORTODOXIA POLICIALESCA


Das obras policiais e autores redescobertos nos últimos anos, talvez nenhuma me agrada mais do que ver Chesterton e seu trabalho ficcional de volta às livrarias com o devido tratamento que sua obra merece. A ausência de edições de seus livros no mercado brasileiro era uma triste lacuna - hoje suprida graças a participação de muitos e a hiperespecialização de conteúdo proporcionado pela Internet.


G.K. Chesterton foi um escritor completo. Autodidata, foi criador de tipos variados. Poeta, ensaísta, narrador, jornalista, crítico literário, filósofo, teólogo, biógrafo, desenhista, ativista político, apologista... (ufa!). Irônico porém educado, respeitava seus adversários com "o lado secreto da nobreza". Contemporâneo de escritores como Oscar Wilde, H.G. Wells, Conan Doyle, Agatha Christie, James Joyce, Thomas Hardy, W.B. Yeats, Virgínia Woolf e Rudyard Kipling, se distinguindo de todos os que o cercavam pelo seu jeito despojado, seu estilo incisivo e a facilidade de rir de si mesmo. Se tornou o "príncipe dos paradoxos", fraseando coisas que soam óbvias, mas de formas improváveis.


A obra de Chesterton teve impactos bastante profundos no último século, permeando autores de mais alto gabarito com o mais diferente grau de interesse. Robert E. Howard por exemplo tem seus poemas como epígrafes em narrativas de Solomon Kane (que terá nova edição pela editora Pipoca e Nanquim), Neil Gaiman em Sandman transformou sua aparência física em Fiddler's Green (uma área do Sonho com consciência própria), Jorge Luis Borges desenvolveu seu trabalho policialesco baseado no autor, a ponto de colocar seu nome em um dos seus mais importantes ensaios sobre o gênero policial: “Los laberintos policiales y Chesterton”, de 1935.


Por conta de sua vasta produção em não-ficção, por vezes sua ficção é deixada de lado. Em "A Taberna Ambulante", que em nossos tempos parece um rascunho das ideias desenvolvidas mais à frente por Michel Houellebecq em seu romance "Submissão"; já "O Poeta e os Lunáticos" temos um detetive pintor, que com a cabeça nas nuvens e focado na arte, resolve crimes assombrosos. Há duas notáveis exceções: "O Homem que foi Quinta-Feira" (uma narrativa policialesca com alegorias sobre o mundo real e moderno com referências ao universo ideológico e espiritual) que foi sua primeira grande experiência pela ficção, e as histórias de detetive do Padre Brown.


A primeira vista, Padre Brown é um inepto. Afinal, o que sabe um padre sobre o crime?




A ideia de transformar O'Connor em um dos seus melhores personagens surgiu em um dos seus encontros, no qual ocorreu um incidente irônico e marcante para a origem do Padre Brown: ambos, Chesterton e o sacerdote John O'Connor, estavam dialogando acerca de questões sociais como vícios e crimes, quando relatos referentes ao conhecimento de práticas de perversidades reportadas pelo religioso surpreenderam o escritor, pois aquele recente amigo, de aparência tranquila e agradável, apresentava mais experiências nas questões debatidas por eles do que Chesterton imaginara.

Em sua Autobiografia, Chesterton narra que, em uma conversa entre amigos sobre um artigo que escrevia sobre os problemas sociais que envolviam o vício e o crime, o padre John O'Connor (seu confessor e conversor) sugeriu que as conclusões dele estavam equivocadas. Para provar seu ponto, relatou práticas de perversidades que, ao serem reportadas pelo religioso, surpreenderam o escritor, pois aquele homem de batina, aparência tranquila e agradável, apresentava mais experiências nas questões debatidas por eles do que Chesterton poderia imaginar. Nascia ali a ideia de um padre-detetive.


A partir daquele momento, nasceu o personagem central dos mais de cinquenta contos distribuídos em cinco volumes e que inaugurou o que C.S. Lewis chamou de "thriller teológico". Diferente de Sherlock Holmes e um Hercule Poirot que sempre apresentaram uma certa forma de rigor racional e científico, Padre Brown foca em suas virtudes como diretor de almas para descobrir a verdade e chegar na alma do criminoso, buscando sua conversão - usando os anos no confessionário lhe deram para enxergar o que há de mais sórdido na natureza humana. Um exemplo disso é que Padre Brown sempre correu atrás da alma criminosa de Gustav Flambeau, famoso ladrão conhecido na Europa por roubar de forma ousada e espetaculosa objetos de grande valor, persuadindo para que abandone a vida no crime, mostrando para ele um outro caminho e tornando-o seu braço direito.


No capítulo "Uma Breve História do Romance Policial" presente no livro "Agatha Christie: From My Heart", Tito Prates salienta que um dos méritos de Chesterton é criar um personagem dentro de parâmetros definidos por Austin Freeman (criador da fórmula conhecida como "mistério invertido") e Mary Roberts Rinehart (responsável pelo desfecho "o culpado é o mordomo" e a pela fórmula "se eu soubesse"). Vale lembrar que a competência de Chesterton e sua escrita ficcional o fez se tornar membro e, posteriormente, o primeiro presidente do The Detection Club, uma associação inglesa informal de autores de histórias policiais da Grã-Bretanha que tinha em seu catálogo vários nomes célebres do romance policial britânico, nomeadamente, Agatha Christie, Dorothy L. Sayers, Anthony Berkeley, entre muitos outros.


Os mistérios do Padre Brown ao mesmo tempo que são bem feitos, muitos são quase perfeitos em termos de tempo, humor e raciocínio. Com ele vemos que não devemos confiar em tudo o que vemos e devemos prestar atenção em todos que nos cercam, que os polígrafos são infalíveis como as máquinas, mas falham miseravelmente na interpretação dos dados e principalmente nos mostra a noção de pecado.



Chesterton era um perfeito anatomista da alma, dissecando o humano até suas entranhas. Em um mundo repleto de mentiras e ilusões, ele nos lembra que o homem esqueceu o que é pecado e as questões das dimensões e escalas de seus erros. Nós realmente esquecemos o que é o bem?


Chesterton conseguiu em sua escrita policial conduzir um verdadeiro exercício espiritual, fazendo seu pequeno sacerdote mergulhar tão completamente no fundo do coração humano a ponto de influenciar tantos outros autores como Marshall McLuhan, Antônio Gramsci e Adolfo Bioy Casares. Não gosto de pensar na noção de perdão, mas Padre Brown me faz pensar nisso da maneira menos prosaica, como se fosse simplesmente uma questão de escolha ser honesto ou não. Ele me faz querer ser bom. Verdadeiramente. E eu acho que esse é o melhor tipo de efeito que um livro - nesse caso, uma coleção - pode ter.


Essa postagem foi patrocinada pelo Instituto Hugo de São Vítor. Para saber mais sobre os livros, clique aqui para acessar a livraria do instituo.