domingo, 5 de fevereiro de 2017

"E o que aumenta em conhecimento, aumenta em dor": Fahrenheit 451 (Ray Bradbury)

Queimar era um prazer.
Era um prazer especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas e alteradas. Empunhando o bocal de bronze, a grande víbora cuspindo seu querosene peçonhento sobre o mundo, o sangue latejava em sua cabeça e suas mãos eram as de um prodigioso maestro regendo todas as sinfonias de chamas e labaredas para derrubar os farrapos e as ruínas carbonizadas da história. Na cabeça impassível, o capacete simbólico com o número 451 e, nos olhos, a chama laranja antecipando o que viria a seguir, ele acionou o acendedor e a casa saltou numa fogueira faminta que manchou de vermelho, amarelo e negro o céu do crepúsculo. A passos largos ele avançou em meio a um enxame de vaga-lumes. Como na velha brincadeira, o que ele mais desejava era levar à fornalha um marshmallow na ponta de uma vareta, enquanto os livros morriam num estertor de pombos na varanda e no gramado da casa. Enquanto os livros se consumiam em redemoinhos de fagulhas e se dissolviam no vento escurecido pela fuligem. - Ray Bradbury

A edição capa dura, folhas amareladas e fontes confortáveis da Coleção Folha de São Paulo "Grandes Nomes da Literatura" trás o clássico de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, uma narrativa digna dos conceitos de um clássico para Calvino: um livro que não termina de dizer aquilo que tinha para dizer.

Dialogando com uma realidade pós Segunda Guerra Mundial e em dificuldades financeiras, o livro dialoga com os grandes clássicos, sobre tudo com o Eclesiastes (livro mais pessimista e opressivo de todo o Antigo Testamento que o personagem principal, Montag, acaba por memorizar).

Na narrativa somos levados para um futuro em uma cidade dos EUA hoje não tão futurística (coisas que aparecem no livro já foram criadas - como o ponto no ouvido) e opressiva, onde as casas são à prova de fogo, onde a história foi alterada, e em que bombeiros em vez de apagar incêndios, os iniciam: uma força-tarefa designada para queimar livros e erradicá-los do mundo.

É nesse cenário que somos mostrados a Montag: um bombeiro que tem a função de queimar os livros, e que, em determinado momento - após um encontro com sua nova vizinha, a adolescente Clarisse - começa a questionar o porquê de as pessoas se posicionarem contra a lei e se dentro daquela sua vida ele é feliz ou não.

Depois da tentativa de suicídio de sua mulher e do tratamento desumano que os médicos ele passa a ver como a vida pode medíocre, e como aquela sociedade está se destruindo. Aos poucos, ele começa a notar o quanto o seu trabalho é bárbaro e toma uma atitude - depois do sumiço de Clarisse - começa a se revoltar contra o sistema e se aliando com pessoas que o possam ajudar.

Escrito em 1953, sofreu adição de um posfacio em 1981 chamado de "Coda". Nele, o autor reclama da censura que sofria dos editores, dos movimentos de afirmação de gênero e de Universidades porque não os agradava.

Cerca de dois anos atrás, recebi uma carta de uma digna dama da universidade de Vassar dizendo-me quanto ela gostara de ler meu experimento em mitologia espacial, As crônicas marcianas.

Mas, acrescentava ela, não seria uma boa ideia, passado tanto tempo, reescrever o livro introduzindo mais personagens e papéis femininos?

Alguns anos antes disso, recebi certa quantidade de cartas relativas ao mesmo livro, reclamando que os negros no livro eram do tipo pai Tomás, e perguntando por que eu “não os criava de novo”?

Mais ou menos na mesma época chegava um bilhete de um branco sulista sugerindo que eu era preconceituoso em favor dos negros e que a história toda deveria ser descartada.

Duas semanas atrás, minha montanha de cartas trazia uma cartinha insignificante de uma famosa casa editora que desejava reeditar meu conto “A sirene do nevoeiro” como livro de leitura para o colegial.

Em meu conto, eu havia falado de um farol que, tarde da noite, tinha uma iluminação que saía dele como um “Deus-Luz”. Olhando para ele do ponto de vista de uma criatura marinha, tinha-se a impressão de se estar “diante da Presença”.

Os editores haviam eliminado “Deus-Luz” e “diante da Presença”.


Beatty, o capitão dos bombeiros em meu romance Fahrenheit 451, explicou como os livros foram queimados primeiro pelas minorias, cada um rasgando uma página ou parágrafo desse livro e depois daquele, até que chegou o dia em que os livros estavam vazios e as mentes caladas e as bibliotecas para sempre fechadas.

“Feche a porta e eles passarão pela janela, feche a janela e eles passarão pela porta” são palavras de uma antiga canção. Elas harmonizam bem meu estilo de vida com os carrascos e censores estreantes a cada mês. Apenas seis semanas atrás, descobri que, ao longo dos anos, alguns editores bitolados da Ballantine Books, receosos de contaminar os jovens, haviam pouco a pouco censurado cerca de setenta e cinco trechos do romance. Estudantes, ao lerem este romance que, em última análise, trata da censura e da queima de livros no futuro, escreveram-me para contar sobre essa primorosa ironia. Judy-Lynn Del Rey, uma das novas editoras da Ballantine, está refazendo o livro inteiro, que será republicado neste verão com todas as “drogas” e todos os “diabos” de volta.

Um teste final para o velho Jó, 2, aqui: enviei uma peça, Leviathan 99, para um teatro universitário um mês atrás. Minha peça se baseia na mitologia de “Moby Dick”, é dedicada a Melville e fala da tripulação de um foguete e de um capitão astronauta cego que se aventura a encontrar o Grande Cometa Branco e destruir o destruidor. O drama estreará como ópera em Paris neste outono. Mas, por ora, a universidade escreveu respondendo que dificilmente ousaria encenar minha peça — não havia nenhuma mulher nela! E as senhoras da ERA (Equal Rights Amendment, emenda da igualdade de direitos) iriam atacar com tacos de beisebol se o departamento de teatro até mesmo tentasse fazêlo!
Rangendo meus pré-molares até esfarinhá-los, sugeri que isso significaria, doravante, não mais produzir Os rapazes da banda (nenhuma mulher), ou The women (nenhum homem). Ou, contando a cabeça de homens e mulheres, uma boa parte de Shakespeare jamais seria vista novamente, particularmente se enumerarmos as falas e descobrirmos que todas as boas ficam para os homens!

No cinema o diretor François Truffaut em 1966, adaptou o livro, que foi estrelado por Oskar Werner e Julie Christie. Mais recentemente, algumas semanas depois da morte do autor em 2012, Tim Bray, fã dos livros de Bradbury, recomendou ao Internet Engineering Task Force que, ao acessar um determinado site e ter acesso negado por razões legais, o usuário receba o código de status 451, coisa que foi aceita e aplicada em 2015.